Ministério da Justiça e Segurança Pública - MJSP
Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE
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Consulta nº 08700.001189/2024-58
Consulente(s): Cassol Materiais de Construção Ltda. e Todimo Materiais para Construção
Advogados(as): André Lipp Pinto Basto Lupi, Letícia Mulinari Gnoatton e Bráulio Cavalcanti Ferreira
Relator: Carlos Jacques Vieira Gomes
VOTO VOTO VOGAL - CONSELHEIRO GUSTAVO AUGUSTO
VERSÃO de acesso Público
voto
O caso dos autos se refere a uma consulta formulada nos termos da Resolução CADE nº 12/2015, a qual trata de questionamento quanto à licitude de estratégia empresarial que as consulentes pretendem implementar e que se encontra descrita na petição SEI 1350861.
No caso, trata-se de duas empresas atuantes no mercado de varejo de materiais de construção, as quais pretendem cooperar entre si na sua estratégia de compras e relacionamento com os fornecedores. Em linhas gerais, pretendem as consulentes atuar cooperativamente para negociar as condições gerais de fornecimento com seus principais fornecedores, em âmbito nacional.
Relatam as consulentes que as duas empresas continuarão completamente autônomas para contratar com os fornecedores, fazer pedidos de compra e gerenciar seus estoques. Alegam ainda que, nessas atividades, não haverá compartilhamento de informações, de pessoal, de estrutura ou compartilhamento de riscos e resultados.
Para tal fim, as empresas pretendem constituir um “Comitê de Compras”, que reunirá membros de ambas as consulentes para avaliar as condições gerais de fornecimento junto aos fornecedores e encaminhar as negociações, por meio de um mandato mercantil.
Segundo as consulentes, essas “condições gerais de fornecimento”, a serem pactuadas pelo Comitê de Compras, referem-se a acordos comerciais para a execução das compras, política de devoluções, abatimentos e descontos. As atribuições desse Comitê também englobam a negociação do chamado conteúdo promocional e a pactuação de “acordos promocionais”.
As atribuições do Comitê incluiriam a negociação do pagamento de “luvas” pelos fornecedores, das condições para os anúncios nas lojas, de verbas por inauguração de loja, de “rappel” e dos termos de atuação dos promotores de venda dos fornecedores que atuem nas lojas dos varejistas.
Conforme consta da estratégia apresentada, o Comitê de Compras, composto por representantes das duas consulentes, negociará com os fornecedores os acordos comerciais e os acordos promocionais, o que será feito de forma conjunta. Para esse fim, pretendem as consulentes, ainda, compartilhar entre si as listas dos seus fornecedores.
Verifico dos termos da consulta que as empresas também pretendem implementar uma estratégia comum para a montagem do seu portfólio de produtos. Constato, ainda, que há a intenção de expansão das marcas próprias de cada consulente, a qual passaria a ser distribuída pela rede de vendas da concorrente:
Ademais, a conjunção de esforços tende a melhorar a composição do mix de produtos, com expansão das marcas próprias de cada uma das Consulentes para a rede da outra Consulente, que permitirá a ampliação da base de fornecedores para expansão do mix, por reduzir os custos de transação na gestão de centenas de fornecedores.[1]
Não consta da consulta que as concorrentes farão compras em conjunto para atender às duas empresas, nem há indicação de que negociarão conjuntamente os preços de compra. Também não há indicativo de que as empresas compartilharão entre si os valores das vendas efetivadas pela concorrente. Ao contrário, narram as consulentes que as duas empresas continuarão a fazer seus pedidos de compra de forma autônoma, sem compartilhamento entre si de informações concorrencialmente sensíveis.
Cumpre destacar que a consulta deve ser analisada e respondida com base nas informações prestadas pela parte consulente, na forma do art. 7º da Resolução CADE nº 12/2015. Assim, não cabe ao Cade, nesse momento processual, investigar se as alegações feitas pelas consulentes são faticamente corretas. A estratégia comercial deve ser avaliada da forma como foi descrita pelas consulentes, sendo a resposta do Cade emitida adotando tal estratégia como premissa. Se a estratégia for implementada pelas empresas de forma diversa da narrada na consulta, está a parte sujeita a responder no âmbito do controle de condutas, se cometer alguma infração à ordem econômica.
