Ministério da Justiça e Segurança Pública - MJSP
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Ato de Concentração nº 08700.009905/2022-83
Requerentes: Sustainit Pte Ltd, Cargill, Incorporated, Louis Dreyfus Company Participations B.V. e Adm International Sarl
Advogados(as): Tatiana Lins Cruz, Leonardo Mansur Lunardi Danesi e Victor Oliveira Cotta
Relator(a): Sérgio Costa Ravagnani
VOTO VOGAL – CONSELHEIRO gustavo augusto freitas de lima
VERSÃO DE ACESSO PÚBLICO
voto
Trata-se o caso dos autos de uma operação para criação de uma Joint-Venture cujos sócios são algumas das principais empresas globais do setor de alimentos. Constam, dentre os requerentes da operação, empresas tais com a Cargill (empresa de produção e processamento de alimentos com sede nos EUA), a Archer Daniels Midland – ADM (empresa norte-americana de processamento de grãos de cereais e de plantas oleaginosas), a Louis Dreyfuss (empresa francesa, comercializadora e processadora global de produtos agrícolas) e a SustainIt (empresa britânica de TI e Consultoria de Dados). Em linhas gerais, o objetivo da joint-venture ora em análise é a coleta, organização e processamento de dados relativos à produção de commodities agrícolas. A operação tem por objetivo viabilizar a colaboração entre as requerentes para coletar dados dos seus fornecedores, tais como dados de produtividade, de acesso à água, de pegada de carbono, de uso de fertilizantes e de outras informações estratégicas de produtores rurais de todo mundo. O foco desta coleta de dados seria, particularmente, os produtores de cacau, café, soja e de outras commodities agrícolas listadas no plano de negócios.
Acompanho, em linhas gerais, a análise feita pelo Conselheiro-Relator. Todavia, entendo que cabe tecer algumas considerações adicionais quanto à fundamentação da minha decisão, as quais podem auxiliar a lidar com esse tipo de joint-venture em casos vindouros e permitir uma melhor compreensão da jurisprudência deste Tribunal. Parece-me, portanto, pertinente estabelecer-se algumas premissas tanto para guiar as empresas que decidam se engajar nesse tipo de operação no futuro, como para orientar a própria área técnica do CADE sobre quais pontos devam ser analisados em operações como a ora apresentada.
I. DA COLABORAÇÃO ENTRE COMPETIDORES
O caso dos autos se refere uma iniciativa que busca facilitar o processo de coleta de dados de fornecedores a montante, em proveito de competidores que se encontram a jusante da cadeia produtiva e que são os requerentes da presente operação.
No caso concreto, dados e informações de produtores de commodities agrícolas serão coletados pela joint venture e disponibilizados para a indústria de alimentos e para as grandes redes de distribuição. Tais dados serão fornecidos não só aos requerentes da operação, mas também serão vendidos a outras empresas do setor de alimentos que estejam dispostas a contratar os serviços da joint-venture. Supostamente, tais dados servirão para medir o cumprimento de compromissos ambientais assumidos pelas empresas consumidoras desses dados.
Conforme alegam os requerentes, tal coleta também facilitaria o cumprimento de normas ambientais europeias, em vigor ou que venham a ser editadas no futuro. Tenho, todavia, que o escopo da operação é muito mais amplo do que o simples cumprimento de normas europeias, eis que a iniciativa terá escala global e gerará efeitos em mercados muito maiores. De fato, verifico que a operação ora em exame nesta jurisdição acabará tendo maior aplicabilidade também no mercado norte-americano, asiático e latino-americano, que são os principais destinos das commodities produzidas pelo agronegócio brasileiro.
Assim como os dados que se pretende coletar podem ser usados para medir a pegada de carbono, eles também podem ser usados para diversas outras finalidades comerciais, como identificar regiões geográficas com maior produtividade, identificar potenciais rivais em crescimento, estimar os custos dos fornecedores, identificar os gargalos logísticos dos concorrentes, analisar a facilidade de acesso a insumos estratégicos (como a água) e localizar regiões geográficas adequadas para novos investimentos produtivos. Considerando que algumas das requerentes também atuam como produtoras de commodities agrícolas, atuando de forma verticalizada, a coleta e processamento de dados podem oferecer uma nova vantagem competitiva em relação aos demais produtores rurais, localizados no início da respectiva cadeia produtiva.
Podemos entender a presente operação como uma hipótese de colaboração entre competidores, a qual foi adequadamente abordada no guia Antitrust Guidelines for Collaborations Among Competitors, expedido em abril de 2000 pelo FTC e pelo DOJ.
Conforme aponta a doutrina econômica, joint-ventures podem gerar uma maior eficiência quando celebradas com escopo e duração de tempo limitados, permitindo a entrada de novos competidores que não teriam condições de fazer uma entrada bem-sucedida em determinado um mercado relevante. Ao contrário de uma fusão, os competidores que estão colaborando mantêm centros de decisão independentes, o que permite que a competição continue. Assim, em razão da sua curta duração de tempo e escopo limitado, as joint-ventures tendem a ser pró-competitivas ou, no mínimo, neutras[1]. Ao permitir que os concorrentes compartilhem custos e riscos, as joint-ventures podem servir como meio para a inovação e para o desenvolvimento de novos produtos ou serviços.
Por outro lado, joint-ventures que tenham um escopo mais abrangente, ou que não tenham limitação no tempo, podem gerar efeitos negativos à competição, notadamente quando as empresas associadas poderiam, individualmente, realizar a entrada no referido mercado, ou quando tais empresas já operam no mercado em questão:
Em circunstâncias particulares, as joint ventures podem, no entanto, afetar adversamente a concorrência. O efeito adverso pode ser significativo quando mais de um dos parceiros da joint venture já atua no mercado onde a joint venture atuará, ou poderia ter entrado no mercado de forma independente. Nesses casos, a concorrência que de outra forma teria existido entre os parceiros no mercado de joint venture será eliminada.
