Ministério da Justiça e Segurança Pública - MJSP
Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE
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Processo Administrativo nº 08700.005969/2018-29
Representante: Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública
Representados(as): Conselho Federal de Medicina e Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo
Advogados(as): Adriana Teixeira da Trindade Ferreira, Olga Codorniz Campello Carneiro, Turíbio Teixeira Pires de Campos e José Alejandro Bullón
Relator(a): Conselheira Lenisa Rodrigues Prado
VOTO DA RELATORA - CONSELHEIRA LENISA RODRIGUES PRADO
VERSÃO PÚBLICA
Ementa: |
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voto
I. RELATÓRIO
I.1. REPRESENTAÇÃO, INQUÉRITO ADMINISTRATIVO E INSTAURAÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO.
Trata-se de Processo Administrativo instaurado pelo Despacho SG nº 05/2019 (SEI nº 0584782), publicado no DOU em 27.02.2019, contra o Conselho Federal de Medicina – CFM e o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP, a fim de investigar possíveis ocorrências de infração à ordem econômica consistentes na edição de normas, pelo CFM, voltadas a proibir a aceitação de cartões de descontos para prestação de serviços médicos, bem como na realização de ações, por parte do CREMESP, para fazer cumprir tal proibição.
Precedeu este Processo Administrativo o Inquérito Administrativo nº 08700.005969/2018-29, instaurado por força do Despacho SG Instauração de IA nº 28/2018 (SEI nº 0540519). O lastro do procedimento configurara-se nas razões expostas no Ofício 52/2018/GAB-DPDC/SENACON-MJ (SEI nº 0536369), emitido pelo Departamento de Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública e recepcionado em 11.10.2018 neste Conselho Administrativo de Defesa Econômica, sugerindo a imediata suspensão do art. 72 do Código de Ética do Conselho Federal de Medicina [1] (“Código de Ética médica”).
Acompanharam a denúncia cópias de diversas sindicâncias e notificações de autoria do CREMESP contra clínicas e profissionais médicos em razão da aceitação do cartão de descontos “Cartão de Todos”, sob alegação de infração ao art. 72 do Código de Ética médica, bem como à Resolução CFM 1.974/2011, art. 3º, alínea “i” [2], e à Resolução 1.649/2002, art. 1º[3].
Segundo o SENACON, as normas e ações questionadas, centralizadas na figura do “Cartão de Todos”, seriam eminentemente inconstitucionais na medida em que transgrediriam os preceitos constitucionais da livre concorrência e da ordem econômica.
A Representante sustentou que os cartões de desconto seriam serviço voltado a atender uma faixa de consumidores de baixa renda que não tem acesso aos tradicionais planos de saúde em razão dos altos custos. A Secretaria explicou que esses cartões não se confundem com os planos de saúde, conforme posicionamento já firmado pela ANS, e estariam, portanto, a margem do mercado de saúde suplementar. Nesta toada, frisou que os cartões não foram alvo de proibição por parte da Agência Reguladora. Na visão da Representante, os cartões representariam um alinhamento do mercado com a realidade econômico-social brasileira, não havendo, portanto, lastro para a proibição de tal serviço. A posição do Conselho Federal de Medicina, no sentido de repudiar os cartões sob a alegação de significarem a mercantilização da profissão e de propiciarem sua desvalorização, estaria, disse-se, em completo descompasso com a realidade nacional e, no mais, vazia de fundamentos: o primeiro argumento levaria à proibição também de que médicos sejam donos de hospitais, clínicas, etc., e, em relação ao segundo, não procederia tendo em vista que as notícias são de que os cartões de desconto pagam ao profissional quantias similares ou até superiores àquelas pagas pelos planos de saúde.
Para instrução do Inquérito Administrativo, as Representadas foram oficiadas (SEI nº 0544471 e 0544536) para que informassem quais as proibições e punições impostas aos profissionais e estabelecimentos de saúde em razão do atendimento de usuários do “Cartão de Todos”, bem como em razão da publicidade de tal cartão.
Em resposta ao Ofício nº 5.272/2018, o CREMESP não negou que praticasse tais condutas, explanando que instaurou diversas sindicâncias para apurar supostas atuações de médicos inscritos em seus quadros que estariam em desacordo com o art. 72 do Código de Ética médica, editado pelo CFM. Em função das previsões da Lei nº 3.268/57 (dispõe sobre os Conselhos de Medicina, e dá outras providências), estas ações estariam em estrita congruência com suas atribuições legais. Adentrando em questões que extrapolavam o teor do Ofício, narrou que a cobrança dos cartões diretamente na conta de energia elétrica estava sendo questionada judicialmente, bem como que a ANS editara Resolução Normativa na qual desaconselhava a contratação e serviços como os cartões de desconto. Por fim, declarou não impor punições aos estabelecimentos de saúde, seja pelo atendimento a usuários do “Cartão de Todos, seja pela publicidade do cartão, porquanto a vedação do art. 72 do Código de Ética Médica diga respeito somente aos médicos. Quanto a estes, apontou as penas previstas no art. 22 da Lei nº 3.268/57 [4] como aplicáveis no caso de infração ética (SEI nº 0552518).
O CFM, por seu turno, respondeu ao Ofício nº 5.267/2018 em três tempos. Em 06.12.2018, informou que, “em virtude da argumentação apresentada (...) e da realidade fática noticiada”, estaria revisando as resoluções relativas a cartões de desconto, com possibilidade de alteração e até mesmo extinção. Em vista disso, solicitou concessão do prazo de 90 dias até deliberação final sobre a matéria (SEI nº 0556190). Em 21.12.2018, informou que o CFM, em sessão plenária ocorrida em 13.12.2018, revogara a Resolução CFM nº 1.649/2002 e o art. 4º da Resolução CFM nº 2.170/2017 [5], bem como alterara o teor do art. 72 do Código de Ética Médica, extinguindo as proibições referentes aos cartões de descontos (SEI nº 0562358). Por derradeiro, em 09.04.2019, quando já instaurado o presente Processo Administrativo, manifestou-se novamente informando editada a Resolução CFM nº 2.226/2018, aprovada em sessão plenária ocorrida em 21.03.2019, que revogou o art. 5º e parágrafo único da Resolução CFM nº 2.170/2017 [6] (SEI nº 0602570).
Ademais, também por meio de ofícios solicitou-se informações correlatas aos representantes das clínicas que figuravam nas sindicâncias juntadas ao Ofício-denúncia da SENACON, e à Todos Empreendimentos Ltda, empresa responsável pelo “Cartão de Todos”.
Em resposta (SEI nº 0551338), a Life Clinic Pinheiros informou que realiza atendimento aos portadores do “Cartão de Todos” desde 15.05.2017, não tendo cessado os atendimentos apesar das sindicâncias movidas pelo CREMESP contra a clínica e contra os profissionais que atendem dentro do estabelecimento. Informou que teve que cancelar diversos atendimentos que estavam agendados com antecedência pelos pacientes da clínica, em função do desligamento de alguns médicos de seu corpo clínico por conta dos processos de sindicâncias abertos pelo CREMESP. A Life Clinic Pinheiros afirmou entender que a vedação ao cartão de desconto baseado no fundamento de desvalorização da profissão não encontra amparo fático, já que os médicos seriam tão bem ou melhor remunerados do que aqueles que trabalham por conta própria ou para planos de saúde. Para a clínica, o convênio com o “Cartão de Todos” traz bons resultados e um grande número de clientes, sem as pesadas imposições e a má remuneração dos planos de saúde. Por fim, afirmou que a vedação expressa pelo art. 72 do Código de Ética Médica representaria violação ao art. 170 da Constituição Federal de 1988 [7] (“Constituição Federal”), ao não permitir a livre iniciativa e o exercício da atividade econômica.
A Pires e Pereira Odontologia informou que diversas sindicâncias e processos ético-profissionais foram instaurados pelo CREMESP sob a argumentação de infração ao art. 72 do Código de Ética Médica e à Resolução nº 1.649/02 do CFM, tendo fornecido os números de tais processos. Destacou que vários médicos que atendiam os portadores do “Cartão de Todos” na clínica foram intimados a prestar depoimento na sede do CREMESP e deixaram de atender logo após essa convocação, causando transtornos operacionais à clínica e deixando pacientes sem atendimento. Os nomes dos médicos foram listados pela clínica (SEI nº 0555239).
A Clínica Médica e Odontologia Sapopemba respondeu que alguns médicos deixaram de atender os portadores do “Cartão de Todos” na clínica por medo de incorrer em infração ética (SEI nº 0555557).
A Clínica Mais Saúde listou os nomes dos médicos que deixaram de atender os portadores do “Cartão de Todos” na clínica, em função de fiscalizações, sindicâncias e ameaças sofridas pelo CREMESP (SEI nº 0558537).
A Clínica de Saúde Araçatuba afirmou que seu diretor técnico sofreu diversas sindicâncias “em evidente perseguição” promovida pelo CREMESP [8], tendo sido condenado na penalidade prevista na alínea “a” do art. 22 da Lei nº 3.268/57 (advertência confidencial em aviso reservado). Afirmou que “as fiscalizações realizadas ao longo dos últimos anos sempre se caracterizaram pelo caráter espetaculoso e espalhafatoso além de sempre se dirigirem aos profissionais médicos com ameaças de cassação ao direito de atuar e de imposição de penalidades vexaminosas”. Em função das ações praticadas pelo CREMESP, muitos médicos deixaram de prestar serviços e atender pacientes nas dependências da clínica. Afirmou também que o CREMESP se recusou a renovar o registro da clínica sob a alegação de que haveria proibição à realização de atendimentos dos pacientes portadores do “Cartão de Todos” (SEI nº 0559603).
