Ministério da Justiça e Segurança Pública - MJSP
Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE
SEPN 515, Conjunto D, Lote 4, Edifício Carlos Taurisano, - Bairro Asa Norte, Brasília/DF, CEP 70770-504
Telefone: (61) 3221-8485 - www.gov.br/cade
Ato de Concentração nº 08700.009905/2022-83
Requerente(s): SustainIt Pte Ltd, Cargill, Incorporated, Louis Dreyfus Company Participations B.V., ADM International Sarl
Advogados(as): Tatiana Lins Cruz, Leonardo Mansur Lunardi Danesi e Victor Oliveira Cotta
Relator: Conselheiro Sérgio Costa Ravagnani
VOTO VOGAL - CONSELHEIRO victor oliveira fernandes
VERSÃO PÚBLICA
voto
Trata-se de Ato de Concentração que consiste na formação de uma joint venture proposto pelas empresas SustainIt Pte Ltd ("SustainIt"), Cargill, Incorporated ("Cargill"), Louis Dreyfus Company Participations B.V. ("LDC') e ADM International SARL ("ADM"), a qual tem por objetivo "desenvolver e operar uma plataforma para padronizar a medição de sustentabilidade para permitir a transformação da cadeira de suprimentos" (SEI 1164572).
O edital que deu publicidade à operação foi publicado no DOU de 09.03.23 (SEI 1200365).
Em 23.03.23, nos termos do Despacho SG 372/2023 (SEI 1209126), a Superintendência-Geral decidiu pela aprovação sem restrições do presente Ato de Concentração, com fulcro no §1º do artigo 50 da Lei 9.784, de 1999, acolhendo como razão de decidir os fundamentos do Parecer n° 107/2023/CGAA5/SGA1/SG/CADE (SEI 1209107).
Em 10.04.23, nos termos do Despacho Decisório nº 16/2023 (SEI 1219596), propus a avocação do Ato de Concentração.
Em 12.04.23, a proposta de avocação foi homologada por unanimidade na 211ª Sessão Ordinária de Julgamento ("SOJ"), com ata publicada em 19.04.2023 (SEI 1223489).
Após a distribuição do processo ao eminente Conselheiro Sérgio Ravagnani e realização de instrução complementar por parte do Conselheiro-Relator, o processo foi incluído na pauta da 216ª Sessão Ordinária de Julgamento (SEI 1247510).
Considerando que a apreciação do processo pelo Tribunal decorre de avocação por mim proposta, apresento o presente voto-vogal com o intuito de explicitar de que forma as preocupações concorrenciais que fundamentara a avocação do feito são endereçadas nesta análise de mérito. Observo, desde logo, que os compromissos assumidos pelas Requerentes no Acordo de Acionistas e, principalmente, no Protocolo Antitruste que foi desenvolvido quando da análise do processo pelo Tribunal, visaram as mencionadas preocupações concorrenciais.
A Seção 1 do presente voto discute brevemente as relações entre antitruste e sustentabilidade. A Seção 2 enquadra a joint-venture proposta pelas Requerentes na lente dos acordos de sustentabilidade (sutainability agreements). As Seções 3 e 4 discutem as duas teorias do dano que embasaram a proposta de avocação veiculada no Despacho Decisório nº 16/2023 (SEI 1219596). A primeira (Seção 3) diz respeito à possibilidade de as Requerentes, que são grandes empresas mundiais de comercialização de commodities, passarem a criar ou impor padrões de sustentabilidade a fornecedores, o que poderia, em tese, implicar a exclusão de fornecedores ou alteração de condições comerciais com esses mesmos fornecedores em benefício das próprias Requerentes. A segunda (Seção 4) está relacionada ao acesso a vantagens indevidas em função da obtenção de dados de concorrentes, fornecedores ou clientes, usuários da nova plataforma, de forma privilegiada, inclusive compartilhando informações concorrencialmente sensíveis.
Antitruste e sustentabilidade: entre convergências e sopesamentos
Nos últimos anos, tem se debatido intensamente quais diretrizes devem informar a análise antitruste de acordos entre competidores que buscam promover aspectos relacionados à "sustentabilidade" ou ao "desenvolvimento sustentável". Nas discussões antitruste recentes, a noção de "sustentabilidade" tem sido tratada como um conceito multidimensional que envolve três componentes principais, quais sejam (i) proteção do meio ambiente (como esforços para reduzir as emissões de carbono, combater as mudanças climáticas, promover a energia renovável e proteger os recursos naturais); (ii) responsabilidade social (envolvendo promoção de direitos humanos, de práticas trabalhistas justas e de bem-estar de comunidades regionais) e (iii) sustentabilidade econômica (garantia da produtividade ao longo do tempo com o uso eficiente e equitativo de recursos).[1]
Dois possíveis motivos estão por trás dessa tendência. Primeiro, desenvolvimentos no direito internacional instigaram o debate sobre como os reguladores nacionais podem auxiliar na aderência a compromissos assumidos em acordos e convenções multilaterais. Segundo, existe uma alegada preocupação de que as empresas podem estar relutantes em desenvolverem projetos cooperativos de sustentabilidade pela possibilidade de descumprimento das regras de defesa da concorrência.
Das discussões normativas sobre as relações entre antitruste e sustentabilidade, identificam-se duas possíveis abordagens normativas.[2] A primeira enxerga o antitruste como uma ferramenta complementar, simbolicamente uma espada, para a promoção de mercados mais sustentáveis do ponto de vista ambiental, social e econômico. A aplicação das leis antitruste a partir de uma perspectiva econômica de consumer welfare seria vista como convergente com os objetivos de sustentabilidade, sobretudo porque ganhos de sustentabilidade podem ser tratados como eficiências econômicas (na forma de eficiências produtivas, dinâmicas ou relacionadas à qualidade).[3] Sob essa abordagem, os objetivos de desenvolvimento sustentável são colateralmente estimulados pela defesa da concorrência, a partir da repressão de condutas anticompetitivas como carteis, que reduzem o incentivo dos agentes de mercado em desenvolverem tecnologias mais sustentáveis.[4]
Alternativamente, uma segunda abordagem envolve considerar flexibilizações da aplicação das regras antitruste, simbolicamente tomadas como um escudo, para proteger iniciativas de sustentabilidade. Essa abordagem tem relevância quando uma determina iniciativa empresarial puder, ao mesmo tempo, ser benéfica para o meio ambiente ou para a sustentabilidade social, mas prejudicial para a promoção da concorrência em si considerada.