Tal redução de competição ocorrerá porque os sócios irão, naturalmente, abster-se de competir com um empreendimento em que eles têm interesse financeiro. As joint ventures também podem restringir a concorrência em outros mercados nos quais os parceiros competiam anteriormente. A joint venture pode fornecer um mecanismo para camuflar conspirações para fixar preços, alocar territórios ou se envolver em outras atividades anticompetitivas nesses outros mercados.[2]
O guia do FTC/DOJ de colaboração entre competidores, no seu item 2.2, também apresenta as hipóteses nas quais essa colaboração pode ser prejudicial à competição:
As colaborações entre concorrentes podem prejudicar a concorrência e os consumidores, aumentando a capacidade ou o incentivo para aumentar lucrativamente o preço e reduzir a produção, qualidade, serviço ou inovação abaixo do que provavelmente prevaleceria na ausência do referido acordo. Tais efeitos podem surgir através de uma variedade de mecanismos. Entre outras questões, os acordos podem limitar a independência da tomada de decisão ou combinar o controle ou interesses financeiros na produção, ativos-chave ou decisões sobre preço, produção ou outras variáveis competitivamente sensíveis, ou podem de outra forma reduzem a capacidade ou o incentivo dos participantes para competir de forma independente.
As colaborações entre concorrentes também podem facilitar o conluio explícito ou tácito ao facilitar práticas como a troca ou divulgação de informações competitivas sensíveis ou por meio de maior concentração de mercado. Tal conluio pode envolver o mercado relevante no qual o colaboração opera ou outro mercado no qual os participantes da colaboração são reais ou potenciais concorrentes.[3]
No caso concreto, pesa a favor da operação o seu caráter relativamente limitado, uma vez que o arranjo proposto permite que os membros da joint-venture mantenham os seus centros de decisão independentes, sem implicar no investimento em ativos que não sejam facilmente reproduzidos pelas empresas associadas.
De modo geral, a criação de joint-ventures de escopo limitado, voltadas à inovação e desenvolvimento de novos produtos e serviços, tendem a oferecer menor risco à competição. Contudo, no caso concreto, tenho que os seguintes fatores específico pesam contra a operação e devem ser devidamente considerados:
Falta de uma limitação temporal da operação;
Coleta unificada de dados estratégicos de fornecedores, o que pode facilitar a colusão e a troca de informações concorrencialmente sensíveis;
Os membros associados já coletam, hoje, os dados dos seus fornecedores, sendo certo que tais dados podem e poderiam ser coletados de forma independente. Assim, a joint-venture não facilitará uma entrada de um novo competidor no mercado ou a criação de um novo serviço. Ao contrário, as empresas associadas já competem na busca desses dados, sendo certo que a joint-venture poderá diminuir essa competição;
A operação não objetiva a criação de um produto novo ou que seja dotado de qualquer inovação, ao menos sob a ótica do Consumer Welfare Standard[4];
A operação gera um incentivo econômico para que os membros associados não mais compitam por fornecedores[5], criando um meio tecnológico que poderia facilitar o compartilhamento de informações sobre os fornecedores de terceiros;
A formação da joint-venture pode padronizar o nível de dados coletados pelas empresas compradoras de commodities, diminuindo a competição por políticas de coleta de dados que sejam mais ou menos invasivas.
Probabilidade de criação de um “poder de monopsônio” para a coleta de dados dos fornecedores; e
Possibilidade de a joint-venture servir como uma barreira de entrada para novos fornecedores e novos competidores ao longo da cadeia de alimentos.
II. DOS RISCOS DE RESTRIÇÃO INDIRETA À PRODUÇÃO DE BENS
Além do caráter estratégico dos dados que serão coletados pela joint-venture, os quais não se limitam a variáveis de uso exclusivo ambiental, o que verifico é que eventual imposição do cumprimento de metas ambientais, se implicarem em restrições ao uso de água, de defensivos agrícolas, de fertilizantes, de energia ou de outros insumos, poderá afetar negativamente a produtividade dos fornecedores, diminuindo a oferta geral de commodities agrícolas e produtos processados. Esse efeito pode prejudicar diretamente o bem-estar dos consumidores finais, aumentando de forma significativa o valor dos preços dos alimentos.
Se há uma menor disponibilidade de uma commodity no mercado, maior será o valor final do produto manufaturado. Diante da maior raridade do insumo, mais difícil será a entrada de novos competidores e maior será o controle dos atuais incumbentes sobre o mercado de alimentos. Foi exatamente assim, diminuindo a disponibilidade de diamantes brutos no mercado e controlando as minas de extração de diamantes, que a empresa De Beers conseguiu aumentar significativamente o preço do seu produto, a saber, o diamante lapidado. O diamante é uma pedra que não é necessariamente rara ou custosa, sobre a qual não há qualquer escassez, que pode ser reproduzida em laboratório por um custo aproximado de US$ 1,00 por unidade e que somente se valorizou após um programa de sistemático de açambarcamento das pedras extraídas e de rígido controle da oferta do produto no mercado, no caso conhecido como o “cartel dos diamantes”. Diga-se de passagem, isso levou a De Beers Centenary AG admitir a sua culpa e efetuar o pagamento de uma multa de US$ 10 milhões, imposta pelo DOJ dos Estados Unidos, numa acusação criminal de violação da Seção 1 do Sherman Act[6].
Não é por outro motivo que acordos de colaboração entre competidores que impliquem na redução da produção de bens e serviços são considerados ilegais per se, na forma do guia do FTC/DOJ:
Acordos contestados como ilegais per se. Acordos do tipo que sempre ou quase sempre tendem a aumentar o preço ou a reduzir a produção são per se ilegais. As Agências questionam tais acordos, uma vez identificados, como ilegais per se. Tipos de acordos considerados ilegais per se incluem acordos entre concorrentes para fixar preços ou produção, fraudar licitações ou compartilhar ou dividir mercados ao alocar clientes, fornecedores, territórios ou linhas de comércio. Os tribunais presumem conclusivamente que tais acordos, uma vez identificados, são ilegais, sem investigar seus propósitos comerciais alegados, danos anticompetitivos, benefícios pró-competitivos ou efeitos competitivos gerais. O Departamento de Justiça processa criminalmente participantes de acordos de cartéis hardcore.[7]
Claro está que a presente operação não prevê a fixação de preços ou de cotas de produção. Ao menos, não de forma direta. Contudo, se a joint-venture vier a estabelecer o cumprimento de metas ambientais não previstas na legislação local, e se tais metas restringirem ou puderem restringir a produção das respectivas commodities, a joint-venture e seus executivos poderão incidir numa conduta de cartel para a diminuição de produção, conduta essa que não só pode caracterizar o cometimento de uma infração à ordem econômica per se como também pode, ao menos potencialmente, configurar uma conduta criminosa.