Feito esse registro a respeito da operação em concreto, passo ao exame do instituto do acordo de cooperação entre concorrentes.
GRUPOS DE COMPRA
Acordos de cooperação entre concorrentes podem gerar efeitos pró-competitivos, como ocorre nos casos de organização de grupos de compras para criação de poder de barganha (countervailing power). Compradores de menor porte podem se reunir em um pool para aumentar a escala das suas compras e garantir melhores preços, o que pode aumentar a rivalidade do setor, possibilitando que os concorrentes de menor porte possam competir com as grandes redes de varejo. Em um mercado competitivo, esse tipo de cooperação pode ser refletido no preço final, repassando-se ao consumidor os ganhos de eficiência obtidos na etapa das compras.
Essa questão foi abordada pelo economista John Kenneth Galbraith, que bem descreveu os possíveis efeitos pró-competitivos do countervailing power[2]. Nas palavras de Christopher M. Snyder:
A sabedoria convencional sugere que, em relação aos pequenos compradores, os grandes compradores têm uma vantagem na obtenção de concessões de preços dos vendedores, nos termos de Galbraith (1952), de que o tamanho confere poder de compensação. A sabedoria convencional foi verificada por vários estudos empíricos. [...][3]
Estudos econométricos conduzidos por Iozzi e Valletti indicam que o argumento em favor do efeito pró-competitivo do poder de barganha parece ser mais convincente quando aplicado a um mercado que se comporte como o modelo de competição de Bertrand, no qual os concorrentes competem pelo preço, sendo particularmente sensível ao grau de diferenciação dos produtos, às características do mercado e à forma de reação dos concorrentes[4]. De toda forma, os referidos estudos deixam claro que há cenários mercadológicos nos quais o aumento do poder de barganha pode, sim, resultar em preços menores ao consumidor final.
Se, por um lado, grupos de compra podem gerar efeitos competitivos positivos, por outro eles podem ser um meio para facilitar a colusão, particularmente por criarem um ambiente favorável a que concorrentes troquem informações concorrencialmente sensíveis e adotem estratégias anticompetitivas. Não por outro motivo, Carolina Saito e Zack Douer advertem, em artigo provocador, que tais arranjos podem ser muito similares a um cartel de compras. In verbis:
Uma situação comum de associação lícita entre concorrentes é a formação de grupos de compra [...]. Empresas que utilizam insumos comuns têm incentivos para se associar com o fim de adquirir conjuntamente os produtos. Por meio desse arranjo cooperativo, as empresas veem seu poder de compra aumentado e conseguem obter insumos a preços menores, bem como podem vir a negociar condições mais favoráveis.
Dentre as várias espécies de cooperação entre concorrentes, o tema do acordo de compra é de suma relevância, não só por ser frequentemente discutido, mas também por ser paradigmático em demonstrar tanto que a cooperação entre concorrentes pode gerar eficiências, quanto diversos riscos e preocupações concorrenciais, em especial por sua similitude com cartéis de compra[5].
Diante das preocupações de riscos concorrenciais, a jurisprudência deste Tribunal tem entendido que os acordos de compras devem ser tratados como acordos associativos e serem analisados como atos de concentração, como descrevo a seguir.
JURISPRUDÊNCIA DO CADE
A jurisprudência do Cade vem entendendo que a união entre concorrentes para realização de compras pode, sim, caracterizar a formação de cartel. Um dos casos emblemáticos diz respeito à formação de cartel de compras para aquisição de resíduos animais junto a abatedouros por empresas que atuavam no segmento de graxarias e transporte de cargas (PA nº 08700.004404/2016-62), no qual foram celebrados quatro TCCs (Termo de compromisso de cessação de conduta)[6].