Alguns autores têm sustentado que, nessas situações, seria legítimo sopesar os ganhos de sustentabilidade, sobretudo a partir das lentes de qualidade, de eficiências futuras ou eficiências fora do mercado (out-of-markets efficiencies), em contrapartida à diminuição da concorrência.[5] Assim, os benefícios compensatórios de uma determinada conduta anticompetitiva ou fusão seriam tomados não apenas em relação aos consumidores individuais, mas para a coletividade como um todo.
As duas abordagens, que aqui preferimos chamar de abordagem de convergência e abordagem de sopesamento, atraem críticas distintas. A permanência ao padrão de consumer welfare standart é acusada de ser incapaz de considerar adequadamente benefícios na forma de sustentabilidade. Como discutido recentemente no âmbito da OCDE, "é bastante simples perceber que os padrões de proteção da concorrência e do bem-estar do consumidor não estão bem equipados para considerar situações em que possa haver uma redução da concorrência que resulte em benefícios ambientais substanciais" (tradução livre).[6]
Por outro lado, a abordagem de sopesamento levanta uma série de questões sobre como ela pode ser implementada sem perder a previsibilidade, o rigor e a uniformidade da interpretação das regras de defesa da concorrência[7]. Concretamente, o sopesamento de benefícios de sustentabilidade impõe questões como qual o tipo de sustentabilidade que pode ser considerado e como medir o repasse dos benefícios de sustentabilidade para os indivíduos não-consumidores.[8] Diante dessas dificuldades, alguns autores têm argumentado que o "antitruste verde" pode acabar prejudicando tanto a concorrência, quanto a própria sustentabilidade, sobretudo porque pode suprimir as forças de concorrência (que em geral aumentam o incentivo de implementar tecnologias sustentáveis) e pode acabar protegendo carteis de greenwashing.[9]
No contexto desses debates acadêmicos, nos últimos três anos, jurisdições como Holanda[10], Grécia[11], Alemanha[12], Áustria, Reino Unido[13] e União Europeia[14] publicaram documentos orientativos e sinalizaram revisões dos seus guidelines sobre acordos entre concorrentes com a finalidade de fornecer à comunidade empresarial orientações mais previsíveis acerca da licitude de iniciativas voltadas à promoção de tecnologias mais amigáveis ao meio ambiente e às finalidades de desenvolvimento sustentável social e econômico. A Comissão Europeia conferiu especial destaque ao tema na Revisão das suas Diretrizes sobre a Aplicabilidade do Artigo 101 do TFUE aos Acordos Horizontais de Cooperação. A versão final do guia, publicada em 01 de junho de 2023, dedicou um capítulo inteiro às discussões sobre "acordos de sustentabilidade" (sustainability agreements).
Todavia, há uma grande assintonia nas abordagens adotadas em cada uma dessas jurisdições até o momento.[15] As novas diretrizes da União Europeia, por exemplo, se mantiveram em um paradigma ortodoxo de consumer welfare.[16] De fato, a versão final do guia dispõe que os efeitos restritivos da concorrência de acordos horizontais poderiam ser compensados por "benefícios coletivos". Contudo, essa compensação só poderia ocorrer sob condições muito estritas, em especial quando as partes dos acordos demonstram que "parcela dos benefícios coletivos que se acumula para os consumidores no mercado relevante, possivelmente junto com os benefícios individuais de valor de uso e não-uso que se acumulam para esses consumidores, supera o dano sofrido por esses consumidores como resultado da restrição concorrencial" (traduções livres).[17]
Por outro lado, países como Áustria e Holanda tem excepcionado acordos horizontais de sustentabilidade sob a lente de cláusula legal de interesse público ou de imunidade antitruste. Nesse sentido, a Áustria tomou uma decisão inovadora de reformar a sua lei de defesa da concorrência para introduzir uma imunidade antitruste para acordos de sustentabilidade. O § 2 para. 1 do Cartel Act passou a prever que, para fins de isenção de acordos horizontais da proibição de carteis, "considera-se que os consumidores desfrutam de uma parcela justa dos benefícios resultantes de melhorias na produção ou distribuição de bens ou da promoção do progresso técnico ou econômico, se esses benefícios contribuírem substancialmente para uma economia ecologicamente sustentável ou neutra em relação ao clima" (tradução livre).[18] A lei não deixa claro, porém, quão significativa ou substancial deve ser uma contribuição de sustentabilidade de um acordo horizontal sustentável para que a isenção seja aplicável.[19]
De maneira similar, a autoridade antitruste holandesa, que assumiu grande protagonismo no debate sobre sustentabilidade nos últimos anos, editou em 2021 uma atualização do seu draft de Diretrizes de Sustentabilidade, no qual se prevê expressamente a possibilidade de compensar efeitos anticompetitivos com ganhos de sustentabilidade fora do mercado (out-of-markets efficiencies).
Nesse sentido, a Diretriz dispõe que "os acordos de sustentabilidade podem trazer benefícios tanto para os consumidores diretos como para a sociedade, no sentido mais lato do termo" e estabelece que "não é exigida uma compensação integral para os acordos que reduzem o impacto ambiental do setor quando estão reunidas três condições: (i) que o acordo evite danos ambientais; (ii) que contribua eficazmente para o cumprimento de uma norma regulamentar internacional ou nacional vinculativa ou para a realização de um objetivo político concreto; e (iii) que a medida seja eficiente em termos de custos" (tradução livre).[20]
Diante dessa discussão global, o que acredito que seja oportuno para o Cade é primordialmente identificar os casos de acordos de sustentabilidade que, a princípio, não geram preocupações concorrenciais relevantes ou, ainda, identificar quais são as condições que devem ser cumpridas pelos acordos de sustentabilidade para que façam jus a um safe harbour antitruste. Essa abordagem equivaleria reconhecer o papel da Lei de Defesa da Concorrência na promoção iniciativas sustentáveis que não geram riscos concorrenciais, sem abandonar um paradigma tradicional de consumer welfare standard.