Ressalto que o simples fato de a empresa dar cumprimento à uma agenda ESG (Environmental, Social and Governance) em nada a exime quanto ao cumprimento das normas de defesa da concorrência. Afirmo com toda a clareza: a legislação brasileira de defesa da concorrência não contém nenhuma exceção aplicável a questões de interesse ambiental ou social, que retire tais programas do escopo das normas aplicáveis à proteção da ordem econômica e defesa da concorrência.
O claro objetivo do Direito antitruste brasileiro é a busca da eficiência econômica e do bem-estar do consumidor, o qual é representado por preços mais baixos, maior oferta de bens e serviços e produtos de melhor qualidade. Outros objetivos, como a proteção do meio-ambiente, da justiça social, da igualdade de gênero, da liberdade de pensamento, entre outros igualmente justos, devem ser atendidos dentro dos limites da moldura normativa da Lei 12.529, de 2011. Tais critérios, estranhos à análise concorrencial, não alteram e nem deve influenciar a análise objetiva deste Conselho, a qual deve ser técnica, baseada em evidências econômicas e orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico, na forma do art. 1º da Lei de Defesa da Concorrência.
Questões ambientais e sociais devem ser sopesadas pelo centro de governo, pelas políticas públicas setoriais e pelos órgãos ambientais e regulatórios. Contudo, tais questões não podem servir de justificativa para se admitir a formação de cartéis, a criação de monopólios e de oligopólios, a adoção de condutas colusivas ou para o exercício abusivo do poder econômico.
A imposição de restrições ao uso de defensivos agrícolas e de fertilizantes, a limitação ao consumo da água, bem como a imposição de restrições ao uso das áreas cultiváveis, quando feitas ao arrepio das legislações locais e sem estudos empíricos, podem impactar negativamente a produtividade da agricultura, questão essa especialmente nociva nos países emergentes.
Tais restrições, usualmente impostas por países com populações pequenas e de alto poder aquisitivo, podem tanto desarranjar a produção agrícola de países emergentes como podem prejudicar o consumo de alimentos pelas populações dos países mais pobres, encarecendo os produtos destinados à alimentação. Ademais, podem acabar criando externalidades negativas, impondo a países em desenvolvimento custos assumidos unilateralmente pelas populações das nações mais desenvolvidas e industrializadas, cuja economia é menos dependente da produção de commodities agrícolas. Essa externalidade é ainda mais evidente quando se verifica que a operação busca fundamentos em padrões ambientais europeus, unilateralmente estabelecidos por aquelas nações, para justificar o monitoramento da produção de produtos originados no Brasil, ainda que tais produtos sejam destinados, por exemplo, à Ásia ou à América do Norte.
Registro, ainda, que a chamada “agenda ESG”, apesar de nobre e relevante, pode ser instrumentalizada para criar barreiras protecionistas ao comércio entre os países, notadamente quando aliada ao já conhecido fenômeno do “greenwashing”. Se mal-empregada, pode servir de instrumento para se restringir a competição e criar barreiras artificiais à entrada de novos concorrentes. Além disso, podem eliminar vantagens competitivas locais, restringindo, por exemplo, o acesso à água a países que tenham maior disponibilidade do insumo ou limitando o uso de defensivos agrícolas a países que, por características do seu clima ou de doenças endêmicas, são mais propensos a determinadas pestes e pragas.
Tal tipo de barreira, ainda que bem intencionada, pode diminuir a competição entre as nações e entre os distintos mercados, impondo-se, em escala global, um único modelo de negócios, estabelecido com base em padrões europeus de consumo, sem se considerar as distintas realidades locais, as características climáticas e populacionais dos distintos países, as diferenças econômicas entre os distintos grupos de consumidor e os múltiplos modelos de negócio e de produção existentes ao longo do globo.
O caso do Sri Lanka[8] é, nesse sentido, emblemático. No início de 2020, o país efetuou uma agressiva transição para a agricultura orgânica, impondo a proibição de importação e uso de pesticidas e de fertilizantes sintéticos. A restrição no uso de insumos e a imposição de alteração dos meios de produção tradicionais resultaram em uma queda de 20% na produção agrícola, em um período de apenas seis meses. O país, que era exportador de arroz, base da alimentação nacional, passou a ter que importar o produto. O preço do pão triplicou e o do arroz mais que dobrou. E mesmo assim, o produto somente estava disponível a quem se dispusesse a encarar as longas filas. As restrições ambientais, impostas em escala nacional e sem estar baseada em estudos empíricos, resultaram em inflação, protestos, colapso da moeda e uma brutal queda na renda nacional, com pelo menos meio milhão de pessoas lançadas de volta à pobreza. Por fim, todo esse processo derivou na tumultuada queda do Presidente Gotabaya Rajapaksa.
O exemplo histórico e ilustrativo do Sri Lanka bem demonstra que a imposição unilateral de restrições ao uso de insumos na produção agrícola, ainda que bem intencionada e pautada em argumentos de sustentabilidade, podem causar danos significativos à competição e ao bem-estar do consumidor. Essa preocupação já seria alarmante quando imposta pela via legislativa. Mas tais restrições se tornam ainda mais preocupantes quando impostas por grandes grupos econômicos, como monopsônios e oligopólios, os quais podem abusar de tais restrições para fortalecer o seu poder de mercado.
Feitas essas considerações iniciais, passo a analisar a figura dos contratos de joint-venture à luz da legislação antitruste.
III. DA JOINT-VENTURE NO DIREITO NACIONAL
A legislação brasileira optou por considerar as joint-ventures como negócios submetidos ao escrutínio prévio da autoridade antitruste. Assim, esses contratos podem ser analisados tanto no âmbito do controle de estruturas como no âmbito do controle de condutas.
A colaboração entre competidores, por mais que se revele como extremamente bem-intencionada, como sugere ser o presente caso, pode degenerar em coordenação ilícita de fatores econômicos tais como preços, quantidades, divisão geográfica de mercados, ou no compartilhamento de informações sensíveis. Por esse motivo, há que se verificar se os ganhos com a operação compensam os danos que tais contratos podem gerar à competição.
Contratos com escopo e prazo de duração limitados, que permitam a inovação, desenvolvimento de novos produtos ou o surgimento de novos competidores, tendem a ser benignos e podem, em muitos casos, gerar eficiências.