Esse não é o único caso no qual a união de concorrentes para realizarem compras de insumos foi tratada como um cartel. Apenas a título ilustrativo, relembro o caso do cartel das laranjas[7], no qual empresas da indústria de sucos teriam combinado preços de compra da fruta entre 1999 e 2006, como forma de pressionar os pequenos e médios produtores de laranja.
Também a CMA, autoridade antitruste britânica, possui investigação em curso em relação à compra de veículos em final de vida por parte das montadoras automobilísticas[8], os chamados ELV (end of life vehicles), conduta essa que vem sendo investigada como cartel.
Na verdade, há inúmeros precedentes de cartéis de compras em outras jurisdições, como o caso da compra de baterias de carro para a reciclagem, na União Europeia[9], e da recompra de aparelhos celulares, conduzido pela autoridade sul-coreana (KFTC)[10].
Um ponto que me parece comum nos casos mencionados acima é a existência de um grande poder de mercado do comprador em relação ao vendedor, em uma situação de assimetria de poder, na qual o setor comprador possui maior concentração e poder econômico do que os vendedores. De fato, parece ser pouco provável que um cartel de compra possa ser implementado sem que os compradores dominem uma porção significativa do respectivo mercado relevante.
Destaco, contudo, que o cartel é considerado como uma infração ilícita per se, afastando-se quaisquer argumentos acerca da regra da razão. Assim, linhas de defesa que aleguem a eficiência da conduta ou do baixo poder de mercado dos cartelistas tendem a não ser admitidos pelo Tribunal do Cade[11], os quais podem ser enquadrados como cartelistas mesmo que não detenham poder de monopsônio.
Diante disso, o que diferencia um cartel de compras de um acordo de compras? Entendo que a diferença está no conluio, ou seja, na implementação de uma aliança de forma sub-reptícia. O acordo de compras é uma estratégia comercial lícita, a qual é formal, conhecida e, portanto, sujeita ao controle de estruturas do Cade. Já o cartel é formado por meio de um conluio, ou seja, de um ardil, no qual os supostos concorrentes ocultam a sua aliança, a qual é implementada de forma dissimulada.
Assim, para se diferenciar uma cooperação lícita entre concorrentes da existência de um conluio ilícito, e se dar maior segurança jurídica ao mercado e aos envolvidos, a jurisprudência do Cade tem analisado os acordos de compras entre concorrentes como um ato de concentração, conferindo a esse tipo de acordo o tratamento similar ao de um contrato associativo.
Para a configuração do acordo associativo, o nomen juris dado ao referido acordo pelos participantes é absolutamente irrelevante. O que importa é saber se as empresas estão se associando para o compartilhamento dos riscos e resultados da atividade econômica e se as partes contratantes são concorrentes no mercado relevante objeto do contrato, como previsto na Resolução CADE nº 12/2015.
Aponto, ainda, que o §1º do art. 2º da Resolução CADE nº 12/2015 é expresso ao afirmar que ela se aplica também aos acordos de aquisição de bens e serviços, como se dá no caso concreto.
Precisamente diante do acima exposto, este Conselho tem analisado os acordos de compras entre concorrentes por meio de Processo Administrativo para Análise de Ato de Concentração Econômica (AC), conforme o procedimento descrito nos art. 107 ao art. 134 do Regimento Interno do Cade.
Relembro, por exemplo, o Ato de Concentração n° 08012.00001/2001-16, relativo à formação da joint venture “Covisint” entre a General Motors, Ford, Renault e outras montadoras, a qual envolvia a criação de um empreendimento para operar no mercado on-line e efetuar a compra de peças, componentes e serviços pela indústria automobilística. Nesse caso, este Tribunal, nos termos do voto do conselheiro Cleveland Prates, entendeu ser necessário avaliar, entre outras questões, a “potencialidade para o exercício do poder de monopsônio”[12], o que foi feito pelo exame das participações de mercado de cada montadora. Decerto que esse tipo de avaliação somente poderia ser levado a cabo no âmbito de um ato de concentração (AC), uma vez que este tipo de exame implica em se requisitar informações sigilosas das empresas atuantes no mercado, efetuar-se o levantamento das participações de cada concorrente e comparar-se os volumes de compra com os volumes de venda dos diversos fornecedores.