Como discutido acima, são na realidade absolutamente excepcionais os casos de acordos horizontais de sustentabilidade que demandaram exercícios de sopesamento ou avaliação de eficiências na forma de benefícios genéricos à coletividade. Logo, mesmo firme na sua missão de preservar a competição não distorcida nos mercados, o Cade tem muito a contribuir com o debate, reconhecendo zonas de convergência, em que acordos horizontais promovem sustentabilidade e são em geral pró-competitivos.
A definição de diretrizes jurisprudenciais nesse sentido é especialmente relevante porque não há no Brasil, à semelhança das jurisdições estrangeiras, qualquer guia orientativo para acordos horizontais que fogem à definição de carteis hardcore. Além disso, especificamente em matéria de sustentabilidade, são escassos na jurisprudência da autarquia casos que forneçam alguma orientação.[21]
Assim, considero que o presente ato de concentração é uma excelente oportunidade para fixar algumas diretrizes orientativas para colaborações entre concorrentes voltadas à promoção de desenvolvimento sustentável.
Funcionamento da joint-venture como acordo de sustentabilidade
A operação em tela visa à formação de uma plataforma voltada às atividades de: (i) padronização de metodologias de medição de sustentabilidade na cadeia global de alimentos; (ii) gestão dos dados de sustentabilidade coletados pela plataformas a partir de metodologias alinhadas de coleta, cálculo, validação e visualização dos dados de sustentabilidade; e (iii) divulgação, agregamento e comparação de desempenho de sustentabilidade em diferentes áreas materiais de fornecedores para seus respectivos clientes.
De acordo com o Formulário de Notificação (SEI 1194252), a plataforma foi desenhada para agregação de dados de qualquer entidade (empresa ou organização) que atua em qualquer etapa da cadeia global de suprimentos alimentícios e agrícolas. Os diversos participantes da cadeia de suprimentos reportarão à plataforma dados específicos de sustentabilidade, o que inclui (i) dados de rastreabilidade (informações sobre onde o produto foi produzido); (ii) dados ambientais colhidos ao longo da cadeia (dados sobre práticas agrícolas, o consumo de água, produtos químicos e energia, avaliações de desmatamentos) e (iii) dados relativos aos aspectos sociais e econômicos de sustentabilidade (cobrem áreas como educação, proteção à criança, rendimento mínimo, direitos humanos, trabalho forçado, produtividade). A intenção é que a plataforma forneça aos compradores informações cumulativas sobre as métricas de sustentabilidade dos produtos ao longo das diversas fases da cadeia de suprimentos.
Para exemplificar essa dinâmica, as Requerentes juntaram aos autos uma ilustração da cadeia de suprimentos e fluxos de informação (Figura 1 abaixo).
Figura 1 – Cadeia de suprimentos e fluxo de informação
Fonte: SEI 1194252
Ainda de acordo com as Requerentes, após os dados desses participantes da cadeia serem inseridos na plataforma, eles poderão ser analisados e utilizados em cálculos métricos para produzir medições de sustentabilidade de acordo com metodologias industriais geralmente disponíveis. As Requerentes dão como exemplos dados sobre o risco de proteção à criança associado a uma cadeia de suprimentos específica ou intensidade total de carbono de uma cadeia de suprimentos. Ainda de acordo com as Requerentes:
25. Esses insights podem ser compartilhados com as entidades relevantes e partes interessadas que estão envolvidas na cadeia de suprimentos – quer dentro da própria cadeia de suprimentos ou como cliente final. Por exemplo, se uma fazenda que cultiva café principalmente para o Fornecedor A, mas também vende por meio de um grupo de agricultores locais, for reportada por questões de proteção à criança, será levantado um risco de proteção à criança para cada cliente final que tenha recebido café cultivado nessa fazenda (SEI 1194252).
Assim, os participantes intermediários da cadeia de suprimento (como empresas de trading e compradores de commodities agrícolas), bem como os compradores finais poderão acessar informações de métricas sobre a responsabilidade total de sustentabilidade de cada participante da cadeia em relação ao produto entregue ao cliente final.
No que se refere ao conteúdo desses dados, as Requerentes explicaram que "a plataforma não gera novos dados" e os seus objetivos são simplesmente os de "simplificar o gerenciamento de informações já disponíveis", "melhorar a apresentação e o reporte das informações disponíveis" e "reduzir os custos para compradores e vendedores reunir esses dados e criar percepção e entendimentos significativos a partir deles" (SEI 1194266).
De acordo com as Requerentes, os dados que serão trocados na plataforma já são existentes, mas atualmente são compartilhados de forma desorganizada entre os atores da cadeia de suprimentos, por meio de vários formatos eletrônicos (base de dados, Excel, Word, PDF, etc). Portanto, a joint venture tende a gerar um significativo ganho na forma de gerenciamento e agregação dessas informações na cadeia de suprimentos, uma vez que a plataforma permitirá o processo de uma quantidade maior de dados, gerando métricas mais precisas, com possibilidade de atualização e complementação de dados. Além disso, a plataforma possibilitará que as medidas de sustentabilidade ao longo da cadeia sejam apresentadas de forma comparável, agregável e comunicável, de forma que haja metodologias padronizadas entre todos os participantes.
No que concerne ao papel que a plataforma terá nas transações comerciais no setor, as Requerentes esclareceram que o objetivo da plataforma seria o de simplesmente aumentar a visibilidade de medidas de sustentabilidade de forma a subsidiar o processo de tomada de decisões operacional e empresarial que ocorre fora da plataforma. Assim, a plataforma não seria um marketplace e nem teria funcionalidades para que as empresas e organizações participantes pudessem se comunicar ou se conectar. Em outras palavras, a plataforma não permitiria que empresas de trading e clientes finais fizessem qualquer tipo de transação dentro desse ambiente digital.