No caso concreto, não estamos diante desse exemplo clássico de joint-venture de curta duração. A operação apresentada pretende ser dotada de perenidade. A intenção das requerentes é que as principais empresas do setor de alimentos possam se juntar e obter, conjuntamente, os dados dos seus fornecedores, produtores de commodities agrícolas. Assim, para se aprovar a operação, é importante se sopesar as vantagens que serão revertidas em favor do bem-estar do consumidor e os riscos que serão criados para a competição e para o mercado, considerando, particularmente, o risco de diminuição da competição no longo prazo e o risco de facilitação à adoção de condutas colusivas.
IV. DO DADO COMO INSUMO ECONÔMICO
A joint-venture oferecerá os seus serviços não só às empresas que a integram, mas também venderá seus serviços às demais empresas da indústria de alimentos, tanto na etapa da manufatura como na de comercialização de produtos ao consumidor. Em linhas gerais, a joint-venture oferecerá seus sistemas e know-how para a coleta e processamento de dados. Os dados coletados poderão ser cruzados com outras informações, como geolocalização e dados de mercado – abertos ou fechados – para, então, gerar uma inteligência de negócios sobre os fornecedores. Essa informação, devidamente filtrada e processada, poderá servir ao cumprimento de compromissos ambientais. Mas nada impede que também seja usada para quaisquer outros fins comerciais, produzindo conhecimento estratégico às empresas dispostas a comprar tais serviços.
Registro que nada há de errado em se coletar dados e se produzir inteligência de negócios, questão essa que é o núcleo da atividade econômica de várias empresas, como a Nielsen e a IQVia. Em se tratando de empresas autônomas e independentes, essa coleta e processamento de dados, em geral, não oferece nenhum problema antitruste. O problema concorrencial surge quando tal iniciativa na coleta e processamento de dados é desenvolvida por empresas concorrentes, que podem combinar as respectivas posições dominantes para pressionar os outros elos da cadeia produtiva. Tais integrações podem facilitar a prática da colusão, do margin squeeze, do self-preferencing e de condutas discriminatórias ou exclusionárias. Ao se considerar, ainda, os efeitos das integrações verticais, as empresas reunidas na joint-venture podem, ainda, usar do seu poder de mercado a jusante para alavancar a conquista do mercado a montante (estratégia de leverage).
Hoje, sabemos que dados são ativos dotados de significativo valor econômico[9]. Dados podem ser coletados e tratados com o fim de gerarem informação e serem aproveitados como orientadores de decisões. Eles servem para o direcionamento de publicidade e de ações de marketing, mas não só para isso. Dados permitem o desenvolvimento de novos produtos e serviços totalmente disruptivos, possibilitam novas estratégias de precificação e permitem que os agentes econômicos detectem riscos e oportunidades que, de outra forma, não seriam detectáveis. Assim, dados têm se tornado um dos principais insumos do século XXI. Não é por outra razão que vários executivos globais vêm afirmando que os “dados são o novo petróleo”[10].
Essa coleta e tratamento de dados, geralmente realizados por plataformas digitais, estão diretamente ligados à crescente conectividade da economia contemporânea, a qual faz uso dessa matéria-prima virtual para produzirem uma infinidade de produtos e soluções digitais. As mídias sociais foram extremamente bem sucedidas na coleta de dados das pessoas físicas, com a consequente comercialização desses dados para terceiros. Por outro lado, iniciativas como a presente buscam transportar para as operações B2B[11] o modelo de negócio das mídias sociais, coletando dados não das pessoas físicas, mas dos demais agentes econômicos que fazem parte de uma cadeia produtiva.
Entendido que o dado[12] é um bem econômico, que serve de insumo para a criação e desenvolvimento de distintos modelos de negócios, é fácil compreender que quando grandes empresas se juntam para adquirirem dados de terceiros, isso equivale à formação de um monopsônio. Nesse caso, o dado é comprado junto com a commodity agrícola. O fornecedor que se recusar a fornecer o dado ficará impedido de vender a commodity. Nesse contexto, quanto maior for o poder de mercado conjunto dos compradores, ou seja, quanto mais forte for o monopsônio, maior será a sua capacidade econômica de exigir o acesso a um maior conjunto de dados, com maior nível de detalhamento e invasividade.
O monopsônio, em si, não é algo necessariamente lesivo à economia. A formação de um monopsônio pode gerar eficiências, que podem, em algumas situações, dar origem a um incremento do bem-estar do consumidor. Contudo, cumpre alertar que a jurisprudência do CADE vem considerando o monopsônio como uma conduta nociva à concorrência, havendo diversos alertas contrários à sua formação. [13]
O uso do poder de mercado para adquirir e centralizar os dados de uma atividade econômica, de forma coordenada, pode facilmente transformar-se em abuso de poder econômico. Isso pode se dar tanto por meio do compartilhamento de informações concorrencialmente sensíveis como pela criação de incentivos econômicos para a adoção de condutas anticompetitivas.
Dentro dessa cadeia de produção de informação, o elo mais fraco costuma ser a pessoa natural ou os agentes econômicos menos sofisticados, os quais possuem uma menor compreensão da importância dos dados por eles cedidos a terceiros. A vulnerabilidade dos agentes originadores dos dados reside exatamente nessa assimetria de informação. No caso concreto, dados dos distintos fornecedores podem ser classificados, comparados e avaliados com um fim específico, que pode resultar em uma vantagem ilícita ou em um poder de barganha desproporcional. Se usados de forma abusiva, o resultado final para a sociedade poderá ser um prejuízo ao bem-estar geral, decorrente de uma maior concentração do poder de mercado nas grandes redes econômicas, que são as mais capazes de coletar dados e produzir informação em grande escala.
Sobre o tema, saliento os estudos de autores como Daniel Solove[14], Michal Gal e Daniel Rubinfeld[15], para os quais a revelação de dados pessoais dos consumidores seria capaz de causar um prejuízo ao seu bem-estar, questão essa que deveria ser levado em conta pelo Direito da Concorrência. Entendo que esse raciocínio também pode ser extendido para abarcar o uso dos dados de agentes econômicos menos sofisticados, tais como os produtores rurais. Nesse caso, ainda com mais razão deveríamos salvaguardar da maneira mais efetiva o controle, tratamento e disponibilização desses dados. Se os dados de consumidores, que estão na ponta da cadeia produtiva, podem lesar a competição, como demonstram os estudos indicados, o que não dizer dos dados de produtores e fornecedores espalhados ao longo de toda a cadeia produtiva?