A Todos Empreendimentos afirmou que os Representados rotineiramente tomam medidas que prejudicam o funcionamento do cartão no segmento de serviços médicos. Narrou que os Conselhos Regionais de Medicina instauram sindicâncias e processos éticos contra os médicos e responsáveis técnicos das clínicas parceiras do “Cartão de Todos”, o que faz com que muitos médicos deixem de atender pelo cartão, desabastecendo as clínicas de profissionais e prejudicando a população de mais baixa renda usuária do cartão. Para além, sustentou que os CRMs determinam o descredenciamento dos médicos que atendem portadores do “Cartão de Todos”, afirmando haver “infração ética”, “aviltamento da profissão médica”, “preço vil”, “concorrência desleal”, todos termos utilizados para desmotivar os médicos de atender nas clínicas parceiras. A Todos Empreendimentos acusou os Representados de prática de sham litigation, em virtude das denúncias infundadas contra o “Cartão de Todos”, as clínicas parceiras e os médicos que nela atendem (SEI nº 0554538).
Exaurida a instrução, a SG entendeu pela instauração do presente Processo Administrativo por haver fortes indícios da ocorrência de infração à ordem econômica. Por meio do Despacho SG instauração Processo Administrativo Nº 5/2019 (SEI nº 0584782), adotou medida preventiva determinando aos Representados: (i) a cessação imediata da eficácia dos dispositivos normativos por eles editados, no que tange aos cartões de descontos, bem como de todas as resoluções do CFM relacionadas à matéria; (ii) a cessação imediata de qualquer tipo de ação que vise fazer cumprir a proibição de aceitação dos cartões de descontos pelos médicos.
Em 19.03.2019, o Protocolo do Cade emitiu certidão atestando que os Representados foram devidamente notificados, dando ciência do início da contagem do prazo para apresentação das defesas (SEI nº 0594086).
I.2. DEFESAS DOS REPRESENTADOS E INSTRUÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO.
Em 03.04.2019, o Cremesp apresentou sua defesa, na qual não suscitou questões preliminares de nulidade processual (SEI nº 0599817). No que se refere ao pedido de provas, afirmou não ter interesse “neste momento” na produção de prova testemunhal e protestou, de forma genérica, provar suas alegações por meio de todos os meios de prova admitidos no direito. Quanto ao mérito, alegou que agira estritamente de acordo com o que determina a legislação em vigor ao instaurar as sindicâncias e demais ações para reprimir a aceitação de cartões de desconto por profissionais médicos, precisamente em função de sua competência fiscalizatória da atividade médica. Segundo contou, a prestação de serviços médicos mediante aceitação de cartões de desconto coloca em risco a saúde da população, uma vez que as empresas emissoras não possuem qualquer compromisso de qualidade ou responsabilidade civil. Com vistas nisso, os Conselhos Regionais de Medicina apoiaram a edição, por parte do CFM, dos dispositivos normativos questionados neste Processo Administrativo. Ademais, a própria ANS já teria publicado cartilha pontuando que os cartões de desconto não são serviços similares aos planos de saúde. O Representado sustentou, ainda, que os cartões de desconto consubstanciariam uma mercantilização dos serviços médicos e, portanto, deveriam ser vedados. Nesta esteira, o afã de cumprir a vedação coadunaria com a “preservação da qualidade da prestação dos serviços médicos diante da respectiva remuneração”. Por fim, denunciou que a cobrança de tais cartões de desconto estaria sendo efetuada diretamente nas contas de energia elétrica dos consumidores, objeto que foge ao presente Processo Administrativo e mesmo à competência deste Órgão.
Considerando a contagem em dobro do prazo de defesa por haver mais de um representado nos autos do processo, em 20.05.2019 transcorreu in albis o prazo para o CFM apresentar sua defesa.
O Despacho SG nº 739 (SEI nº 0625240), com base na Nota Técnica nº 34/2019/CGAA2/SGA1/SG/CADE (SEI nº 0624608), saneou o feito e decretou a revelia do CFM, bem como a preclusão do direito do CREMESP de produzir prova testemunhal nos autos, resguardando, entretanto, em relação a ambos os Representados, o direito de promover a juntada de prova documental até o encerramento da instrução do Processo, nos termos do art. 195, § 5º, do Regimento interno do Cade.
Em 24.06.2019, o CFM apresentou pedido de reconsideração da decretação de revelia, alegando ter se manifestado nos autos em 09.04.2019 informando a revogação das resoluções que questionadas neste Processo. Sustentou, ainda, a perda de objeto deste Processo em virtude da mencionada revogação já consubstanciada. Por fim, requereu ser intimado dos atos processuais futuros.
Em 09.07.2019, foi publicado o Despacho SG nº 911/2019 (SEI nº 0635439), com base na Nota Técnica nº 47/2019/CGAA2/SGA1/SG/CADE (SEI nº 0635335), indeferindo o pedido de reconsideração da revelia decretada. A negativa observou que a manifestação invocada pelo CFM como capaz de afastar a revelia fazia referência, em verdade, ao Ofício nº 5267/2018, expedido ainda em âmbito do Inquérito Administrativo. Segundo a Nota Técnica nº 47:
“No documento apresentado, em nenhum momento, o CFM fez menção à notificação para apresentação de defesa que lhe foi enviada, não apresentou nenhum argumento de defesa e nem tampouco fez qualquer observação sobre eventuais provas que desejava ver produzida. Por essas razões, entende-se não ser possível considerar que o CFM manifestou-se em relação à notificação de defesa, visto que apenas fez um aditamento de resposta a um ofício expedido quando o feito ainda tramitava como inquérito administrativo.
[...]
Por fim, observe-se ainda que o principal efeito da revelia é a presunção quanto à veracidade dos fatos e não do direito arguidos pelo Representante (art. 344 do CFC). Como nos presentes autos, os fatos alegados não são questionados, novamente aqui não há que se falar em prejuízo à defesa do Representado.” (SEI nº 0635335)
Por meio de documento intitulado de “Manifestação Escrita” (SEI nº 0648618), protocolado nos autos em 12.08.2019, o CFM levantou questões de direito afirmando não ser possível identificar infração à ordem econômica nos fatos que ensejaram a instauração deste Processo Administrativo. A título de prejudicial de mérito, alegou que o ilícito não poderia ser analisado em razão da prescrição quinquenal já operada, tendo em vista que a norma objeto deste Processo Administrativo fora editada em 2002. Outrossim, consignou que a Representação da qual se originou este Processo Administrativo violara o princípio constitucional da presunção de inocência, não respeitando o contraditório e a ampla defesa. No mérito, afirmou que, por ser uma Autarquia Federal, não deteria poder de mercado capaz de influenciar o mercado e/ou prejudicar a ordem econômica, sobretudo porque as Resoluções Normativas editadas decorreriam do “exato cumprimento da Legislação, em especial o artigo 196 c/c 197 da CF/88”, estando, pois, em compasso à sua competência institucional de “zelar pelo bom conceito da profissão e dos que a exerçam” e de “fiscalizar o exercício técnico e moral da Medicina”. Suas condutas estariam “amparadas nas seguintes liberdades e as garantias constitucionais: a) Liberdade de pensamento (art. 5, IV); b) Liberdade de ação profissional (art. 50, XIII); c) Direito à informação (51, XIV); d) Direito dos consumidores (art. 50, XXXII); e) Direitos sociais e direitos econômicos (arts. 70 e 193); f) Direito à saúde (art. 196 e 197)”. Em verdade, segundo contou, as normas editadas pelo CFM não impediam a livre negociação de honorários entre médicos e pacientes (consumidores), e, sobretudo, não haveria qualquer prova de prejuízo causado aos consumidores. Ademais, o CFM não poderia ser punido porque jamais praticara qualquer ato de punição a médicos com base nas normas proibitivas. De qualquer maneira, as normas não poderiam ser entendidas como ilícito, por se mostrarem um exercício do poder compensatório reconhecido pela doutrina e jurisprudência antitruste. No mais, pontuou que a Representante não tem competência para punir administrativamente os médicos, uma vez que tal poder é exclusivo dos Conselhos de Medicina. Por fim, requereu a produção de prova testemunhal.
Além das Notificações enviadas aos Representados, foram expedidos também os Ofícios nº 4161 (SEI nº 0630897) e 4180 (SEI nº 0631331), requerendo informações ao Cremesp e à empresa Todos Empreendimentos Ltda, respectivamente. Ao Cremesp foi questionado, em suma, (i) quais as medidas tomadas para fazer cumprir a medida preventiva adotada pelo Cade; (ii) qual o procedimento adotado em relação aos processos de sindicância já instaurados à época da adoção da medida preventiva; e (iii) se algum processo de sindicância permanecia vigente mesmo após a medida preventiva. À Todos Empreendimentos Ltda questionou-se se teve conhecimento de alguma ação ou abertura de sindicância, após a adoção da medida preventiva, por parte do Cremesp, contra médicos ou clínicas em função de aceitarem os cartões de desconto.
Em 23.07.2019, o Cremesp respondeu o Ofício nº 4161 informando ter deliberado imediatamente, em Reunião Plenária, “a suspensão de todas as sindicâncias e processos ético-profissionais que se encontravam em andamento”, bem como ter realizado “busca extensa no sistema de processos e acredita inexistir qualquer processo em trâmite com tais características”. Apresentou relação com todos os processos sobrestados por envolverem o tema, totalizando 275 (duzentos e setenta e cinco) procedimentos.