Apesar desses esclarecimentos, ponderei no Despacho Decisório de Avocação que, à altura da aprovação da operação pela Superintência-Geral do Cade, não estava claro quais padrões de sustentabilidade seriam adotados pela plataforma para gerenciamento e transparência das informações entre comprador e vendedor.
Além disso, observei que, durante a instrução, a Superintência-Geral do Cade questionou especificamente as Requerentes sobre se a plataforma poderá ser utilizada para adoção de novas métricas de sustentabilidade a serem criadas pelo joint venture ou se apenas trabalhará com métricas já existentes e de uso geral no mercado. Ocorre que a resposta dada pelas Requerentes na instrução do ato de concentração não descartava a possibilidade de criação dessas novas métricas. Transcreve-se a referida resposta contida na petição SEI 1194266:
76. Não é a intenção das Requerentes criar métricas totalmente novas. O objetivo da Plataforma é expandir a utilização de métricas reconhecidas pela indústria já disponíveis e trabalhar com outros organismos da indústria, e organizações não governamentais para melhorar a definição e adequação das métricas. Esta via também pode ser utilizada para ajudar a criar novas métricas, se necessário, mas serão conduzidas pela indústria e pedidos externos, não pelas Requerentes ou usuários diretamente.
(...) 78. Tal como acima mencionado, o objetivo não é que as Requerentes ou usuários da Plataforma definam novas ou específicas métricas de sustentabilidade da Plataforma. No entanto, como haverá uma base de usuários extremamente experientes, bem qualificados quanto aos princípios e medição da sustentabilidade, pretende-se que a capacidade intelectual disponível dentro da base do usuário seja solicitada para ajudar no desenvolvimento de métricas e melhoras funcionais da Plataforma em direção a dados de sustentabilidade. Isto será, contudo, um processo de envolvimento bem gerido e estruturado.
Diante dessa inconclusividade, nos termos do Despacho Decisório nº 15/2023/GAB5/CADE (SEI 1230086), o eminente Conselheiro-relator solicitou às Requerentes esclarecimentos sobre: (i) quais métricas serão utilizadas na plataforma; (ii) se haverá a criação de padrões/normas/métricas de sustentabilidade para a indústria ou setor de commodities agrícolas; e (iii) se há potencialidade e interesse de atuação da plataforma no segmento de acreditação e certificação na área de sustentabilidade.
Entendo que as respostas dadas pelas Requerentes finalmente esclareceram com precisão o escopo da atuação da plataforma. As Requerentes esclareceram que circunscreveram sua atuação à coleta e sistematização de dados conforme métricas e padrões de sustentabilidades que são criados fora da plataforma. Nesse ponto, destacaram que: "a Plataforma não desenvolverá novas metodologias nem métricas; a Plataforma selecionará as diversas metodologias e formatação dentre as já disponíveis (...) as metodologias e métricas de sustentabilidade são definidas em um ambiente externo que não é controlado por elas e que compreende agências governamentais, ONGs, organizações de consumidores, especialistas, acadêmicos, organizações trabalhistas, organizações ambientais etc." (grifo nosso). (SEI 1242079)
Foi particularmente relevante que as Requerentes tenham esclarecido o sentido da expressão "padronização" utilizada no Formulário de Notificação. Como observado pelo voto-relator "o termo “padronização” não expressa intenção da plataforma em atuar como benchmark provider, ou seja, como definidor de padrões ou definidor de métricas de desempenho de sustentabilidade por conta própria", mas sim a intenção de fornecer uma solução de sistematização de dados de sustentabilidade comparáveis e consistentes que podem ser medidos ou comparados ao longo do tempo por cada usuário. Além disso, as Requerentes advertiram que a plataforma não funcionará como entidade de acreditação/certificação, não terá mecanismos de verificação de dados, nem gerará selo ou rótulo de sustentabilidade para os fornecedores, clientes ou qualquer usuário (SEI 1242079, § 52).
Diante desses esclarecimentos, é possível afirmar que a plataforma instituída pela joint venture constitui um verdadeiro acordo de sustentabilidade voltado a facilitar a sistematização e gestão de dados relacionados a métricas de sustentabilidade sobre atividades de fornecedores ao longo da cadeia global de alimentos. Ainda que a joint venture possua operacionalização autônoma, ela pode ser considerada, em sentido genérico, um acordo horizontal de cooperação entre grandes agentes econômicos com atuação em diferentes segmentos da cadeia de produção de commodities agrícolas.
À luz dos recentes guias internacionais de acordos de sustentabilidade, uma primeira aproximação que poderia ser feita seria tratar a joint venture como um acordo de sustentabilidade de reunião voluntária de informações sobre a cadeia de valor global de alimentos. Esses tipos de iniciativas, a princípio, não despertam preocupações concorrenciais relevantes. Nesse sentido, ao descrever os acordos que são improváveis de gerar efeitos anticompetitivos, o novo guia da União Europeia dispõe que:
527. Nem todos os acordos de sustentabilidade entre concorrentes se enquadram no escopo do Artigo 101. Quando tais acordos não afetam negativamente os parâmetros da concorrência, como preço, quantidade, qualidade, escolha ou inovação, eles não são capazes de suscitar preocupações com relação ao direito da concorrência. A seguir, exemplos de acordos de sustentabilidade que não se enquadram no escopo do Artigo 101. Esses exemplos são ilustrativos e não exaustivos.
530. (…) Acordos para a criação de um banco de dados contendo informações gerais sobre fornecedores que tenham cadeias de valor (in)sustentáveis (por exemplo, fornecedores que respeitem os direitos trabalhistas ou paguem salários dignos); utilizem processos de produção (in)sustentáveis ou forneçam insumos (in)sustentáveis, ou informações sobre distribuidores que comercializem produtos de maneira (in)sustentável, mas que não proíbam ou obriguem as partes a comprar de tais fornecedores ou a vender a tais distribuidores, em geral não restringirão a concorrência e não serão abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 101(3). Essas formas limitadas de troca de informações podem, mais uma vez, ajudar as empresas a cumprir suas obrigações de due diligence de sustentabilidade nos termos da legislação nacional ou da UE. (tradução livre)
Na mesma linha, o Draft guidance on the application of the Chapter I prohibition in the Competition Act 1998 to environmental sustainability agreements da CMA de fevereiro de 2023 dispõe que:
3.9 Um acordo para reunir informações sobre as credenciais de sustentabilidade ambiental dos fornecedores, por exemplo, fornecedores que têm cadeias de valor ambientalmente sustentáveis, que usam processos de produção ambientalmente sustentáveis ou que fornecem insumos ambientalmente sustentáveis, mas sem exigir que as partes comprem (ou se abstenham de comprar) desses fornecedores e sem compartilhar informações sensíveis em termos de concorrência sobre preços ou quantidades compradas desses fornecedores, provavelmente não terá um efeito negativo apreciável sobre a concorrência.