Parece-me, portanto, que a criação de uma empresa que objetive rastrear a produção de commodities agrícolas por meio de um ecossistema de TI, que centralizará e realizará o tratamento dos dados de milhares de produtores e fornecedores em todo o mundo, demanda a apresentação de garantias que sejam suficientes e adequadas para mitigar os riscos concorrenciais decorrentes de tal operação. A coleta centralizada desses dados, por uma mesma empresa, da qual os principais concorrentes do setor são acionistas, geram os seguintes riscos concorrenciais específicos:
Risco de um vazamento inadvertido dos dados, seja por uma ação hostil (hacker), seja por falhas de cibersegurança ou do compliance na proteção de dados;
Risco de um compartilhamento indevido de informações concorrencialmente sensíveis; e
Risco de uso ilícito dos dados coletados para o exercício abusivo de uma posição dominante.
v. DA ANÁLISE DA OPERAÇÃO EM CONCRETO
Estabelecidas as premissas descritas acima, e registrados os riscos concorrenciais que podem ser criados por operações que envolvam a sistemática coleta e troca de dados entre concorrentes, esse é o ponto que eu gostaria de destacar: o oferecimento de garantias antitruste nesse tipo de negócio deve ser encarado não como mera demonstração de boa vontade dos requerentes, ou argumento adicional para um juízo de aprovação por parte da autoridade concorrencial, mas, sim, como uma premissa da aprovação da própria operação.
Ressalto, sobre o tema, o que disse no caso do Catena-X:
171. Joint ventures concebidas para permitir a cooperação entre concorrentes para o desenvolvimento de atividade de Pesquisa & Desenvolvimento, ou formadas para fins de compartilhamento de soluções tecnológicas, devem ser dotadas de medidas efetivas para evitar o compartilhamento de informações sensíveis entre os concorrentes, notadamente em mercados propensos a condutas colusivas, como ocorre no caso concreto.[16]
Mutatis mutandis, adoto a mesma premissa acima para o caso em tela. Joint-ventures que tenham por objeto a coleta de dados dos fornecedores devem ser dotadas de medidas efetivas para evitar o compartilhamento de informações sensíveis entre os concorrentes e capazes de mitigar os riscos concorrenciais, questão essa que deve ser examinada já no controle de prévio de estruturas.
Por oportuno, pondero que, no caso em tela, há pelo menos quatro circunstâncias que tornam a presente operação menos problemática do que a do caso Catena-X:
Os dados somente serão trocados entre fornecedores e consumidores. Assim, os dados circularão apenas ao longo da cadeia vertical e somente quando associados a relações comerciais existentes. Por tal motivo, na presente operação, não há a possibilidade de compartilhamento horizontal de informações entre competidores, questão que estava presente no Catena-X;
O escopo dos dados que serão coletados e as aplicações nas quais os dados serão utilizados já foram devidamente apresentadas e constam do plano de negócios, havendo relativa delimitação do objeto da joint-venture. No caso do Catena-X, o escopo da operação era amplo e não delimitado, ampliando significativamente o risco concorrencial;
Na presente operação, a própria joint-venture fiscalizará diretamente o cumprimento das normas antitruste e os dados trocados pelos usuários. No Catena-X, a joint-venture não tinha acesso a que tipo de dados eram trocados entre os concorrentes e os múltiplos usuários, não havendo um controle centralizado do conteúdo das mensagens trocadas; e
A presente joint-venture não terá um marketplace ou loja de aplicativos, nem funcionará como tal. Assim, riscos concorrenciais como os levantados no caso Google Shopping ou Amazon, tais como o self-preferencing, não parecem estar presentes na operação em exame[17]-[18]-[19]. Por outro lado, o Catena-X tinha a previsão de funcionar como um marketplace.
Embora a presente operação apresente riscos concorrenciais menores do que o caso Catena-X, devo concluir, à luz de tudo quanto o já exposto, e acompanhando alguns dos pontos levantados pelo próprio Conselheiro-Relator, que a operação possui riscos concorrenciais concretos. Por outro lado, verifico que as empresas requerentes apresentaram um sofisticado e robusto programa de compliance e de política antitruste, o qual parece ser adequado para mitigar as principais preocupações concorrenciais apontadas.
Diante desse tipo de situação, qual seja, de presença de preocupações concorrenciais de um lado, e de compromissos comportamentais assumidos pela própria empresa do outro, qual deve ser o papel do CADE? Deve a autoridade antitruste impor, necessariamente, a assinatura de um ACC (acordo em controle de concentração), contendo os compromissos comportamentais já assumidos pelos requerentes, para dar enforcement a essas obrigações? Ou deve a autoridade antitruste examinar as restrições autoimpostas pelas requerentes como premissas da operação, pressupondo que as mesmas serão cumpridas pelas requerentes sem a necessidade de um monitoramento externo?
Nos termos do Guia de Remédios Antitruste do CADE, os remédios devem ser proporcionais, tempestivos, factíveis e verificáveis. Destaco, particularmente, o trecho do guia que trata da proporcionalidade:
Um remédio antitruste deve ser proporcional no sentido de impor ações mitigadoras necessárias, adequadas e suficientes à efetiva reversão do potencial prejuízo à concorrência decorrente especificamente do AC. Essa proporcionalidade requer, em primeiro lugar, que as medidas aplicadas sejam capazes, por si só, de sanar os problemas concorrenciais identificados. Por outro lado, implica que se evite a adoção de remédios que ultrapassem o necessário para restaurar a concorrência no mercado. Além disso, a proporcionalidade busca preservar eventuais sinergias entre as Requerentes, desde que garantida a supressão dos danos potenciais à concorrência gerados pela operação.[20]
Não só o remédio antitruste deve ser proporcional ao potencial prejuízo à concorrência, como ele deve ser factível. A adoção de remédios complexos, com elevado custo de implementação ou de monitoramento e difícil modelagem, somente são justificáveis se o risco concorrencial for concreto e iminente.
No caso de riscos difusos, em um ambiente com elevado grau de incerteza, e quando se está diante de um modelo de negócios ainda pouco conhecido e cujo horizonte de tempo para a implantação seja mais dilatado, há argumentos persuasivos para se defender que a adoção de um pacote de remédios rígido e delimitado pode não ser a via mais eficiente para se executar o controle prévio de estruturas. Em casos como esse, diante da incerteza da operação, pode-se argumentar que os riscos de se adotar remédios insuficientes são tão plausíveis como de se adotar restrições excessivas.