A Todos Empreendimentos Ltda. não respondeu ao Ofício nº 4180.
Após a “Manifestação Escrita” do CFM, em 04.09.2019 foi publicado no DOU o Despacho SG nº 1147/2019 (SEI nº 0655839), decidindo pelo encerramento da fase instrutória e notificando os Representados para apresentação de novas alegações em 05 (cinco) dias úteis. O Cremesp apresentou sua manifestação em 09.09.2019 (SEI nº 0658702), reiterando os argumentos apresentados em sua defesa, nomeadamente o de que agira de acordo com suas atribuições legais, fazendo cumprir as normativas emanadas pelo CFM. Ainda em 09.09.2019, o CFM juntou suas alegações finais (SEI nº 0658740) repetindo ipse litteris as alegações de direito veiculadas em sua “Manifestação Escrita”.
I.3. PARECERES DA SUPERINTENDÊNCIA-GERAL E DA PROCADE.
Concluída a instrução, a Superintendência-Geral emitiu a Nota Técnica nº 70/2019/CGAA2/SG/A1/SG/CADE (SEI nº 0659115) e o Despacho SG nº 14/2019 (SEI nº 0659319), concluindo pela condenação dos Representados “por entender configurada infração à ordem econômica, nos termos do art. 36, incisos I e IV, c/c § 3º, inciso VIII, da Lei nº 12.529/2011”.[9]
Acerca da prejudicial de prescrição reclamada pelo CFM, a SG apontou que a infração em testilha tratava-se de uma prática continuada que produziu efeitos no mercado até a adoção da medida preventiva pelo Cade, quando do Despacho SG nº 5/2019 (SEI nº 0584782). Desta feita, restaria patente a improcedência da arguição, vez que a contagem do prazo prescricional só se iniciaria a partir da cessação da conduta. O entendimento foi ratificado pelo Parecer da ProCADE (SEI nº 0706418), que chamou atenção ao teor do art. 46 da Lei nº 12.529/2011.[10]
Sobre a regularidade procedimental, a SG defendeu que o direito do CFM de produzir prova testemunhal precluiu quando deixou decorrer in albis o prazo para responder à notificação de instauração do presente Processo Administrativo, momento oportuno para apresentar defesa e requerer tal espécie de prova. No mesmo sentido, a ProCADE atestou que todos os dispositivos legais concernentes à tramitação do processo, bem como ao direito de resposta, de produção e manifestação acerca das provas, foram estritamente observados no curso do presente Processo Administrativo, não subsistindo qualquer vício a maculá-lo.
No mais, ainda de saída, tanto a SG quanto a ProCADE sustentaram uma indiscutível submissão das entidades representativas de classe e de suas atitudes, normativas e fiscalizatórias, ao escrutínio antitruste. Ambas invocaram a literalidade do art. 31 da Lei nº 12.529/2011[11]. Indo além, a SG asseverou:
“75. (...) Tais entidades se revestem de competência regulatória, ditando normas de funcionamento dos mercados e que, por vezes, tais competências podem ser utilizadas com o intuito de criar ou preservar reserva de mercado, obstruir a concorrência ou criar, artificialmente, barreiras à entrada e ao funcionamento de novos competidores
(...)
83. Registra-se que o Código de Ética Médica não tem força de lei, sendo meramente uma resolução aprovada pelo CFM. Os dispositivos nele contidos devem ater-se estritamente a cumprir as atribuições conferidas ao CFM e aos conselhos regionais de medicina pela Lei nº 3.268/1957. Assim, qualquer eventual divergência ou extrapolação dos dispositivos constantes do Código de Ética Médica ou das demais resoluções do CFM com as regras da livre concorrência está sujeita ao escrutínio do Cade. ”
A concordância entre SG e ProCADE verificou-se também no que tange ao efetivo poder de mercado detido e exercido pelos Representados. Cada uma em seus termos, as autoridades apontaram que tal poder decorre inexoravelmente do traçado de normas e condições para o exercício da profissão médica, bem como da fiscalização exercida por tais entidades. De tal modo, todos os profissionais estão sujeitos às normativas por elas erigidas, sob pena de, em última instância de punição disciplinar, verem cassado o direito de exercer a profissão.
Adentrando na materialidade da conduta enquanto infração à ordem econômica, a SG combateu o argumento de que os cartões de desconto concorreriam para uma mercantilização e desvalorização da profissão médica, e, por isso, não caberia o rechaço à sua proibição. Essas justificativas se mostrariam frágeis e desarrazoadas tendo em vista três fatores: (i) os cartões de desconto atingiriam segmento de mercado consumidor que antes não teria acesso aos serviços médicos privados; (ii) as notícias são de que os valores pagos aos médicos pelos cartões de desconto são similares àqueles pagos pelos planos de saúde; e (iii) se há de se considerar a aceitação de cartões de desconto como mercantilização da profissão, nos termos propostos, também não poderiam os médicos serem donos de hospitais, clínicas, laboratórios e afins.
O investigador assentou que “o uso do termo ‘mercantilização’ de maneira pejorativa apenas distorce o significado do termo, em uma tentativa de dotar os serviços de medicina como integrantes de uma categoria superior de serviços”. Ademais, arguiu que, dada a essencialidade do serviço e a inelasticidade da demanda, o terreno seria propício para o exercício abusivo do poder de mercado por parte de seus agentes, agravando tanto mais a criação de entraves adicionais à competição.
Na mesma esteira, a ProCADE considerou que a principal motivação para o uso dos cartões é permitir o acesso aos serviços de saúde à população mais carente por meio da prática de preços mais acessíveis. Logo, a proibição dessa concessão de descontos seria duplamente danosa na medida em que eleva o preço para aquela parcela da população e impede que os médicos prestem serviços pelo preço que julguem adequado.
Arrematando a materialidade da conduta, ambos os Pareceres entenderam que as provas carreadas aos autos, nomeadamente os documentos trazidos à baila já na representação do DPDC/MJ e aqueles outros adicionados quando das respostas aos ofícios expedidos na instrução do Inquérito e do Processo Administrativo, congruem no sentido de evidenciar que os atos praticados pelo CREMESP foram capazes de efetivamente afastar a classe médica do uso de cartões de desconto. As autoridades concluem, em unissonância, que a conduta ensejou a redução da concorrência e a elevação dos preços dos serviços prestados.
No mais, em relação ao argumento do CFM de que não há notícia da prática de nenhum ato a ele atribuível no sentido de impedir a aceitação de cartões de desconto, ou mesmo punir os profissionais que o aceitassem, a ProCADE precisou que “não é possível afastar sua responsabilidade pelo cometimento da infração à ordem econômica, já que editou as resoluções que permitiram instrumentalizar os conselhos regionais para as providências (...) no que se refere à proibição de aceitação de cartões de descontos para prestação de serviços médicos”. Desta feita, não restaria possível evadir-se da incidência dos tipos dispostos no caput do art. 36 da Lei nº 12.529/2011.
Por fim, a ProCADE combateu, ainda, o reclame de legítimo exercício de poder compensatório, realizado pelo CFM. Ao parecer da Procuradoria, a tese não seria aplicável ao caso em testilha sobretudo por não se verificar um desequilíbrio de forças que colocasse os cartões de desconto em posição dominante em relação aos profissionais médicos, e, por outro lado, não se observar nenhuma eficiência econômica oriunda dos atos normativos editados e procedimentos instaurados no sentido inibir a aceitação do “Cartão de Todos”.
Em que pese a afinidade em seus posicionamentos, SG e ProCADE divergiram quanto à capitulação dos ilícitos. A Superintendência pugnou a pela condenação enquadrada no art. 36, incisos I e IV, c/c § 3º, inciso VIII, da Lei nº 12.529/2011 (vide Nota de Rodapé nº 8), enquanto a Procuradoria advogou pelo enquadramento das condutas no art. 36, inciso I, c/c § 3º, incisos III e VIII, do mesmo diploma.[12]
É o Relatório.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. PONTOS CONTROVERTIDOS.
De proêmio, nota-se que não subsiste discussão acerca de questão de fato que possa influir na resolução do presente Processo. Sendo assim, para melhor esquadrinhar as questões de direito levantadas pelo Representante, e arguidas nos pareceres da SG e ProCADE, e nas defesas dos Representados, se mostra pertinente resgatar à ordem do dia as divergências observadas.
A título pré-meritório, cumpre decidir: pela ocorrência ou não de prescrição da pretensão punitiva, arguida pelo CFM; pela perda ou não do objeto do presente Processo diante da alteração normativa promovida pelo CFM, e do arquivamento das sindicâncias instauradas pelo CREMESP; pela regularidade ou não do presente Processo Administrativo e dos procedimentos a ele antepostos, questionada pelo CFM; e, por fim, pela submissão ou não dos Representados ao escrutínio do Cade e, portanto, pela competência ou não deste Tribunal para julgar as condutas.
Superado o introito, restará, para fins de configurar ou não a infração à ordem econômica, analisar:
Se os Representados detêm poder de mercado;
Se, uma vez detendo poder de mercado, os Representados assumiram condutas nocivas ou, ainda, potencialmente nocivas à ordem econômica, nos termos do art. 36, caput, incisos e parágrafos, da Lei nº 12.529/2011, como quiseram a Representante, a SG e a ProCADE, ou, de outro modo, tais condutas não significaram óbice ao livre exercício da atividade médica, à livre pactuação dos preços, e aos interesses dos consumidores, como defenderam os Representados.