3.10 Da mesma forma, é improvável que um acordo para reunir informações sobre as credenciais de sustentabilidade ambiental dos clientes, por exemplo, clientes que reciclam e descartam adequadamente, mas sem compartilhar informações sensíveis em termos de concorrência sobre os preços ou as quantidades que esses clientes compram, tenha um efeito negativo considerável sobre a concorrência (tradução livre).[22]
Por outro lado, ainda que a joint venture não atue como entidade de certificação e nem seja voltada a criar suas próprias métricas de sustentabilidade, ela pode, em alguma medida, produzir resultados semelhantes aos de um acordo de padronização. Nos termos do novo Guia da União Europeia, esses acordos de sustentabilidade "são usados para especificar os requisitos que os produtores, processadores, distribuidores, varejistas ou prestadores de serviços em uma cadeia de suprimentos devem cumprir em relação a uma ampla gama de métricas de sustentabilidade, como os impactos ambientais da produção".[23]
Ainda de acordo com o referido guia, "os acordos de padronização de sustentabilidade geralmente fornecem regras, diretrizes ou características para produtos e processos em relação a esses indicadores de sustentabilidade e, às vezes, são chamados de sistemas de sustentabilidade. Em geral, são iniciativas privadas e podem variar de códigos de conduta adotados por empresas a padrões conduzidos por organizações da sociedade civil e iniciativas de múltiplas partes interessadas que envolvem empresas em toda a cadeia de valor" (tradução livre).[24]
Mesmo que não envolva a criação de um rótulo ou de um selo específico, o propósito da joint venture é viabilizar a coleta e o processamento de informações geradas por empresas atuantes em diferentes estágios da cadeia de suprimentos alimentícios e agrícolas, com o objetivo de medir o impacto gerado pelas atividades comerciais desses agentes em temas relativos à sustentabilidade. Nesse aspecto, à semelhante de uma entidade instituidora de um sistema de sustentabilidade, a plataforma irá produzir informações relevantes sobre em que extensão os produtores vinculados à plataforma cumprem exigências internas (como governança corporativa, iniciativas sociais, certificação, etc) e regulatórias.
A partir dessas delimitações fáticas, cabe discutir a aplicação das teorias do dano suscitadas no Despacho de Avocação.
Efeitos unilaterais da criação ou imposição de padrões de sustentabilidade
Conforme observado no Despacho Decisório nº 16/2023/GAB4/CADE (SEI 1219596) que fundamentou a avocação deste feito, a primeira teoria do dano aplicável ao caso diz respeito à possibilidade de as Requerentes, que são grandes empresas mundiais de comercialização de commodities, passarem a excluir determinados fornecedores do uso da plataforma, ou impor-lhes condições desarrazoadas de acesso à plataforma, com o intuito de privilegiar determinados fornecedores, em particular, as próprias Requerentes.
Considerando que a plataforma tende a agregar um enorme volume de informações sobre os fornecedores atuantes em diversos elos da cadeia global de alimentar e tendo em vista que há uma preocupação cada vez maior com a conformidade a padrões de sustentabilidade, é provável que os clientes finais passem a tomar decisões informadas sobre quais fornecedores contratar levando em consideração os seus desempenhos de sustentabilidade. Como observado pelo Conselheiro-Relator, as próprias Requerentes admitiram que "os dados da plataforma poderão ajudar seus usuários a tomar decisões que impactem sua cadeia de suprimentos, tendo, portanto, algum grau de influência nas decisões comerciais dos usuários".
Dessa maneira, as Requerentes poderiam, ainda que em tese, utilizar a plataforma como um mecanismo de exclusão de determinados fornecedores, sobretudo daqueles que concorrem diretamente com elas na cadeia de suprimentos de commodities agrícolas, por exemplo. A não participação na plataforma ou a participação sob condições discriminatórias poderia prejudicar fornecedores concorrentes, sobretudo nas situações em que forem levantados riscos de sustentabilidade sensíveis.
Na literatura especializada, o entendimento geral é de que acordos de padronização como a joint venture apresentada geram efeitos positivos para a agenda de sustentabilidade e dificilmente restringem fatores concorrenciais relevantes por objeto.[25] Contudo, para que possam constituir um safe harbour concorrencial, é indispensável que esses acordos preencham alguns critérios, dentre eles a garantia de que o acesso de fornecedores à iniciativa ocorrerá de forma aberta, transparente e sob bases justas, razoáveis e não discriminatórias.[26]
O multicitado guia de acordos entre colaboradores da Comissão Europeia de 2023 prevê nada menos do que sete requisitos para que os acordos de padronização atinjam esse safe harbour , quais sejam:
Em primeiro lugar, o procedimento de desenvolvimento do standard de sustentabilidade deve ser transparente e todos os concorrentes interessados devem poder participar no processo que conduz à seleção do standart.
Em segundo lugar, a norma de sustentabilidade não deve impor às empresas que não desejem participar a obrigação - direta ou indireta - de cumprir o standart.
Em terceiro lugar, as empresas participantes devem permanecer livres para adotar para si próprias uma norma de sustentabilidade mais elevada do que a acordada com as outras partes no acordo (por exemplo, podem decidir utilizar ingredientes mais sustentáveis no seu produto final do que a norma pode exigir).
Em quarto lugar, as partes da norma de sustentabilidade não devem trocar informações comercialmente sensíveis que não sejam necessárias para o desenvolvimento, a adopção ou a modificação da norma.