Tenho em mente que, no âmbito do controle prévio de estruturas relacionadas a negócios inovadores e disruptivos, os efeitos concorrenciais podem ainda não estar postos, ou pelo menos pode ser relativamente difícil se saber se tais riscos foram bem delineados. Assim, nesse momento da operação, diante de modelos de negócios inovadores e pouco estudados, há argumentos persuasivos para se defender que a intervenção seja a menor possível, desde que suficiente para se mitigar os riscos concorrenciais mais evidentes.
Em operações que são disruptivas, como a ora em exame, a autoridade antitruste deve compreender que terá que tomar decisões em um ambiente de elevada incerteza. Contudo, não creio que isso deva ser necessariamente um obstáculo a qualquer operação disruptiva, sob pena de condenarmos ao limbo o desenvolvimento de qualquer iniciativa minimamente inovadora. Se, por um lado, a operação em tela oferece riscos à competição, por outro ela pode trazer ganhos de eficiência e criar novos modelos de negócio, que podem vir a trazer benefícios ao bem-estar do consumidor.
Tenho que, nesse ambiente de incerteza, a autoridade antitruste pode ponderar riscos, eficiências e os possíveis danos à concorrência, sopesando as possíveis vantagens ao consumidor com os riscos à competição, como feito pelo Conselheiro-Relator.
Nos casos em que exista uma teoria do dano clara e devidamente conhecida, e nos casos em que eventuais riscos possam se consolidar num curto espaço de tempo, parece-me, sim, ser importante que esses compromissos sejam formalizados de forma clara e objetiva, preferencialmente por meio de um ACC ou de remédios claramente definidos.
Ao contrário, quando se tratar de uma operação onde a teoria do dano é relativamente incerta, como é o caso desta joint-venture, cujo período de maturação é longo e cujo efetivo alcance da própria operação é difícil delimitação, talvez a imposição de remédios excessivos, com alto custo de monitoração, pode não ser inteiramente desejável. Notadamente em um cenário no qual nem as requerentes, nem a autoridade antitruste, podem antecipar adequadamente os efeitos e alcance do negócio.
Em casos como esse, entendo ser possível se defender a adoção de um conjunto de remédios que seja mais flexível. Isso não é o mesmo que dizer que a operação não terá quaiquer restrições. Parece-me que, no caso dos autos, apenas se opta por um formato mais aberto de assunção de obrigações: no lugar de se prever um pacote rígido de remédios, com prazos e obrigações bem definidas, aprova-se a operação com base em um protocolo antitruste mais geral e aberto, que passa a ser a premissa da aprovação da operação. Se o protocolo se mostrar insuficiente, ou seja, se a premissa da aprovação da operação não se confirmar, a própria aprovação da operação pode ser revista por este Tribunal, como previsto expressamente no art. 91 da Lei de Defesa da Concorrência.
Esse foi, precisamente, o teor da decisão adotada por este Tribunal no caso da venda da Gaspetro (caso Compass)[21]. Naquele julgamento, este Tribunal reconheceu que o processo de desinvestimento era complexo e dependeria de distintos atos de vontade a cargo de terceiros, que poderiam exercer o direito de preferência em relação a diversos ativos distintos, espalhados pelo território nacional. Diante das características particulares daquela operação, no lugar de se adotar um compromisso rígido, o qual imporia a alienação de um conjunto de ativos devidamente delimitado e com um cronograma fixo e previamente definido, este Tribunal optou por tornar vinculante o plano de negócios de desinvestimento apresentado pelas requerentes, esclarecendo que o seu descumprimento poderia levar à revisão da operação.
Tenho que o precedente do caso Compass se aplica perfeitamente ao caso dos autos, razão pela qual acompanho a solução proposta pelo Conselheiro-Relator, a qual é tecnicamente defensável e pertinente.
No caso concreto, tendo a considerar que as garantias comportamentais oferecidas - consolidadas na adoção do Protocolo Antitruste referido no voto do Conselheiro-Relator - podem ser adequadas. Isso não quer dizer que tais garantias sejam facultativas. Ao contrário, elas são obrigatórias e vinculantes. Contudo, a forma de monitoramento e de cumprimento, nesses casos, pode se dar com um grau de flexibilidade ligeiramente superior à da assinatura de um ACC.
Contudo, reforço: a adoção do protocolo antitruste, e das restrições apresentadas na notificação da presente operação, são, sim, obrigatórias e vinculantes. O seu descumprimento pode levar à revisão da presente operação; à imposição de sanção por meio do controle de condutas, no caso de eventual abuso; ou mesmo à configuração de gun-jumping, se a operação for consumada de forma diversa da que foi notificada a este Tribunal.
Portanto, parece-me que o presente ato de concentração é ora aprovado, ao contrário do que nominalmente declaramos, com muitas restrições e compromissos. Entendo, ainda, que o plano apresentado e as restrições assumidas são adequados para mitigar os riscos da operação em tela, razão pela qual tendo a concordar com o encaminhamento proposto pelo Conselheiro-Relator.