Ainda, se as condutas assumidas esquivam dos tipos legais por caracterizarem, na verdade, o normal exercício de poderes e competências regulatórias e fiscalizatórias pelos Representados, sobretudo em vista de uma eventual “mercantilização” ou desvalorização da profissão advinda dos cartões de descontos;
Se a edição das normas e os atos repressivos não podem ser entendidos como ilícitos por se mostrarem um exercício do poder compensatório consagrado na doutrina e jurisprudência antitruste;
Qual a individualização das condutas diante do fundamento do CREMESP de ter tão somente agido no sentido de dar efetividade às resoluções do CFM, e, reflexamente, do CFM de não ter praticado nenhum ato voltado à punição de profissionais e estabelecimentos médicos em virtude da aceitação do “Cartão de Todos”.
Por fim, em concluindo pela condenação, restará a necessidade de indicar quais hipóteses normativas dentre aquelas do art. 36 incidem sobre as condutas, procedendo, ato contínuo, à dosimetria da eventual pena.
II.2. PREJUDICIAIS DE MÉRITO. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO E SUBSISTÊNCIA DE OBJETO.
Indubitável a inocorrência de prescrição. Bem pontuaram SG e ProCADE que a conduta ora analisada se revestiu de continuidade, sendo inepta a alegação do CFM de que a contagem do prazo prescricional se iniciara na data da edição da resolução normativa, ainda em 2002.
A perenidade percebida nas práticas pretensamente infracionais posterga o termo inicial da contagem do prazo quinquenal para momento da cessação dos efeitos alegadamente danosos. In casu, tal equação aponta para o dia 26.02.2019, data do Despacho nº 02/2019, que adotou medida preventiva suspensora das normativas anticoncorrenciais.
Como já apontado pela ProCADE, o caso é de inteligência da parte final do art. 46 da Lei 12.529/2011. Note-se:
Art. 46. Prescrevem em 5 (cinco) anos as ações punitivas da administração pública federal, direta e indireta, objetivando apurar infrações da ordem econômica, contados da data da prática do ilícito, ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado a prática do ilícito.
Imune de questionamentos, portanto, a inocorrência de prescrição da pretensão punitiva.
Ademais da prescrição, o CFM invocou também a operação de uma suposta perda de objeto em relação ao presente processo. Precisamente, afirmou que a revogação e/ou alteração das normas impugnadas pela SG e ora analisadas, materializada em março de 2019, teria esvaziado a pretensão punitiva, não mais subsistindo objeto sobre o qual possa recair o exame desta autoridade de defesa econômica.
Por motivo semelhante ao que atesta a inocorrência de prescrição, igualmente não prospera a tese de perda de objeto.
Como já assentado, a prática investigada caracterizou-se pela continuidade de seus efeitos, sendo certo que durante vigência da Resolução CFM nº 1.649/2002, do artigo 4º da Resolução CFM nº 2.170/2017, e da redação anterior do art. 72 do Código de Ética Médica, irradiaram-se os efeitos denunciados pelo Representante e ratificados pela SG e ProCADE como infringentes da ordem econômica.
Logo, a priori de analisar se, de fato, tais efeitos desencadeados configuraram ilícito concorrencial, o que poria por terra a legalidade das normativas, tem-se que o objeto do presente processo subsiste. Note-se que a exclusão de tais normas do mundo jurídico opera efeitos ex nunc, não retroagindo até sua entrada no mundo jurídico a fim de apagar as marcas gravadas durante seus períodos de vigência.
O que está sobre a mesa de discussões, ou seja, o objeto do presente processo é justamente a legalidade ou não de tais marcas oriundas das normativas canceladas. Como não poderia ser diferente, analisa-se os efeitos passados, porquanto estéril a possibilidade de novos efeitos.
Diante do contexto, segura a subsistência do objeto do presente processo. Improcedentes as prejudiciais de mérito.
II.3. PRELIMINARES DE MÉRITO.
Afastadas as prejudiciais, chega-se às preliminares. Ainda que não tenham sido levantadas sob esta rubrica, certo é que a regularidade processual e a competência deste órgão para julgar administrativamente a demanda são questões preliminares à análise do mérito. Não obstante, um eventual acolhimento não esvazia, ou, em termos técnico-jurídicos, não prejudica para além do processo em testilha a análise do mérito.
II.3.A. REGULARIDADE PROCESSUAL E SUBMISSÃO DOS REPRESENTADOS AO ESCRUTÍNIO ANTITRUSTE. COMPETÊNCIA DESTE TRIBUNAL ADMINISTRATIVO.
Dito isto, tem-se, de saída, a completa regularidade procedimental do presente Processo e de todas as fases que o precederão. Neste sentido, é descabida a afirmação do CFM de um suposto cerceamento à ampla defesa. Conforme já expôs a ProCADE em seu parecer, “a Superintendência-Geral do CADE atendeu a todos os dispositivos legais concernentes à tramitação do processo, bem como ao direito de resposta, de produção e manifestação acerca das provas, em tudo observando as formalidades essenciais à garantia dos representados”.
Ademais, a tese de que a atuação das associações e conselhos profissionais não se submetem ao escrutínio é demasiadamente antiga, remonta à vigência da Lei nº 8.884/94. Tão remota quanto a argumentação, somente o seu insucesso. Já à época do diploma anterior, o art. 15 espancava proposição; hoje, é a vigência do art. 31 que torna transparente a estultice da argumentação, absolutamente contra legem. In verbis:
Art. 31. Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal.
Em verdade, resta completamente sedimentada na jurisprudência desta autoridade administrativa a certeza de que as associações e conselhos médicos devem atuar observando os limites impostos pela legislação antitruste. Definitivamente, tal realidade não se altera em razão da constitucionalidade das competências regulatórias e fiscalizatórias outorgadas aos Representados.
A fim de ilustrar a estabilidade do entendimento ora relembrado, toma-se de empréstimo a fundamentação revisitada pela Conselheira Ana Frazão em diversos julgados sobre o tema:
“O fato de a atuação das representadas estar amparada pela liberdade de associação, direito fundamental expressamente assegurado na Constituição Federal, não afasta a conclusão. O referido direito, obviamente, não é absoluto, e deve ser interpretado à luz dos princípios da unidade da Constituição e da concordância prática, daí a necessidade de compatibilizá-lo com os princípios constitucionais da ordem econômica, notadamente a livre concorrência e a livre iniciativa.
[...]
Os médicos, ao disponibilizarem um serviço no mercado e assumirem os riscos de sua atividade, exercem de maneira inconteste atividade econômica, caracterizando-se como verdadeiros concorrentes. Dessa forma, a atuação das representadas, ao estipular e negociar coletivamente os preços dos honorários médicos, pode afetar a concorrência no mercado de serviços médico-hospitalares. Daí por que não há dúvidas de sua submissão à Lei 8.884/94 [atual Lei 12.529/11].” [13]
Na linha do que bem apontou a SG, a regulação inerente ao exercício da medicina, bem como sua supervisão e disciplina, outorgadas ao Conselho Federal e aos Conselhos Regionais de Medicina, deve se dar à luz dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência.
Ainda em concordância à Nota Técnica da SG, destaque-se que as normas ora analisadas residiam em resoluções normativas inarredavelmente sujeitas à conformidade legal. Desta feita, “qualquer eventual divergência ou extrapolação dos dispositivos constantes do Código de Ética Médica ou das demais resoluções do CFM com as regras da livre concorrência está sujeita ao escrutínio do Cade”.
Por tais razões e, no mais, aderindo aos fundamentos cravados nos pareceres da SG, da ProCADE, e na jurisprudência do Cade, entende-se por irremediável a submissão da atuação dos Representados à legislação antitruste e, por conseguinte, à competência deste Tribunal Administrativo.
II.4. MÉRITO.
A prática investigada consistia na estipulação de norma pelo CFM que proibia os médicos de estabelecerem vínculo de qualquer natureza com empresas que anunciassem ou comercializassem cartões de desconto e também proibia as clínicas médicas de fazerem promoções relacionadas a esses cartões. Ocorreram ainda ações empreendidas pelo Cremesp para fazer cumprir esses dispositivos em relação aos médicos e clínicas que atendiam portadores do “Cartão de Todos”.
As resoluções editadas pelo CFM para fazer valer o disposto no artigo 72 do Código de Ética Médica, que limitaram a atuação das empresas de cartões de desconto e os médicos que prestam serviços a elas, são as de nºs 1.649/2002 e 2.170/2017.
A Resolução CFM nº 1.649/2002 dispunha sobre deduções em honorários médicos por meio dos cartões de descontos, assim estabelecendo:
Art. 1º Considerar antiética a participação de médicos como proprietários, sócios, dirigentes ou consultores dos chamados cartões de descontos.
Art. 2º Fica proibida a inscrição destes Cartões de Descontos no cadastro de pessoas jurídicas dos Conselhos Regionais de Medicina.
Art. 3º É considerada infração ética a comprovada associação ou referenciamento de médicos a qualquer empresa que faça publicidade de descontos sobre honorários médicos.
Já a Resolução CFM nº 2170/2017 definia as clínicas médicas de atendimento ambulatorial, incluindo as denominadas clínicas populares, e determinava critérios para seu funcionamento e registro perante os Conselhos Regionais de Medicina. Em seu artigo 4º, traz a seguinte proibição referente aos cartões de descontos:
Art. 4º A clínica médica de atendimento ambulatorial, a exemplo das empresas médicas em geral, está impedida de oferecer qualquer promoção relacionada ao fornecimento de cartões de descontos ou similares.