Em quinto lugar, deve ser assegurado o acesso efetivo e não discriminatório ao resultado do processo de normalização. Isto deve incluir o acesso efetivo e não discriminatório aos requisitos e às condições para a obtenção do selo acordado ou para a adopção da norma numa fase posterior por empresas que não tenham participado no processo de desenvolvimento da norma.
Em sexto lugar, a norma de sustentabilidade não deverá conduzir a um aumento significativo do preço ou a uma redução significativa na escolha dos produtos disponíveis no mercado.
Sétimo, deve existir um mecanismo ou um sistema de monitorização para assegurar que as empresas que adoptam a norma de sustentabilidade cumpram efectivamente os requisitos da norma. (tradução livre) [27]
No mesmo sentido, a proposta de guia da CMA observa que:
3.11. Quando os concorrentes colaboram para desenvolver normas ou códigos de prática do setor com o objetivo de tornar os produtos ou processos mais sustentáveis, é improvável que isso tenha um efeito negativo considerável sobre a concorrência, desde que: (i) os critérios de participação sejam transparentes; (ii) nenhuma empresa seja obrigada a participar da norma se não desejar fazê-lo (embora a norma possa obrigar as empresas que se comprometeram a participar da norma a cumpri-la e possa prever um mecanismo para monitorar essa conformidade); (iii) qualquer empresa pode participar ou se beneficiar dos padrões/códigos de prática em termos razoáveis e não discriminatórios; (iv) as empresas participantes são livres para desenvolver padrões alternativos e vender produtos que não se enquadrem em tais padrões ou códigos; (v) as empresas participantes são livres para ir além das metas mínimas de sustentabilidade estabelecidas pelo padrão.
Assim, para que possamos garantir que não há problemas concorrenciais nesta operação, entendo necessário avaliar se o acesso à iniciativa proposta na joint venture será baseado em critérios transparentes e isonômicos, de modo a afastar qualquer risco de discriminação ou privilégio.
Em resposta à instrução empreendida pelo Conselheiro-Relator, as Requerentes prestaram valiosos esclarecimentos sobre o funcionamento do seu modelo de negócio e sobre quais seriam os critérios de entrada dos fornecedores na iniciativa. A esse respeito, destacaram que:
[ACESSO RESTRITO AO CADE E ÀS REQUERENTES]
Além disso, como destacado pelo eminente Conselheiro-Relator, para afastar os riscos de discriminação, as Requerentes desenvolveram um Protocolo Antitruste juntado aos autos (SEI 1246456) que reflete princípios de acesso transparente e não discriminatório à plataforma.
Dentre as cláusulas mais importantes da plataforma, destaca-se a inexistência de exclusividade, preferência ou privilégio das Requerentes e de quaisquer usuários na utilização da plataforma, de modo que todos os usuários permaneçam livres para contratar plataformas concorrentes, e a proibição da concessão de qualquer vantagem comercial ou preferência às Requerentes em razão da condição de Acionista da empresa. Essas obrigações serão monitoradas por um Chief Compliance Officer.
Em conjunto com as salvaguardas societárias e de governança da joint venture, entendo que os princípios do Protocolo Antitruste vão de encontro às condicionantes para que um acordo de sustentabilidade atinja um safe harbour concorrencial, conforme discutido hoje nas principais iniciativas globais sobre esse tema.
Acesso a informações concorrencialmente sensíveis
Acordos entre concorrentes podem suscitar riscos de acesso a informações concorrencialmente sensíveis. Como bem observado pelo Parecer n° 107/2023/CGAA5/SGA1/SG/CADE (SEI 1209107), existem precedentes do CADE em que se abordou os riscos de coordenação e troca de informações concorrencialmente sensíveis, inclusive em em operações semelhantes, em que os grupos das Requerentes estavam envolvidos.
No caso em tela, ainda que as informações sejam limitadas a métricas de sustentabilidade, é inegável que a plataforma acumulará dados de produtos e serviços ofertados por agentes que atuam em fases distintas da cadeia global de suprimentos que podem ter relevância competitiva para as Requerentes, na sua atuação como comercializadores de commodities agrícolas.
As Requerentes sustentam que os riscos de acesso a informações concorrencialmente sensíveis seriam afastados por salvaguardas na formação societária e na política comercial da joint venture e por decisões técnicas de "compliance by desing" que diminuiriam, senão afastariam, os riscos desse acesso.
Quanto às salvaguardas operacionais e societárias, as Requerentes defenderam que a plataforma incluirá procedimentos para proteger as informações dos clientes (assim como de outros participantes da cadeia de suprimentos, companhias de frete e concorrentes) e limitar o uso de tais informações para cumprir todas as leis aplicáveis e garantir que haja uma barreira de informações entre a joint venture e os acionistas fundadores. Em especial, haveria mecanismos que impediriam que a equipe responsável pela plataforma e pelo manuseio das informações e/ou os diretores da JV compartilhem informações. Do ponto de vista societário, as Requerentes explicaram detalhes da estrutura de governança da joint venture que implicaram a separação entre os assuntos de desenvolvimento do plano de negócios da sociedade, as políticas comerciais das Acionistas e o relacionamento delas com os clientes da plataforma.
Em relação às soluções técnicas e de "compliance by design", as Requerentes apresentaram diversas explicações relevantes sobre o funcionamento do acesso aos dados. Em primeiro lugar, explicam que as informações (dados de sustentabilidade) só serão disponibilizados na plataforma após a celebração de qualquer negociação e contrato. Portanto, deve haver uma relação comercial prévia entre as partes, antes que a plataforma possa apresentar as informações de sustentabilidade ao comprador e ao vendedor em questão Em segundo lugar, explicam que as informações e dados serão visíveis apenas entre fornecedores e clientes envolvidos em uma transação em particular, [ACESSO RESTRITO AO CADE E ÀS REQUERENTES]. Em terceiro lugar, do ponto de vista técnico, a plataforma contaria com uma “zona” única para cada cliente, isto é, partes física e logicamente separadas na nuvem (cloud) do Google, sendo seu acesso restrito aos próprios representantes do cliente – todos os dados armazenados na nuvem seriam encriptados com uma chave única e apenas conhecida pelo cliente.