DISPOSITIVO
Diante de todo o exposto, e com base no protocolo antitruste e nos compromissos diretamente assumidos pelas requerentes de forma expressa e vinculante, concluo que:
O desenvolvimento das atividades da joint-venture está sujeito ao cumprimento do protocolo antitruste, nos termos tal qual foi apresentado pelas requerentes nos presentes autos. Embora admita a possibilidade de adaptações pontuais a este protocolo, tenho que qualquer modificação mais significativa deverá ser previamente informada ao CADE. Ressalto que o referido protocolo é obrigatório e vinculante, sendo certo que o compromisso de sua adoção foi essencial para a aprovação da presente operação;
A joint-venture somente poderá permitir a troca de dados entre fornecedores e empresas consumidoras com as quais possuam relação comercial. Resta terminantemente vedada a troca de dados e informações entre empresas que sejam concorrentes entre si, notadamente as que sejam ocupantes da mesma etapa da cadeia produtiva, ou o compartilhamento de informações de fornecedores com os quais a empresa interessada não possua relação contratual;
A joint-venture não poderá funcionar como marketplace ou como plataforma de venda de aplicativos. O exercício dessas atividades não foi nem solicitado pelos requerentes, nem aprovado por este Tribunal, razão pela qual a sua adoção, no futuro, dependerá de nova notificação, na forma do art. 88 da Lei nº 12.529, de 2011;
A joint-venture deverá adotar medidas efetivas para evitar a troca de informações concorrencialmente sensíveis por meio de suas soluções digitais, restando proibida a troca de dados não-públicos que digam respeito a: preços praticados; descontos; dados dos fornecedores dos demais concorrentes; custos de operação; custos de insumos; margens de lucro; capacidade de produção; capacidade ociosa; quantidade total dos bens produzidos; salários individualizados; e de outras informações vedadas pelo protocolo antitruste;
A empresa deverá possuir um CCO (Chief Compliance Officer) dotado da necessária autonomia para desenvolver um programa de compliance e fiscalizar o cumprimento das normas antitruste;
O design dos softwares que sejam desenvolvidos pela joint-venture, ou que sejam por ela contratados, deve ser adequado, desde a sua origem, ao cumprimento das normas antitruste brasileiras, notadamente às previstas na Lei nº 12.529, de 2021, e nas resoluções e guias do CADE (compliance by design);
O hardware, software, nuvem e dataspace da joint-venture devem ser mantidos separados do ecossistema digital das requerentes, devendo haver uma rígida segregação de dados e dos sistemas e recursos computacionais. O acesso das requerentes aos dados e informações mantidos pela joint-venture somente pode ser feito na forma prevista no protocolo antitruste;
A operação da joint-venture deverá ser não-discriminatória, devendo observar, no que possível, o tratamento neutro e isonômico entre os distintos concorrentes que contratem, ou desejem contratar, os seus serviços;
Nos termos da operação notificada, a joint-venture não pode impor standards ambientais, não pode expedir qualquer tipo de certificação ambiental e nem pode impor qualquer tipo de limitação à produção de bens e produtos, não podendo regular ou prever limites para o uso de defensivos agrícolas, de fertilizantes, de consumo de água ou de outros insumos. O papel da joint-venture deve se restringir a coletar e processar os dados disponibilizados pelos produtores e fornecedores e prestar as informações solicitadas às empresas contratantes de tais serviços, podendo efetuar o tratamento e processamento de tais dados. Não foi autorizado que a joint-venture padronize, certifique ou fiscalize a adoção de quaisquer parâmetros ambientais, questão essa que não faz parte da operação notificada. Ressalto, ainda, que a decisão quanto à adoção, ou não, de quaisquer requisitos ambientais deve pertencer individualmente a cada empresa contratante dos serviços da joint-venture. Consequentemente, resta vedada a adoção de qualquer arranjo ou acordo entre as empresas associadas que tenha por objetivo a adoção de requisitos ambientais comuns não previstos em lei, hipótese que pode configurar a prática de conluio;
A joint-venture não poderá servir como um centro de decisões conjuntas, sendo certo que cada empresa associada à joint-venture, e cada empresa contratante de seus serviços, deverá tomar as suas decisões de negócio de forma individualizada, sem a discussão ou adoção de estratégias comuns de negócio ou de requisitos ambientais. Assim, cada empresa sócia da joint-venture, ou contratante de seus serviços, deverá continuar a se portar como um competidor independente, para todos os efeitos da presente operação;
É terminante proibido que a joint-venture promova ou tome parte em qualquer acordo que vise: fixar preços de venda ou de compra de produtos ou insumos; limitar ou determinar o volume de produção de bens ou insumos, ainda que de forma indireta; impor cotas máximas de consumo de qualquer insumo; ou que pretenda dividir ou alocar mercados, fornecedores, territórios ou rotas comerciais. A adoção desse tipo de conduta ou acordo poderá ser tratada pelo CADE como cartel, inclusive para fins criminais, independentemente da aprovação da presente operação.
Ressalto que, em relação à parcela da operação que seja realizada, no todo ou em parte, no território brasileiro, ou que nele produzam ou possam produzir efeitos, deverá a joint-venture obedecer às normas antitruste brasileiras. Eventuais compromissos assumidos com outras jurisdições, ou previstos em normas estrangeiras que não tenham sido internalizadas pelo Brasil, incluindo eventuais compromissos ambientais, não servirão como justificativa, ou como qualquer tipo de exceção, para o não cumprimento das obrigações contidas nas normas nacionais de defesa da concorrência.
Acompanhando o voto do Conselheiro-Relator, tenho que o não cumprimento dos compromissos ora assumido pelas requerentes, notadamente os contidos no protocolo antitruste, poderão levar à revisão da aprovação ora concedida, de ofício ou mediante provocação, nos termos do art. 88 da Lei de Defesa da Concorrência. Além disso, eventual descumprimento dessas obrigações poderá levar à imposição de sanções por infração à ordem econômica, na hipótese de configuração de alguma das condutas previstas no art. 36 da Lei de Defesa da Concorrência.
Estabelecidas as obrigações e os compromissos expressamente assumidos pelas requerentes nos presentes autos, os quais serviram como premissa e base para a presente decisão, tenho ser o caso de APROVAÇÃO DA OPERAÇÃO, sem a imposição de restrições adicionais. Nesse contexto, acompanho o voto do Conselheiro-Relator.
É como voto.
gustavo augusto freitas de lima
Conselheiro
(assinado eletronicamente)
[1] PIRAINO JR, Thomas A. Beyond Per Se, Rule of Reason or Merger Analysis: A New Antitrust Standard for Joint Ventures. Minn. L. Rev., v. 76, p. 9-10, 1991.
[2] No original: “In particular circumstances, joint ventures can, however, adversely affect competition.31 The adverse effect may be significant when more than one of the joint venture partners was already active in the joint venture market, or could have entered the market independently.38 In such cases, competition that otherwise would have existed between the partners in the joint venture market will be eliminated. Such a reduction of competition will occur because the partners will, in the natural course, refrain from competing with a venture in which They have a financial interest. Joint ventures can also restrict competition in other markets in which the partners previously competed. The joint venture may provide a mechanism to cloak conspiracies to fix prices, allocate territories, or engage in other anti-competitive activity in such other markets. PIRAINO JR, Thomas A. Beyond Per Se, Rule of Reason or Merger Analysis: A New Antitrust Standard for Joint Ventures. Minn. L. Rev., v. 76, p. 11, 1991.