Este tribunal também avaliou a operação entre SADIA, DANONE e CARGILL para a constituição de um consórcio de compras como um ato de concentração. No referido caso, relatado pelo então conselheiro Ricardo Villas Bôas Cueva, foi reafirmado o precedente do conselheiro Cleveland Prates, apontando-se que três fatores devem ser avaliados nesses tipos de operação:
[...] a despeito das eficiências e possíveis aumentos na concorrência que os B2Bs podem gerar devido sua natureza cooperativa, a conseqüente cooperação entre as empresas também pode facilitar condutas anticoncorrenciais, tais como: (i) possibilidade de aquisições conjuntas levarem ao exercício do poder de monopsônio; (ii) facilitar a colusão e coordenação entre concorrentes, devido a facilidade de compartilhamento de informações; e (iii) possibilidade de implementação de práticas exclusionárias que aumentem os custos dos rivais[13].
No caso acima referido, o consórcio de compras não só foi analisado por meio de um ato de concentração, como este Tribunal ainda impôs remédios. A operação foi aprovada, mas foi determinada a exclusão de uma cláusula contratual, “para que as consorciadas não sejam obrigadas a utilizar o consórcio como único meio de compras”[14].
Em decisão mais recente, emitida pela área técnica do Cade, o simples fato de as empresas Alelo e Conectcar se associarem para a seleção comum de fornecedores foi entendida como um contrato associativo. Transcrevo, in verbis, o trecho pertinente do parecer técnico, que tratou a operação como um contrato associativo:
15. Como visto, o presente Ato de Concentração (“AC”) não versa sobre uma típica operação de fusão ou de aquisição de ativos ou participação societária entre as Requerentes, mas sobre uma parceria que tem por objetivo a seleção conjunta de potenciais fornecedores de serviços de instalação, operação e manutenção de redes de antenas de leitura de tags baseadas em tecnologia AVI. Trata-se, portanto, de um contrato associativo celebrado entre empresas concorrentes com vistas à seleção e contratação de fornecedores de serviços que servem de insumo às suas atividades.[15][grifei]
Reconheço que a jurisprudência do Cade ainda necessita de melhor sistematização a respeito dos critérios para análise dos acordos de cooperação entre concorrentes. Contudo, há uma longa e histórica linha de precedentes que afirma que, nessas operações, deve-se avaliar o risco de exercício do poder de monopsônio, a possibilidade de implementação de práticas exclusionárias e os possíveis efeitos colusivos da troca de informações concorrencialmente sensíveis.
Parece-me complexo avaliar os critérios acima listados fora de um processo de controle de concentração, ressalvados os casos nos quais a ausência do poder de mercado seja evidente. Por esse singelo motivo, entendo que – observados os valores de faturamento do art. 88 da Lei de Defesa da Concorrência – os acordos de compras entre concorrentes devem, em regra, ser objeto de notificação ao CADE, o que deve ser preferencialmente analisado no âmbito de um Processo Administrativo para Análise de Ato de Concentração Econômica (AC).
Entendo, ainda, que acordos de compras são, em geral, empreendimentos nos quais os concorrentes compartilham riscos e resultados, pois serão beneficiados ou prejudicados conjuntamente pelos resultados das compras realizadas em comum. Assim, parece-me que, a priori, tais arranjos preenchem os requisitos do art. 2º da Resolução CADE nº 17, de 2016. De toda forma, devem ser observadas, claro, as particularidades do caso concreto e os demais requisitos previstos na referida resolução e na Portaria Interministerial nº 994/2012, como bem realizado pelo relator.
CASO CONCRETO
No caso concreto, entendo que a avaliação feita pelo relator já se mostra suficiente para afastar os riscos concorrenciais. O argumento mais persuasivo, para a minha convicção, é o fato de os consulentes terem um reduzido poder de compra, à luz dos dados apresentados. Considerando o porte das empresas em questão, que possuem uma operação de âmbito regional e com um volume de operações relativamente modesto, e tendo em vista o tamanho do mercado de compras de materiais de construção, que é de âmbito nacional, não me parece crível que as empresas em questão teriam a capacidade econômica e o poder de mercado suficientes para exercerem um poder de monopsônio.