Assim, a suposta conduta imputada aos representados compreende a utilização de normativos editados pelo CFM para obstar o funcionamento de empresas de cartões de desconto, sendo o Cremesp o agente fiscalizador e executor da referida prática em relação aos profissionais médicos e clínicas a que se vinculam no Estado de São Paulo.
Superadas as teses defensivas prejudiciais e preliminares, parte-se para a abordagem das questões alusivas ao mérito.
II.4.a. CONFIGURAÇÃO DO PODER DE MERCADO DOS REPRESENTADOS.
Ambos os Representados ventilaram a escusa de que não deteriam poder de mercado capaz de influenciar danosamente a ordem econômica, de tal modo que não poderia prosperar a pretensão punitiva do Estado contra si.
Entretanto, acolho expressamente as razões esposadas tanto pela SG em sua Nota Técnica nº 70, quanto pela ProCADE em seu parecer, no sentido contrário daquele traçado pelos Representados. Bem se demonstrou a larga capacidade dos Conselhos Profissionais em pressionar e até mesmo coagir a classe médica a adotar comportamento alinhado às suas normativas.
Nesta linha, a ProCADE bem assentou que:
“O poder que exercem os órgãos de fiscalização profissional sobre os médicos é percebível na medida que os profissionais estão sujeitos às penas disciplinares em decorrência da inobservância das normas previstas no Código de Ética Médica, cuja sanção máxima é a cassação do exercício profissional. Assim, sob a alegação de descumprimento dessas normas, nota-se que os representados impuseram condições de atuação com consequências diretas ao funcionamento do mercado de prestação de serviços médicos [...]”
Em verdade, apesar de tangenciarem pontos processuais distintos, a já mencionada sedimentação jurisprudencial da competência do CADE para julgar as atuações dos conselhos e associações profissionais, aí inclusos os Conselhos Federal e Regionais de Medicina, adianta pista do entendimento igualmente pacificado neste órgão acerca da configuração do poder de mercado dessas entidades. Similarmente à questão preliminar, a discussão (e a posição do CADE) é antiga.
A título ilustrativo, no Processo Administrativo nº 08012.004020/2004-64, tanto o voto da Conselheira Relatora Ana Frazão, quanto o voto-vogal do Conselheiro Márcio de Oliveira Junior consagraram o poder de mercado de Conselho Regional de Medicina. A posição é revisitada nos Processos nº 08012.002866/2011-99, 0812.003048/2003-01, 08012.005135/2005-57, etc. O entendimento reitera-se em tão diversos precedentes, e na voz de tantos Conselheiros que é inelutável constatar que forma, par excellence, uma jurisprudência sobre o tema.
Nos termos acertadamente escolhidos pela SG, “embora não atuem diretamente na atividade econômica, os Representados possuem poder de mercado sobre os médicos para exigir o cumprimento dos dispositivos do seu Código de Ética Médica. ”. Alinha-se, aqui também, ao voto vogal do Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior no Processo Administrativo nº 08012.002866/2011-99, mencionado no ponto “94” do Parecer da SG.
Em verdade, a investigação de processos anteriores envolvendo conselhos profissionais, tais quais os Representados, demonstra que a resolução dos casos tange sempre questão posterior à configuração ou não do poder de mercado.
Aliás, para além da jurisprudência uníssona, resta nítido o poder dos Representados quando se depara com as provas carreadas. As respostas dadas pelas clínicas oficiadas durante a instrução do presente atestam o recuo de diversos profissionais quanto à aceitação do “Cartão de Todos” após a abertura de sindicâncias e a expedição de notificações de advertência por parte do CREMESP.
Diante de todas as circunstâncias acima explanadas, descola da realidade fática a tese de que os Representados não detêm poder de mercado e, por conseguinte, não seriam capazes de praticar infração à ordem econômica. Ao revés, o poder de mercado resta devidamente demonstrado pelas provas documentais esposadas aos autos, bem como exaustivamente sedimentado na jurisprudência desta autoridade concorrencial.
II.4.b. NATUREZA DOS CARTÕES DE DESCONTOS.
Já de saída, entendo restarem inquestionáveis os danos causados em virtude da proibição normativa e pelas ações de repressão à aceitação do “Cartão de Todos” pelos profissionais médicos. Seja nos posicionamentos assumidos pela SG e ProCADE, seja nos documentos carreados aos autos ao longo da instrução, fica evidente a efetiva interferência negativa e ilegal dos Representados no mercado.
Como sabido por todos, a saúde é um direito fundamental do cidadão, previsto constitucionalmente, sendo prestado pelo Estado de maneira universal e permitida a atuação de assistência suplementar, esta última regulada pela ANS.
O “Caderno do Cade – Mercado de Saúde Suplementar: Condutas - 2015” define: “a assistência à saúde suplementar, em sentido amplo, é o conjunto de serviços de assistência à saúde prestados por particulares fora do Sistema Único de Saúde, através de operadoras de planos de saúde ou diretamente por profissionais ou instituições da área.” [14]
Também sobre o tema, o Glossário da ANS entende que “saúde suplementar” (ou assistência suplementar da saúde) se refere à atividade que envolve a operação de planos privados de assistência à saúde sob regulação do Poder Público [15].
Conforme logo se vê, os cartões de desconto, dentre os quais o “Cartão de Todos”, não se encaixam na rubrica de serviço de saúde suplementar, seja naquela do Cade, seja na da ANS.
A ANS já atestou terminantemente esse entendimento. Ainda em dezembro de 2014, publicou cartilha informativa a fim de orientar os consumidores acerca das características dos serviços oferecidos pelos cartões de desconto, diferenciando-os dos planos de saúde. Apontou a SG que: “a ANS alertou os consumidores de que as operadoras de planos de saúde não estão autorizadas a oferecer a cartões de desconto. No mais, ao não se tratar de um plano de assistência à saúde, a comercialização do “Cartão de Todos” não está sujeita à regulação da ANS.”
De fato, já há, inclusive, sentença judicial, proferida pelo Juiz Federal Tiago Bologna Dias, da 19ª Vara Federal Cível da 1ª Subseção Judiciária de São Paulo, no âmbito do Processo nº 0024240-76.2014.4.03.6100, no sentido de que inexiste óbice leal à prática dos cartões de desconto. O julgado foi citado pela SG e pela ProCADE, e ora se replica um trecho seu:
“O que se tem é meramente um serviço de aproximação entre os consumidores e prestadores de serviços de saúde credenciados à ré privada, além de alguns de outras espécies sob o mesmo regime, os quais em troca deste agenciamento prestarão seus próprios serviços àqueles sob preços promocionais, mediante pagamento pelo próprio consumidor.
(...)
Não há sequer se falar em concorrência entre os planos de assistência à saúde e os serviços prestados pela ré privada, pois tato seus preços quanto sua atuação são imensamente distintas, vale dizer, de um lado, um cartão de descontos não substitui um plano de saúde, muito mais seguro e abrangente no que toca à tomada de serviços de saúde, de outro, um cartão de descontos alcança consumidores de baixa renda a quem os preços de um plano de saúde são proibitivos, assim conferindo-lhes, em caso de atendimento por credenciado, preços menos que aqueles pagos em caso de atendimento privado direto.”
Com efeito, parece inegável a ideia de que é necessária a correta informação do consumidor para que não contrate um serviço de cartões de desconto acreditando contratar um plano de saúde. Aliás, em vista desse risco, o Ministério Público Federal celebrou Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta com a Todos Empreendimentos Ltda, ainda no âmbito do processo judicial acima, a fim de mitigar possíveis danos ao consumidor, oriundos de desequilíbrio informacional.
Sem prejuízo, e em paralelo, salta à vista a unissonância em relação à inexistência de óbice legal à atuação dos cartões de desconto, tanto por parte da ANS, quanto por parte da Justiça Federal.
Digna de especial atenção, ainda na sentença do Juiz Federal, a assertiva bem posta de que o serviço oferecido pelo “Cartão de Todos” avizinha-se a um agenciamento, uma aproximação entre médico e paciente, em nada tangendo a prestação de serviços médicos em si. Este ponto é significativo para entender a distância entre os cartões dos planos de saúde: não há, naqueles, a contratação de um escopo de especialidades e procedimentos sobre os quais incida uma garantia de atendimento ao paciente contratante, como ocorre nestes. O objeto do serviço dos cartões de descontos é, em verdade, de natureza estritamente pecuniária, na medida em que transaciona o pagamento de uma mensalidade, pelo consumidor, com o oferecimento de um desconto no preço dos honorários médicos, por parte do profissional e/ou estabelecimento credenciado.
Bem adverte-se, a propósito, o fato de as mensalidades cobradas pelos cartões de desconto serem diametralmente menores que aquelas cobradas pelos planos de saúde. Esta realidade, aliada à menor abrangência do serviço oferecido, direciona os cartões à uma parcela do mercado consumidor não atendida pelos planos de saúde em virtude da impossibilidade pecuniária.
É neste contexto que se colocam as normas proibitivas editadas pelo CFM e as providências punitivas éticas e disciplinares impetradas pelo CREMESP. Frise-se: num contexto em que a maior parte da população não tem acesso aos serviços de saúde suplementar tradicionais, e que não há óbice legal à atividade dos cartões de descontos.
Dito isso, tenha-se como assentado o fato de que os cartões de desconto não encontram, a priori, obstáculo no ordenamento pátrio, inexistindo lei capaz de inviabilizar sua atividade.
II.4.c. INTERFERÊNCIAS PREJUDICIAIS CAUSADAS PELOS REPRESENTADOS NO MERCADO.