[3] No original “Competitor collaborations may harm competition and consumers by increasing the ability or incentive profitably to raise price above or reduce output, quality, service, or innovation below what likely would prevail in the absence of the relevant agreement. Such effects may arise through a variety of mechanisms. Among other things, agreements may limit independent decision making or combine the control of or financial interests in production, key assets, or decisions regarding price, output, or other competitively sensitive variables, or may otherwise reduce the participants’ ability or incentive to compete independently. Competitor collaborations also may facilitate explicit or tacit collusion through facilitating practices such as the exchange or disclosure of competitively sensitive information or through increased market concentration. Such collusion may involve the relevant market in which the collaboration operates or another market in which the participants in the collaboration are actual or potential competitors.” Antitrust Guidelines for Collaborations Among Competitors. Issued by the Federal Trade Comission and the U.S. Department of Justice. Disponível em: https://www.ftc.gov/sites/default/files/documents/public_events/joint-venture-hearings-antitrust-guidelines-collaboration-among-competitors/ftcdojguidelines-2.pdf. Acesso em junho de 2023.
[4] Os objetivos do CWS (Consumer Wefare Standard) são produtos ou serviços mais baratos, oferecidos em maior quantidade e com qualidade igual ou superior.
[5] Item 3.31(a) do Antitrust Guidelines for Collaborations Among Competitors. Issued by the Federal Trade Comission and the U.S. Department of Justice. Disponível em: https://www.ftc.gov/sites/default/files/documents/public_events/joint-venture-hearings-antitrust-guidelines-collaboration-among-competitors/ftcdojguidelines-2.pdf. Acesso em junho de 2023.
[6] Disponível em: https://www.justice.gov/archive/atr/public/press_releases/2004/204592.htm#:~:text=WASHINGTON%2C%20D.C.%20%2D%20De%20Beers%20Centenary,the%20Department%20of%20Justice%20announced. Acesso em junho de 2023.
[7] No original: “Agreements Challenged as Per Se Illegal. Agreements of a type that always or almost always tends to raise price or to reduce output are per se illegal. The Agencies challenge such agreements, once identified, as per se illegal. Types of agreements that have been held per se illegal include agreements among competitors to fix prices or output, rig bids, or share or divide markets by allocating customers, suppliers, territories, or lines of commerce. The courts conclusively presume such agreements, once identified, to be illegal, without inquiring into their claimed business purposes, anticompetitive harms, procompetitive benefits, or overall competitive effects. The Department of Justice prosecutes participants in hard-core cartel agreements criminally.” Item 1.2 do Antitrust Guidelines for Collaborations Among Competitors. Issued by the Federal Trade Comission and the U.S. Department of Justice. Disponível em: https://www.ftc.gov/sites/default/files/documents/public_events/joint-venture-hearings-antitrust-guidelines-collaboration-among-competitors/ftcdojguidelines-2.pdf. Acesso em junho de 2023.
[8] Disponível em: https://foreignpolicy.com/2022/03/05/sri-lanka-organic-farming-crisis/. Acesso em junho de 2023.
[9] BOTTA, Marco; WIEDEMANN, Klaus. The interaction of EU competition, consumer, and data protection law in the digital economy: the regulatory dilemma in the Facebook odyssey. The Antitrust Bulletin, v. 64, n. 3, p. 432, 2019.
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[10] Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2019/07/dados-sao-o-novo-petroleo-diz-ceo-da-mastercard.html. Acesso em junho de 2023.
[11] B2B – business to business.
[12] Uso o termo “dado”, nesse contexto, como sinônimo de “informação”, em prol da simplicidade do argumento contido no meu voto e para permitir a melhor compreensão pelo público leigo. Nesse contexto, emprego ambos os termos, dado e informação, de forma relativamente indistinta, privilegiando a expressão “dado” por ser a que é melhor compreendida pelo público em geral. Contudo, dado e informação são insumos distintos. Dado é o insumo bruto, não tratado e, portanto, de baixo valor agregado. A informação, por sua vez, é obtida por meio do tratamento e processamento dos dados, momento no qual ela alcança maior valor econômico.
[13] Processos administrativos nºs 087010.000729/2016-76, 08700.000738/2016-67 e 08700.000739/2016-10.
[14] SOLOVE, Daniel J. Introduction: Privacy self-management and the consent dilemma. Harvard Law Review, v. 126, p. 1880, 2012.
[15] GAL, Michal S.; RUBINFELD, Daniel L. The hidden costs of free goods: Implications for antitrust enforcement. Antitrust Law Journal, v. 80, n. 3, p. 521-562, 2016.
[16] Ato de Concentração nº 08700.004293/2022-32. Voto SEI 1164755.
[17] A Comissão Europeia multou a Google em 2,42 bilhões de Euros, em 2017, por ter abusado de sua posição dominante no mercado de motores de busca online, visto que conferiu vantagem ilegal a seu próprio serviço de comparação de preços. Para mais informações, ver: COMISSÃO EUROPEIA. Antitrust Cartel Cases: 39740 Google Search (Shopping). 27 jun. 2017. Disponível em: https://competition-cases.ec.europa.eu/cases/AT.39740. Acesso em junho de 2023.
[18] No Brasil, as empresas BondFaro e Buscapé, ambas detidas pela ECommerce Media Group Informação e Tecnologia Ltda., apontaram duas condutas anticompetitivas do Google: autofavorecimento por meio de práticas discriminatórias aos sites de comparação de preço e contratação de anúncios com fotografia e sub-links no Google Busca condicionada ao fornecimento de conteúdo ao Google Shopping. (Processo Administrativo n° 08012.010483/2011-94)
[19] Antitrust: Commission accepts commitments by Amazon barring it from using marketplace seller data, and ensuring equal access to Buy Box and Prime. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_22_7777. Acesso em junho de 2023.
[20] Item 2.2.1 do Guia de Remédios Antitruste. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/guia-remedios.pdf. Acesso em junho de 2023.
[21] Ato de Concentração nº 08700.004540/2021-10.
| Documento assinado eletronicamente por Gustavo Augusto Freitas de Lima, Conselheiro, em 27/06/2023, às 18:25, conforme horário oficial de Brasília e Resolução Cade nº 11, de 02 de dezembro de 2014. |
| A autenticidade deste documento pode ser conferida no site sei.cade.gov.br/autentica, informando o código verificador 1252016 e o código CRC 1E95AADA. |
Referência: Processo nº 08700.009905/2022-83 | SEI nº 1252016 |