Como bem explicado pelo relator, tenho que, em linhas gerais, a operação não desperta maiores preocupações concorrenciais. De toda forma, seguindo os precedentes deste Tribunal, entendo que devem ser analisados os seguintes fatores:
Possibilidade de exercício abusivo do poder de monopsônio;
Troca de informações concorrencialmente sensíveis, o que poderia facilitar uma estratégia colusiva; e
Aumento do custo dos rivais, por meio de práticas exclusionárias.
Quanto à primeira teoria, informam as consulentes que a sua participação no mercado de compras de materiais de construção é significativamente inferior à 20%. Não me parece crível, como já indiquei no início desse tópico, que esse patamar de participação no mercado relevante poderia levantar maiores preocupações concorrenciais relacionadas ao exercício do poder de monopsônio.
Note-se que, nesse aspecto, a consulta é respondida com base nos dados apresentados pelas consulentes, não havendo dilação probatória nessa via processual. Se as premissas narradas pelas consulentes não forem aderentes à realidade, claro está que os efeitos vinculantes referidos no art. 9º da Resolução CADE nº 12/2015 serão inaplicáveis, eis que se estará diante de situação diversa da analisada na consulta.
Quanto à segunda teoria do dano, as consulentes narram expressamente que não trocarão informações concorrencialmente sensíveis entre si. Assim, tenho que não a nada a ser comentado, nesse ponto. Se houver troca de informações sensíveis no correr da implementação da estratégia comercial em exame, será por conta e risco das concorrentes, as quais estarão sujeitas às sanções da Lei de Defesa da Concorrência, como qualquer outra empresa. Não vejo, portanto, uma dúvida a respeito da interpretação da legislação ou da regulamentação do Cade a ser dirimida, no presente aspecto.
Sobre a teoria do aumento dos custos dos rivais, as consulentes não narram a existência de estratégia para a formalização de contratos de exclusividade ou de integrações verticais com os seus fornecedores, aspecto, portanto, que não está sendo avaliado nesta consulta.
Diante desse quadro, parece-me que seria um ônus excessivo determinar-se que as consulentes, após apresentarem a presente consulta, fossem ainda obrigadas a formalizar um ato de concentração, quando à toda evidência a operação não parece despertar maiores problemas concorrenciais diante da aparente ausência de poder de mercado. Entendo que, nesse caso, exigir que a operação fosse reanalisada no âmbito de um ato de concentração seria um excesso de cautela, o qual não parece estar alinhado com o princípio constitucional da eficiência e com os princípios norteadores do processo administrativo federal, previstos no art. 2º da Lei 9.784, de 1999.
Registro, por dever de ofício, que a consulta não pode ser usada como um sucedâneo da análise de atos de concentração, devendo se coibir eventuais abusos. Contudo, há que se ter alguma latitude e flexibilidade diante de operações atípicas, que possam gerar dúvida quanto ao seu enquadramento, como ocorre no caso em tela.
Assim, tendo as consulentes apresentado uma consulta suficientemente instruída, e não tendo sido verificados maiores problemas concorrenciais, entendo que nada impede que esta autoridade, no bojo da própria consulta, já permita diretamente a realização da operação, sem a necessidade de apresentação de um novo ato de concentração, de caráter meramente cartorial.
Deixo claro, todavia, que tal premissa considera como verdadeiros e fidedignos os dados e informações apresentados na consulta. Se os dados não forem legítimos, ou se a operação for implementada de forma diversa da descrita na consulta, nada impede que este Tribunal, ao constatar tal fato, abra um procedimento administrativo para apuração de ato de concentração econômica (APAC) e, se for o caso, determine a notificação da operação, com as sanções pertinentes. Ou mesmo que apure eventual infração concorrencial por meio do controle de condutas, se as partes adotarem uma estratégia anticompetitiva diversa da que foi descrita no objeto da consulta.