Adicionalmente, as Requerentes indicam que serão implementadas outras salvaguardas para evitar perda acidental ou compartilhamento de dados, tais como: (i) equipe de suporte independente das Requerentes; (ii) políticas e controles monitoradas por meio tecnologia ou supervisão humana; e (iii) registro de todo o acesso a dados e sua revisão pela equipe de operações de segurança e disponibilização desse registro ao cliente.
A questão-chave que o presente caso suscita é em que medida a previsão dessas salvaguardas que limitam o acesso a informações concorrencialmente sensíveis em instrumentos particulares de formação da joint venture são suficientes ou não para afastar os riscos concorrenciais. Trata-se de avaliação delicada que deve ser ponderada cuidadosamente pelo Tribunal do Cade, inclusive para fins de balizamento de casos futuros.
Ressalta-se que no recente julgamento do Ato de Concentração nº 08700.004293/2022-32 (Requerentes: BASF SE; BMW Holding B.V.; Henkel AG & Co. KGaA; Mercedes-Benz AG; Robert Bosch GmbH; SAP SE; Schaeffler Invest GmbH; Siemens Industry Software GmbH; T-Systems International GmbH; Volkswagen AG; e ZF Friedrichshafen AG), o Tribunal do Cade votou pela aprovação da operação condicionada a restrições que visavam justamente complementar as salvaguardas de compliance concorrencial contidas originalmente no ato de constituição da referida joint venture.
O voto-relator do Conselheiro Gustavo Augusto Freitas de Lima, que foi acompanhado por unanimidade, destacou, por exemplo, que "em que pesem as medidas privadas adotadas para compliance das empresas serem um dos argumentos das Requerentes para justificar a aprovação sem restrições no Brasil, não me parece que elas sejam, por si só, suficientes para afastar as preocupações concorrenciais ora levantadas, diante da escala da operação, dos riscos concorrenciais envolvidos e do histórico anticompetitivo de parte dos envolvidos na operação" (SEI 1164755).
Nesse julgamento, o Tribunal considerou que seria necessário, adicionamento aos instrumentos particulares internos da joint venture, a assunção de compromissos perante o Cade na forma de Acordo de Controle de Concentrações, que disciplinassem o monitoramento e armazenamento das informações trocadas entre os usuários dos Sistemas de TI da joint venture, a nomeação de um Chief Compliance Officer responsável por expedir normas de salvaguardas, bem como por receber e apurar denúncias de violação das normas antitruste e até mesmo o desenvolvimento e a adoção de um software de rastreamento, desenhado para identificar possíveis violações às normas de defesa da concorrência no âmbito das trocas de informações por meio dos Sistemas de TI da joint venture.
Entendo que existem diferenças significativas entre a operação examinada no Ato de Concentração nº 08700.004293/2022-32 e aquela subjacente ao caso em tela, sobretudo porque a plataforma a ser desenvolvida pelas Requerentes não parece envolver o compartilhamento amplo de informações entre concorrentes na forma de um pooling de dados, mas sim viabilizam acessos individualizados de informações entre parceiros comerciais, que não estão amplamente disponíveis para todos os participantes da plataforma e que já contam com soluções sofisticadas do ponto de vista de segurança da informação.
Ao avaliar os documentos apresentados pelas Requerentes, é aparente que o compromisso com a manutenção da integridade concorrencial e a garantia de privacidade das informações é um componente inerente do funcionamento da joint venture. Sua inserção nas fundações jurídicas e operacionais da joint venture garante que não serão medidas transitórias ou contingentes, mas fatores perenes referentes à forma como ela opera.
Trata-se de aspecto relevante à proteção da concorrência e ao manejo responsável das informações sob sua custódia. Quaisquer desvios, tais como a discriminação entre os participantes da plataforma ou a troca indevida de informações sensíveis, poderão ser analisados sob o escrutínio do controle de condutas deste Cade.
Portanto, ao levar em consideração tanto a natureza do compartilhamento de informações proposto pelas Requerentes, como também o compromisso de conformidade demonstrado pelas soluções de compliance by design e protocolos antitruste propostos, concluo que não seria necessário submeter este ato de concentração a um Acordo em Controle de Concentração.
A presença dos princípios de não discriminação e privacidade das informações na constituição da joint venture e no protocolo antitruste, aliada à possibilidade de controle posterior de condutas, estabelece um equilíbrio delicado, mas necessário, entre cooperação e concorrência.
Dispositivo
Acompanho o relator e voto pela aprovação do Ato de Concentração.
VICTOR OLIVEIRA FERNANDES
Conselheiro-Relator
(assinado eletronicamente)
ORGANIZATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT - OCDE. Sustainability and Competition. OECD Competition Committee Discussion Paper, p. 1–52, 2020, p. 11–14.
Para uma sistematização semelhante sobre o papel do antitruste como espada ou escudo das políticas de sustentabilidade, cf. HOLMES, Simon. Climate change, sustainability, and competition law. Journal of Antitrust Enforcement, v. 9, n. 2, p. 354–405, 2020 e NOWAG, Julian. Competition law’s sustainability gap ? Tools for an examination and a brief overview. Nordic Journal of European Law, v. 1, n. 2020, p. 149–165, 2021.
VOLPIN, Cristina. Competition enforcement and sustainability: the odd couple. In: KOKKORIS, Ioannis. Research Handbook on the Law and Economics of Competition Enforcement. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2022, p. 452 (competition can also improve product quality and stimulate investing in greener products and processes, by lowering costs or allowing companies to gain market share).
ORGANIZATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT - OCDE. Sustainability and Competition. OECD Competition Committee Discussion Paper, p. 1–52, 2020, p. 19–20.
Nesse sentido, cf. VAN DIJK, Theon. A New Approach to Assess Certain Sustainability Agreements under Competition Law. Competition Law, Climate Change & Environmental Sustainability, v. 6, n. 3, p. 55–68, 2021 e KINGSTON, Suzanne. Competition Law in an Environmental Crisis. Journal of European Competition Law & Practice, v. 10, n. 9, p. 517–518, 2019.
ORGANIZATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT - OECD. The Consumer Welfare Standard - Advantages and Disadvantages Compared to Alternative. Background note by the Secretariat, p. 1–49, 2023, p. 32.
PEEPERKORN, Luc. Competition Policy is not a Stopgap! Journal of European Competition Law & Practice, v. 12, n. 6, p. 415–418, 2021.
VOLPIN, Cristina. Competition enforcement and sustainability: the odd couple. In: KOKKORIS, Ioannis. Research Handbook on the Law and Economics of Competition Enforcement. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2022, p. 465.
SCHINKEL, Maarten Pieter; TREUREN, Leonard. Green Antitrust: Friendly Fire in the Fight against Climate Change. Amsterdam Law School Legal Studies Research Paper No. 2020-72, p. 1–28, 2020.
Autoriteit Consument & Markt (ACM). Guidelines on Sustainability Agreements – Opportunities within Competition Law (second draft). 2021. Disponível em: https://www.acm.nl/en/publications/second-draft-version-guidelines-sustainability-agreements-opportunities-within-competition-law.
Hellenic Competition Commission. Competition Law & Sustainability. 2020. Disponível em: https://www.epant.gr/files/2020/Staff_Discussion_paper.pdf.
Bundeskartellamt. Offene Märkte und nachhaltiges Wirtschaften - Gemeinwohlziele als Herausforderung für die Kartellrechtspraxis. Disponível em: https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Publikation/DE/Diskussions_Hintergrundpapier/AK_Kartellrecht_2020_Hintergrundpapier.html.
Competition and Markets Authority (CMA). Draft guidance on environmental sustainability agreements. Consulta pública iniciada em 28 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.gov.uk/government/consultations/draft-guidance-on-environmental-sustainability-agreements.
UNIÃO EUROPEIA. Guidelines on the applicability of Article 101 of the Treaty on the Functioning of the European Union to horizontal co-operation agreements. 2023. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/EN/legal-content/summary/guidelines-on-horizontal-cooperation-agreements.html
MALINAUSKAITE, Jurgita. Competition Law and Sustainability: EU and National Perspectives. Journal of European Competition Law and Practice, v. 13, n. 5, p. 336–348, 2022 (identificando cinco iniciativas diferentes no âmbito dos Estados Nacionais europeus e defendendo a necessidade de uma abordagem mais uniforme).
INDERST, Roman; THOMAS, Stefan. Sustainability Agreements in the European Commission’s Draft Horizontal Guidelines. Journal of European Competition Law & Practice, v. 13, n. 8, p. 571–577, 2022, p. 574–575 (destacando que mesmo o conceito de "collective benefits", trazido no guia como possível eficiência a ser apreciada sob o regime do artigo 101 (3) do TFUE, não é desconectado do paradigma de consumer welfare).
UNIÃO EUROPEIA. Guidelines on the applicability of Article 101 of the Treaty on the Functioning of the European Union to horizontal co-operation agreements. 2023, parag. 587. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/EN/legal-content/summary/guidelines-on-horizontal-cooperation-agreements.html
ÁUSTRIA. Federal Cartel Act 2005, as amended effective 10 September 2021. Disponível em: https://www.bwb.gv.at/fileadmin/user_upload/PDFs/Cartel_Act_2005_Sep_2021_english.pdf. Acesso em: 27 jun. 2023[1].
ROBERTSON, Viktoria H.S.E. Sustainability: A World-First Green Exemption in Austrian Competition Law' Journal of European Competition Law & Practice, vol 13 (6) 2022. p. 426-434.
PAÍSES BAIXOS. Netherlands Authority for Consumers and Markets. Second draft version: Guidelines on Sustainability Agreements – Opportunities within competition law. 2021, pp.12-13. Disponível em: https://www.acm.nl/en/publications/second-draft-version-guidelines-sustainability-agreements-opportunities-within-competition-law.
LUZ, Gabriela Pletsch da e SANTOS, Mateus Bernardes. Cooperação empresarial e antitruste: um caminho para o desenvolvimento sustentável?. Revista do IBRAC, 1, 2023, p. 211 (defendendo que “seria, portanto, de grande importância para o panorama concorrencial brasileiro que o Cade fornecesse um Guia com balizas claras sobre acordos de cooperação entre concorrentes, inclusive para abordar arranjos cooperativos com objetivos sustentáveis”).
REINO UNIDO. COMPETITION AND MARKETS AUTHORITY (CMA). Draft guidance on the application of the Chapter I prohibition in the. Competition Act 1998 to environmental sustainability agreements. Disponível em: https://www.gov.uk/government/consultations/draft-guidance-on-environmental-sustainability-agreements
Ver nota de rodapé 14.
Idem.
VOLPIN, Cristina. Competition enforcement and sustainability: the odd couple. In: KOKKORIS, Ioannis. Research Handbook on the Law and Economics of Competition Enforcement. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2022, p. 459 (“agreements that set a standard, a labelling system or a code of conduct, when participation in the process is open and transparent and access is possible on a fair, reasonable and non-discriminatory basis, are unlikely to be anticompetitive”).
PARTITI, Enrico. Voluntary Sustainability Standards Under EU Competition Law. in: Regulating Transnational Sustainability Regimes, Cambridge: Cambridge University Press, 2022, v. 10, p. 111–115 e ORGANIZATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT - OCDE. Sustainability and Competition. OECD Competition Committee Discussion Paper, p. 1–52, 2020, p. 22.
Comissão Europeia. Public consultation on the draft revised Horizontal Block Exemption Regulations and Horizontal Guidelines, parágrafos 569 e 572. Disponível em: https://competition-policy.ec.europa.eu/public-consultations/2022-hbers_en.
| Documento assinado eletronicamente por Victor Oliveira Fernandes, Conselheiro, em 27/06/2023, às 23:03, conforme horário oficial de Brasília e Resolução Cade nº 11, de 02 de dezembro de 2014. |
| A autenticidade deste documento pode ser conferida no site sei.cade.gov.br/autentica, informando o código verificador 1251468 e o código CRC 8159C04E. |
Referência: Processo nº 08700.009905/2022-83 | SEI nº 1251468 |