As provas produzidas e juntadas nos autos deste Processo Administrativo dão a notícia incontornável de que as condutas do CFM e do CREMESP resultaram na alteração do comportamento de diversos profissionais em relação ao “Cartão de Todos”, acarretando a diminuição da oferta para os consumidores deste segmento de mercado em função da concomitante elevação dos honorários praticados.
Sobre o assunto, veja-se o apanhado das manifestações das clínicas oficiadas ao longo da instrução processual, feito pela ProCADE, com grifos acrescidos:
“28. Nas respostas aos ofícios enviados pela SG às clínicas atendentes do “Cartão de Todos”, que constavam das informações trazidas pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça e que teriam sido objeto de fiscalização por parte do Cremesp, observou-se o seguinte:
a. A Life Clinic Pinheiros informou que realiza atendimento aos portadores do “Cartão de Todos” desde 15.05.2017, não tendo cessão os atendimentos apesar das sindicâncias movidas pelo Cremesp contra a clínica e contra os profissionais que atendem dentro do estabelecimento. Informou que teve que cancelar diversos atendimentos que estavam agendados com antecedência pelos pacientes da clínica, em função do desligamento de alguns médicos de seu corpo clínico por conta dos processos de sindicância abertos pelo Cremesp. A empresa defendeu as vantagens auferidas pelos médicos ao serem remunerados por meio do convênio “Cartão de Todos” (...)
b. A Pires e Pereira Odontologia informou que diversas sindicâncias e processos ético-profissionais foram instaurados pelo Cremesp sob a argumentação de infração ao art. 72 do Código de Ética Médica e à Resolução nº 1.649/02 do CFM, tendo fornecido os números de tais processos. Destacou que vários médicos (SEI 0555239) que atendiam os portadores do “Cartão de Todos” na clínica foram intimados a prestar depoimento na sede do Cremesp e deixaram de atender logo após essa convocação, causando transtornos operacionais à clínica e deixando pacientes sem atendimento;
c. A Clínica Médica e de Odontologia Sapopemba respondeu que alguns médicos deixaram de atender aos portadores do “Cartão de Todos” na clínica por medo de incorrer em infração ética (SEI 0555557);
d. A Clínica Mais Saúde listou o nome dos médicos que deixaram de atender aos portadores do “Cartão de Todos” na clínica, em função das fiscalizações, sindicâncias e ameaças sofridas pelo Cremesp (SEI 0558537); e
e. A Clínica de Saúde Araçatuba afirmou que seu diretor técnico sofreu diversas sindicâncias ‘em evidente perseguição’ promovida pelo Cremesp, tendo sido condenado na penalidade prevista na alínea “a” do art. 22 da Lei nº 3.268/57 (advertência confidencial em aviso reservado). [...] Em função das ações praticadas pelo Cremesp, muitos médicos deixaram de prestar serviços e atender pacientes nas dependências da clínica. Afirmou também que o Cremesp se recusou a renovar o registro da clínica sob a alegação de que haveria proibição à realização de atendimentos dos pacientes portadores do “Cartão de Todos” (SEI 0559603). ”
No mesmo sentido, o próprio Cremesp apontou, quando oficiado para informar se cumprira a medida preventiva que determinou a suspensão de todos processos e atuações disciplinares voltados à repressão da aceitação do “Cartão de Todos”, ter arquivado mais de 200 (duzentas) sindicâncias instauradas sobre o assunto.
Uma inferência lógica que merece ser feita a partir das diversas notícias de redução do quadro de profissionais aceitantes do “Cartão de Todos” é a de que, ao passo em que a quantidade de profissionais que oferecem desconto nos honorários diminui, aumenta, naturalmente, o preço médio de tais honorários dentro do segmento de mercado no qual atuam tais profissionais. Em termos diretos, mostra-se inarredável a realidade de que as ações dos Representados resultaram, em última análise, na afetação dos preços praticados no mercado de serviços médicos e no constrangimento do exercício do ofício pelos profissionais médicos.
Outrossim, óbvia ululante as consequências impostas aos interesses dos consumidores num cenário de redução da oferta existente. Atenha-se, por exemplo, às consultas anteriormente agendadas que tiveram de ser canceladas em virtude das ações do CREMESP e, eventualmente, canceladas definitivamente em casos de o paciente-consumidor não poder arcar com o custo dos honorários antes do abatimento do desconto oferecido pelo “Cartão de Todos”.
Acerca de tais efeitos percebidos, recorre-se a feliz trecho da Nota Técnica da SG, in verbis:
“91. O fato de ser a saúde um direito fundamental do cidadão, tal qual previsto no texto constitucional, e por isso prestado pelo Estado de maneira universal, não afasta a prestação desses serviços paralelamente pelo mercado, com regras que devem ser ditadas pelo próprio mercado, dentre as quais destacam-se a livre iniciativa e a livre formação dos preços, por meio da oferta e da demanda. A essas regras é que todo e qualquer prestador de serviço deve estar submetido, sem exceção, com liberdade de atuação dos agentes para a determinação das condições, dentre elas o preço, pelas quais os serviços serão prestados. Dito isso, é ainda mais inaceitável, pelas condições de essencialidade já arguidas, que os serviços médicos sofram qualquer óbice à livre formação dos preços. Quanto menor a elasticidade da demanda, maior a capacidade de os agentes exercerem poder de mercado; nessa linha, a criação de entraves adicionais à competição em mercados cuja demanda apresenta tal característica é ainda mais danoso. ”
Assim, para além do fato gravado no item “90” deste voto, tem-se igualmente assentado o fato de que a atuação do CREMESP, pautada nas normas editadas pelo CFM, provocaram efeitos constritivos ao funcionamento das atividades do “Cartão de Todos” no mercado.
Superados, a esta altura, os argumentos dos Representados no sentido de que suas ações, normativas e/ou fiscalizatórias, não significaram óbice ao livre exercício da atividade médica, à livre pactuação dos preços, e aos interesses dos consumidores.
II.4.d. ILEGALIDADE DAS NORMAS EDITADAS PELO CFM E DAS AÇÕES PRATICADAS PELO CREMESP.
Já consignadas as consequências percebidas no mercado por força das normas do CFM e das fiscalizações do CREMESP. Cumpre, então, analisar os argumentos levantados pelos Representados no sentido de que suas atuações não poderiam ser consideradas ilícitos concorrenciais porquanto seriam o escorreito exercício dos poderes regulatórios e fiscalizatórios que lhes foram atribuídos pela legislação constitucional e infraconstitucional. Segundo narraram, o combate aos cartões de desconto justificava-se como o enfrentamento a uma alegada “mercantilização” e desvalorização da profissão médica.
Muito há na jurisprudência do Cade sobre o tema da mercantilização. Em especial, resgata-se uma construção teórica icônica do Conselheiro Eduardo Pontual, encontrada em diversos votos seus [16], a respeito do conteúdo normativo da proibição à mercantilização da profissão médica:
“ 21. (...) Os motivos de condicionar o exercício da medicina a uma ética normalmente estão ligados à assimetria de informação na prestação do serviço e, mais modernamente, ao controle dos custos que lhe maximize o acesso. Frequentemente intervenções ou exames médicos importam em riscos para a saúde dos pacientes. Os pacientes dificilmente têm informação suficiente para escolherem sobre tais intervenções ou exames. Em nossa sociedade o médico é o profissional que, após formação rigorosa, deve estar apto para auxiliar ou realizar estas escolhas. Desta combinação de características resulta que a maximização de bem estar da sociedade depende de que o profissional escolha os procedimentos segundo o melhor interesse da saúde do paciente melhor resultado esperado e menores riscos. Qualquer conduta que se desvie desta ética poderá impor aos pacientes e à sociedade gastos desnecessários, lesões, enfermidades e até mesmo perdas de vidas humanas.
22. No atual Código Brasileiro de Ética Médica a vedação ao exercício mercantilista da atividade está previsto sinteticamente no art. 58. O detalhamento da sentença-síntese é o objeto dos artigos seguintes do diploma normativo (art. 59 a 72), como, por exemplo, ‘Art. 62. Subordinar os honorários ao resultado do tratamento ou à cura do paciente’ e ‘Art. 69. Exercer simultaneamente a Medicina e a Farmácia ou obter vantagem pelo encaminhamento de procedimentos, pela comercialização de medicamentos, órteses, próteses ou implantes de qualquer natureza, cuja compra decorra de influência direta em virtude de sua atividade profissional.’. É claro se tratar de capítulo de proibições incidentes sobre as escolhas do profissional enquanto no desempenho da atividade fim da medicina (conservar ou melhorar a saúde do paciente).
24. O exercício não mercantilista da medicina é, portanto, uma limitação que integra o conteúdo da forma socialmente aceita de prestação destes tipos de serviço. Isto não significa que não há direito ao médico de perceber remuneração pelos serviços prestados. Isto fica explícito no Código de Ética Médica na medida em que se estabelece que é direito do médico ‘estabelecer seus honorários de forma justa e digna’. ”
In casu, alinha-se ao entendimento de que a mercantilização é verificável quando o exercício da profissão é norteado não pela busca do melhor diagnóstico e tratamento para o paciente, mas sim pelo maior rendimento financeiro dos serviços.
Como se nota, o termômetro tange à busca da mitigação da assimetria de informação existente nas relações médico-paciente. Assim, quaisquer fatores capazes de agravar o abismo informacional concorrerão para a majoração do risco de direcionamento da atividade médica para o lucro, e não da saúde do paciente, i. e., para criar terreno propício à mercantilização. Tais contextos merecerão o rechaço do ordenamento.