Por outro lado, as consulentes narram, no corpo do memorando de entendimento juntado aos autos, uma outra operação estranha ao objeto da consulta, a qual poderá ou não ser implementada em algum momento futuro. As consulentes descrevem a possibilidade de [ACESSO RESTRITO]. Essa parte da operação não foi objeto da consulta, até mesmo porque se trata de uma operação em tese. Portanto, sua licitude ou ilicitude não está sendo analisada por este Tribunal, no presente momento, como bem esclarecido pelo Conselheiro-Relator.
Alerto ainda que, se as empresas decidirem por prosseguir na operação acima referida, essa é uma nova operação, a qual precisará ser devidamente notificada a esta autoridade e que não faz parte do objeto da presente consulta.
Dispositivo
Diante do exposto, entendo que, como regra, acordos de compras entre empresas concorrentes devem ser tratados como acordos associativos, para os fins do art. 88 da Lei de Defesa da Concorrência. Por esse motivo, tais operações precisam ser previamente notificadas ao Cade por meio de um Processo Administrativo para Análise de Ato de Concentração Econômica (AC), quando envolverem empresas que tenham faturamento superior ao previsto na Portaria Interministerial nº 994/2012, observados os demais requisitos previstos na Resolução Cade nº 17, de 2016.
Acordos de compra entre concorrentes que não tenham sido notificados ao Cade, seja por meio de ato de concentração, seja por meio de consulta, podem ser enquadrados como prática de cartel, hipótese na qual tais arranjos podem ser tratados como atos ilícitos per se. Havendo dúvida sobre a licitude de uma estratégia comercial de compras conjuntas, as empresas envolvidas podem submeter a questão ao Cade por meio de consulta, como feito no caso concreto, ou podem notificar a operação por meio de ato de concentração (AC), ainda que com o pedido de não conhecimento.
De acordo com a jurisprudência desta autoridade, no exame dos acordos de compra, três elementos devem ser particularmente avaliados:
possibilidade de as aquisições conjuntas levarem ao exercício do poder de monopsônio;
possibilidade de o compartilhamento de informações concorrencialmente sensíveis facilitar a execução de uma prática colusiva; e
possibilidade de implementação de práticas exclusionárias, que aumentem os custos dos rivais.
No caso concreto, acompanho o Relator por entender que a operação não desperta maiores problemas concorrenciais. Assim, embora entenda que os acordos de compra precisam, em regra, ser notificados por meio de ato de concentração, parece-me que o exame da estratégia delineada no caso em tela permite, a priori, afastar as preocupações concorrenciais mais imediatas, tendo em vista ser remota a probabilidade de exercício do poder de monopsônio.
Cumpre destacar que a consulta deve ser analisada e respondida com base nas informações prestadas pela parte consulente, na forma do art. 7º da Resolução CADE nº 12/2015. Nesse caso, se a operação for implementada de forma diversa da descrita nos autos, pode a empresa vir a ser responsabilizada por meio de controle de condutas, ou mesmo de procedimento administrativo para apuração de ato de concentração (APAC).
Esclareço, por oportuno, que a presente consulta não analisou [ACESSO RESTRITO]. Essa operação, se for ser efetivamente implementada, deverá ser previamente notificada ao Cade, na forma do art. 88 da Lei de Defesa da Concorrência.
Diante da notícia veiculada na imprensa de possível integração das áreas comerciais das empresas em uma única estrutura[16], e tendo em vista a possibilidade de realização da operação descrita pelas consulentes, recomenda-se, desde já, que as consulentes observem o “Guia para Análise da Consumação Prévia de Atos de Concentração Econômica” deste Conselho, em especial os itens 2.1 (Protocolo Antitruste), 2.2 (Clean Team) e 2.3 (Acesso à Informação). Alerto, por oportuno, que a integração das áreas comerciais em uma única estrutura não corresponde ao objeto da consulta em julgamento, sendo certo que uma das premissas da presente resposta é que as áreas de compras das consulentes continuarão operando de forma separada e autônoma.
Por fim, deixo claro que este Tribunal não examinou a legalidade ou ilegalidade das cláusulas constantes no memorando de entendimentos (SEI 1350866) estranhas ao objeto da consulta, como ocorre no caso da cláusula 4ª e seguintes do referido documento, notadamente das cláusulas 5.1 e 5.2. Por tal razão, deixo de me manifestar a respeito da eventual licitude ou ilicitude dos referidos dispositivos, os quais poderão voltar a ser examinados em sede de controle de condutas, se for esse o caso.
Feitos os presentes registros, acompanho integralmente o voto do Relator.
É como voto.
GUSTAVO AUGUSTO FREITAS DE LIMA
Conselheiro-Relator
(assinado eletronicamente)
____________________________
SEI 1350860
GALBRAITH, John. American capitalism: The concept of countervailing power. Routledge, 2017.
No original: “Conventional wisdom suggests that, relative to small buyers, large buyers have an advantage in obtaining price concessions from sellersar, in Galbraith’s (1952) terms, that size confers countervailing power. The conventional wisdom has been verified by a number of empirical studies.” In SNYDER, Christopher M. A dynamic theory of countervailing power. The RAND Journal of Economics, p. 747-769, 1996.
IOZZI, Alberto; VALLETTI, Tommaso. Vertical bargaining and countervailing power. American Economic Journal: Microeconomics, v. 6, n. 3, p. 106-135, 2014.
DA COSTA, Carolina Saito; DOUER, Zack. Grupos de compras: cooperação ou colusão?. Revista de Defesa da Concorrência, v. 6, n. 1, p. 120-155, 2018.
DESPACHO PRESIDÊNCIA Nº 96/2021 (SEI 0923258)
PA 08700.000729/2016-76; 08700.000738/2016-67; e 08700.000739/2016-10.
Case No: CA-2023-000581 & CA-2023-000582 (https://www.gov.uk/cma-cases/suspected-anti-competitive-conduct-in-relation-to-the-recycling-of-end-of-life-vehicles#full-publication-update-history)
Caso “Car Battery Recycling”: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/IP_17_245
Caso Telecom: https://globalcompetitionreview.com/article/kftc-sanctions-mobile-telecoms-buyer-cartel
A jurisprudência do CADE normalmente considera cartéis como ilícitos per se ou por objeto: “cartéis geram apenas os efeitos negativos do aumento de poder de mercado, sem qualquer efeito de aumento de eficiência. Portanto, os cartéis, particularmente, os cartéis clássicos são, sem qualquer ambiguidade, nocivos ao bem-estar dos consumidores, e são consequentemente um delito per se, sem possibilidade de qualquer mitigação, por argumentos da regra da razão.”. Voto do Relator Luiz Carlos Delorme Prado no PA nº 08012.002127/2002-14. Outros casos, também, ilustram esse posicionamento: PA nº 08700.005639/2020-58; 08700.007278/2015-17; 08700.005789/2015-02 08012.002299/2000-18 08012.004039/2001-68 dentre vários outros.
Ato de Concentração n° 08012.00001/2001-1, Conselheiro-Relator: Cleveland Prates Teixeira, SEI 0437663.
Ato de Concentração °08012.003632/2001-97, Requerentes: Sadia SA (“Sadia”), Cargill Agrícola SA (“Cargill”) e Danone SA(“Danone”). Relator Ricardo Villas Bôas Cueva, 29.09.2004, SEI 0439426.
SEI 0439426, p. 295.
PARECER Nº 1/2022/CGAA3/SGA1/SG, SEI 1009415.
https://www.infomoney.com.br/business/cassol-e-todimo-unem-forcas-para-concorrer-com-varejistas-globais-de-construcao/
| Documento assinado eletronicamente por Gustavo Augusto Freitas de Lima, Conselheiro, em 05/04/2024, às 19:33, conforme horário oficial de Brasília e Resolução Cade nº 11, de 02 de dezembro de 2014. |
| A autenticidade deste documento pode ser conferida no site sei.cade.gov.br/autentica, informando o código verificador 1370393 e o código CRC 9A468FAB. |
Referência: Processo nº 08700.001177/2024-23 | SEI nº 1370393 |