Em paralelo a isto, reconhece-se, ainda, a necessidade de garantir ao profissional a possibilidade de estabelecer seus honorários de forma justa e digna, como preza o Código de Ética Médica. Sem prejuízo, como bem apontou o Conselheiro citado, este movimento de valorização e dignificação da atividade médica deve andar atrelado ao objetivo inafastável de maximização do acesso aos seus serviços, em vista do status de direito fundamental concedido à saúde.
Nesta esteira, conclui-se que de três maneiras mereceria guarida deste órgão a tese que o “Cartão de Todos” mercantiliza, no sentido repudiado pelo ordenamento, ou, ainda, desvaloriza, a profissão médica e, portanto, de que as atuações dos Representados não configurariam ilícito concorrencial: a um, se fosse demonstrado que o cartão orienta a atividade médica ao lucro, e não ao melhor tratamento do paciente; a dois, se fosse demonstrado que o cartão agrava o abismo informacional; e, a três, se fosse demonstrado que o cartão inviabiliza o estabelecimento de honorários dignos.
Quanto à primeira hipótese, nada do que foi trazido aos autos permite a conclusão de que os médicos e estabelecimentos de saúde que aceitam o “Cartão de Todos” pautam seus serviços sobrepondo o lucro à saúde dos pacientes. Não cabem nesta rubrica as acusações soltas feitas pelos Representados, sustentando que os cartões poriam em risco a saúde dos consumidores: desacompanhadas de qualquer prova ou indício fático, são estéreis.
Em relação ao problema informacional, percebe-se que os potenciais danos identificados no “Cartão de Todos” já foram objeto de manifestação da ANS e até mesmo de celebração de Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta entre a empresa Todos Empreendimentos Ltda e o Ministério Público Federal, no âmbito da Ação Civil Pública nº 0024240-76.2014.4.03.6100, já mencionada neste voto.
Ademais, não se deve ignorar que tal problema – precisamente, o problema informacional acerca da abrangência dos serviços ofertados pelo do cartão – não é objeto da competência regulatória e fiscalizatória dos Representados, mas sim dos órgãos responsáveis pela proteção e defesa ao consumidor. Grife-se: não se está, com isso, dizendo que os Representados não devem editar normas voltadas à promoção da devida informação dos consumidores em relação aos tratamentos e acompanhamentos médicos em si. Em verdade, este não é o conteúdo do direito à informação que tange ao caso em testilha.
Revisitando o voto do Conselheiro Eduardo Pontual, a precisão narrativa afasta os sofismas:
“Frequentemente intervenções ou exames médicos importam em riscos para a saúde dos pacientes. Os pacientes dificilmente têm informação suficiente para escolherem sobre tais intervenções ou exames. Em nossa sociedade o médico é o profissional que, após formação rigorosa, deve estar apto para auxiliar ou realizar estas escolhas. ”
A informação que deve ser tutelada pelas normativas editadas pelos Representados é, portanto, aquela voltada à garantia de que o paciente escolherá conscientemente acerca da realização ou não de determinada intervenção, exame, ou outras espécies de prestação médica.
Diferentemente, a informação que concerne ao objeto do presente Processo relaciona-se não com a escolha entre um ou outros procedimentos médicos, mas sim com a clareza de que a abrangência e sistemática dos serviços dos cartões de desconto não se assemelham aos de um plano de saúde. Não se toca no objeto da prestação médica em si, mas no objeto da contratação de um seguro ou de um serviço de agência, ambos prévios ao profissional médico.
Destarte, em vista da natureza estritamente consumerista do objeto e da competência dos órgãos Representados, entende-se que o conteúdo do dever de informação exigível da Todos Empreendimentos Ltda. difere daquele sobre o qual os Representados têm atribuições regulatórias e fiscalizatórias.
Aliás, como já consignado, as providências adotadas pela ANS, pelo MPF e pela Justiça Federal quando tiveram a oportunidade de analisar, por diferentes filtros, o funcionamento do “Cartão de Todos”, apontam todas no sentido de inexistir óbice legal, salvo quanto à informação precisa das diferenças entre cartões de desconto e planos de saúde.
Neste ínterim, as normas proibitivas editadas pelo CFM e as ações do CREMESP não se sustentam no fundamento de tutela do direito de informação, conforme descrito.
Por fim, não vieram aos autos sequer indícios dos quais se pudesse concluir que a utilização dos cartões de desconto estaria concorrendo para diminuição dos honorários recebidos pelos médicos, e, muito menos, levando estes honorários a patamares abaixo da dignidade e da justiça consagrados no Código de Ética da profissão.
Muito pelo contrário, as manifestações que trataram sobre este ponto ao longo da instrução indicaram que a os médicos vinham percebendo vantagens nos honorários recebidos por meio do “Cartão de Todos”.
Soma-se, ainda, a análise perfunctória da SG acerca das acusações de mercantilização e desvalorização do ofício médico:
“89. [...] Essa justificativa é bastante frágil e desarrazoada, uma vez que: (i) os consumidores que recorrem aos cartões de descontos são predominantemente de baixa renda, já que os cartões de desconto não garantem as coberturas básicas do atendimento à saúde, não substituindo, portanto, os planos de saúde; (ii) as clínicas oficiadas informaram que os preços pagos aos médicos pelos planos de saúde são similares aos valores pagos pelos portadores do “Cartão de Todos”. Nesse sentido, os cartões de desconto oferecem aos médicos uma alternativa à prestação de serviços para os planos de saúde, fortalecendo a profissão e não o contrário; e (iii) a aceitação dos cartões de desconto não pode ser considerada uma mercantilização da profissão, vez que se assim fosse os médicos também não poderiam ser donos de hospitais, clínicas, laboratórios e afins.
[...]
92. Na mesma linha, não há que se falar em desvalorização da profissão. Quem tem a capacidade de melhor precificar o valor dos próprios serviços é o profissional que o prestará. Em um regime de livre mercado, não há que se falar de preço mínimo ou vil, já que cada profissional, a depender da qualidade de sua formação, tempo dedicado a especializações, experiência profissional, tecnologia empregada, local de atendimento, dentre outros fatores, adequará os preços cobrados a essas características qualitativas do seu serviço. Um valor, que pode ser baixo para determinado profissional, pode ser plenamente aceitável para outro. O uso de terminologias como “desvalorização profissional”, “remuneração vil”, dentre outros comumente utilizados por entidades de defesa de categorias profissionais se prestam a dissimular intentos corporativistas para a criação e manutenção de reserva de mercado que, ao fim e ao cabo, resultam em preços mais elevados do que se verificaria em um regime de livre competição, provocando acúmulo de renda desses grupos às custas do consumidor final. ”
Não se verifica, portanto, nenhuma das três hipóteses citadas no item “104” supra, não subsistindo respaldo à ideia de que o “Cartão de Todos” implicava uma mercantilização e/ou desvalorização da profissão, como propuseram os Representados.
Não pode passar despercebida a característica inelasticidade da demanda por serviços médicos. De acordo com a observação já feita pela SG, a menor elasticidade de determinado mercado concorre para acentuação do poder detido pelos agentes nele inseridos. A latere da tendência de rigidez da demanda, tem-se a heterogeneidade dos serviços médicos, mesclando a concorrência por preço a uma concorrência por qualidade e por localização. Este aparato teórico se percebe na realidade fática quando se nota a tendência de o consumidor preferir ser atendido por um mesmo profissional ao longo de um acompanhamento ou tratamento médico, ainda que esta escolha não coincida à melhor oferta de preço existente no mercado.
O cenário desenhado torna saudável a entrada de players e soluções comerciais que estruturem uma gama larga de possibilidades de escolha do profissional médico por parte do consumidor, mormente quando o consumidor em questão tradicionalmente não tinha acesso ao mercado antes daqueles players e soluções. Resguardada a dignidade do ofício, como se vislumbra ocorrer in casu, inexiste aparato legal para fundamentar a tentativa de proibir a inovação.
Feita essa apuração pormenorizada, quando se afastam as teses de mercantilização e desvalorização, cai por terra a alegação de que as normas editadas pelo CFM e as fiscalizações instauradas pelo CREMESP não poderiam ser punidas por se tratarem de normal exercício dos poderes a eles conferidos pela Carta Magna.
A extrapolação dos limites de atuação dos Representados foi satisfatoriamente debulhada na Nota Técnica da SG, no trecho abaixo transcrito ipse litteris:
“76. A atuação das entidades representativas de profissionais deve adstringir-se aos pilares constitucionais, dentre os quais se insere a livre concorrência e a livre iniciativa. Suas atividades, nesse passo, não podem acarretar limitação à liberdade de contratar e tampouco promoverem medidas que prejudiquem competidores e consumidores das benesses de um mercado regido pela livre concorrência.
77. Assim, embora a criação das entidades representativas da classe médica esteja salvaguardada por dispositivos constitucionais e legais, suas atividades não podem afastar-se dos princípios que regem a ordem econômica. É por esta razão que o art. 31 da Lei nº 12.529/11 não cria qualquer exceção quanto à aplicabilidade do referido diploma legal.
78. Nesse sentido, a jurisprudência do Cade registra vários casos de condenação de entidades representativas da classe médica por infração à ordem econômica, notadamente por condutas ligadas à fixação dos preços dos serviços médicos por meio de tabelas.
79. A medicina é uma profissão regulada, na medida em que envolve a prestação de serviço para prover um direito fundamental assegurado constitucionalmente. Desse modo, o art. 196 da Constituição Federal dispõe que: “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle”. É nesse contexto que a Lei nº 3.268/1957, em seu art. 2º, dispõe que:
‘Art. 2º - O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar, por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente’.
80. Não obstante não restar dúvida sobre o papel de supervisor e disciplinador dos Representados, é preciso examinar os limites dessa competência à luz dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência.
81. Nesse sentido, registra-se decisão[10] do Superior Tribunal de Justiça que tratou de atos normativos que extrapolam os limites traçados pela Lei nº 3.268/57, notadamente a elaboração de tabelas de honorários médicos. Reproduz-se abaixo trecho da ementa da decisão proferida por unanimidade em 18.02.2014:
‘O art. 22, XVI, da Constituição Federal é claro ao dispor que “compete privativamente à União legislar sobre a organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício das profissões”. Nesse sentido, a Lei nº 3.268/57 outorgou ao Conselho Federal de Medicina (CFM) competência administrativa para regular os Conselhos Regionais de Medicina. Mas essa competência não abrange a organização quanto ao exercício da medicina em si, justamente em razão do dispositivo constitucional em testilha. Logo, a Resolução CFM nº 1.673/03 e a Resolução CRM/ES nº 154/2004, que fixam valores mínimos para remuneração dos procedimentos médicos violam o princípio da reserva legal, já que essa regulação não foi instituída por meio de lei em sentido formal’ (g.n.) ”.
Inexiste, portanto, razão para crer que as condutas dos Representados, apesar de terem interferido negativamente na atividade do “Cartão de Todos” e, por conseguinte, no normal funcionamento do mercado, não configurariam ilícito concorrencial por se tratarem de normal exercício dos poderes regulatórios e fiscalizatórios a eles outorgados.
II.4.e. NÃO CONFIGURAÇÃO DE EXERCÍCIO DE PODER COMPENSÁTORIO.
Resta, enfim, a análise da tese subsidiária de exercício de poder compensatório, ventilada pelo CFM.
Neste tocante, acolhem-se os fundamentos trazidos pela ProCADE, notadamente nos pontos 51, 52 e 53 de seu parecer. Por não haver ressalva, vide, na íntegra, inclusive quanto aos grifos:
“51. Necessário aqui fazer uma distinção do presente caso sob análise da conduta de implementação de tabelas de preços relativas a honorários médicos, sobretudo porque o CFM alegou em sua defesa o exercício do poder compensatório. De modo geral, o CADE tem condenado entidades representativas da categoria que adotam tabelas de honorários, porquanto influencia a adoção de conduta uniforme no mercado, resultando na elevação dos honorários recebidos pelos médicos, por clínicas e por hospitais.
52. Entretanto, a tese do poder compensatório às negociações coletivas entre médicos e operadores de plano de saúde tem sido admitida pela jurisprudência da autoridade antitruste para afastar a reprovabilidade da conduta ou para atenuar a culpabilidade. A referida tese permite o entendimento de que a união de agentes econômicos, para compensar eventual assimetria de poder, pode ser considerada lícita. O Tribunal Administrativo de Defesa Econômica tem observado o contexto em que a conduta é praticada a fim de apurar se o poder compensatório tem sido utilizado com outro propósito que não o de assegurar aos prestadores de serviços médicos maior poder de barganha.
53. O que se pode verificar, portanto, é que a conduta sob investigação compreende prática totalmente diversa da adoção de tabelas de honorários médicos a ensejar a incidência do poder compensatório, sobretudo porque no presente caso não se nota qualquer fator de desigualdade. Ademais, não se permite observar que os atos normativos editados e os procedimentos instaurados em face de médicos que aceitaram “Cartão de Todos” possam se revestir de alguma eficiência econômica a não justificar a repressão legal. ”
Pela exata dicção do posicionamento da ProCADE, rechaça-se que tenha havido regular exercício de poder compensatório a afastar a punibilidade da conduta dos Representados.
II.4.f. CONCLUSÃO.
Conclui-se que a vedação prevista no art. 72 do Código de Ética Médica, bem como as normas dos artigos 1º, 2º e 3º da Resolução CFM nº 1.649/2002, e do art. 4º da Resolução CFM nº 2.170/2017, todas editadas pelo CFM, não tinham amparo legal e causaram prejuízo à livre iniciativa, à livre concorrência e ao interesse do consumidor no âmbito do mercado de serviços médicos, na medida em que constrangeram injustificadamente a utilização do “Cartão de Todos”.
De outro lado, conclui-se que as ações fiscalizatórias e punitivas na seara ético-disciplinar, emplacadas pelo CREMESP a fim de coibir a utilização do “Cartão de Todos” no mercado de serviços médicos do Estado de São Paulo, independentemente de contarem com suposto respaldo regulatório das normativas do CFM, violaram os dispositivos contidos em Lei Federal, qual seja, a Lei nº 12.529/2011, como também na própria Constituição Federal.
Assim, condena-se ambos os Representados por infração à ordem econômica sob a capitulação: art. 36, inciso I e IV, da Lei nº 12.529/2011.
II.5. DOSIMETRIA DA MULTA.
De acordo com a Lei nº 12.592/2011, em seu art. 45, são os critérios a serem ponderados para o cálculo da pena consequente da condenação por infração à ordem econômica:
Gravidade da infração;
Boa-fé do infrator;
A vantagem auferida ou pretendida pelo infrator;
A consumação ou não da infração;
O grau de lesão ou perigo de lesão à livre-concorrência, à economia nacional, aos consumidores ou a terceiros;
Os efeitos econômicos negativos produzidos no mercado;
A situação econômica do infrator;
A reincidência;
A gravidade da infração é constatada pelos efeitos nocivos causados aos consumidores e à concorrência, conforme exposto acima. Um grande número de médicos deixou de atender os portadores dos cartões de descontos em função da conduta dos Representados, causando prejuízos aos consumidores – principalmente os de baixa renda, principal público deste nicho de cartões de desconto – em um setor tão sensível quanto o de prestação de serviços de relacionados à saúde.
Quanto à boa-fé do infrator, esta atua como atenuante uma vez que se verifica que as resoluções editadas pelo CFM que proibiam a aceitação dos cartões de descontos pelos médicos foram revogadas ou alteradas em curto período de tempo após a manifestação da SG pela presença de fortes indícios de infração à ordem econômica na conduta dos Representados. A Resolução CFM nº 2.226/2018, que efetuou as alterações, foi publicada no DOU em 05.04.2019, menos de dois meses após a instauração do presente processo administrativo.
Verifica-se a consumação da infração, com um prazo de duração bastante extenso. A primeira resolução que considerou antiética a participação de médicos como proprietários, sócios, dirigentes ou consultores dos cartões de descontos foi a Resolução nº 1649/2002, editada em 22.12.2002 [12]. Assim, há pelo menos 07 (sete) anos, os consumidores de mais baixa renda sofrem os efeitos da prática investigada, na forma de adiamento de consultas, no maior tempo de espera para conseguir um atendimento, ou até mesmo terem que procurar um atendimento sem descontos apesar de possuir o cartão.
Não há reincidência da prática seja pelo CFM seja pelo Cremesp.
Considerando que a jurisprudência do CADE sobre condutas imputadas aos Conselhos e Associações relacionadas à Medicina impõe multas de 50.000 UFIR a 400.000 UFIR [18], pode-se iniciar estabelecendo uma pena base de 200.000 reais ao CFM e de 100.000 reais ao Cremesp. A diferença na pena base inicial entre os Representados, ainda que a conduta imputada seja a mesma, se dá pela abrangência nacional do CFM (contraposta à atuação estadual do Cremesp) e pelo fato de que o CFM que editou as normas que ensejaram tais infrações, enquanto o Cremesp foi o instrumento de aplicação de tais normas.
A partir a incidência dos agravantes e do único atenuante descritos no art. 45 da Lei nº 12.529/2011, a pena deveria ser majorada em 50% para cada um dos Representados.
Por fim, temos que levar em conta a longa duração da conduta (pelo menos 7 anos) e que o CFM já foi condenado anteriormente diversas vezes pelo CADE por impor condutas anticompetitivas aos médicos. Ainda que grande parte destas condenações sejam decorrentes de imposição de tabelas de honorários, ou seja, conduta diversa daquela discutida neste Processo Administrativo, temos em mente que o modus operandi para coerção dos médicos a estas infrações antitruste é semelhante (ameaças de sanções administrativas, ameaças de descredenciamento, boicotes, entre outras).
Resultante disso, voto por dobrar a pena construída até então, resultando em uma multa de 600.000 reais ao CFM e de 300.000 reais ao Cremesp. Tais sanções estão dentro dos limites estabelecidos pelo inciso II do art. 37 da Lei nº 12.529/2011.
Dispositivo
Com base em todo o exposto, conclui-se pela ocorrência de infração à ordem econômica por parte do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), de forma que voto pela condenação destes Representados nos termos do art. 36, incisos I e IV da Lei nº 12.529/2011.
Considerando os critérios expostos na dosimetria, e a jurisprudência deste Conselho, fixo a multa no valor equivalente a R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais) ao Conselho Federal de Medicina e de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, vez que tais montantes estão adequados aos parâmetros estabelecidos no inciso II do art. 37 da Lei nº 12.529/2011.
Adicionalmente, voto pelo acolhimento da sugestão do MPF junto ao CADE de expedição de Ofício com cópia da decisão deste Processo Administrativo ao Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei n.º 12.529/2011, para ciência e eventuais providências julgadas cabíveis (inclusive em sede de tutela coletiva).
Por último, voto pelas seguintes penas não pecuniárias aos Representados CFM e Cresmesp:
Abstenção de instaurar regulamentos, sindicâncias e processos administrativos disciplinares, boicotes ou utilizar qualquer outro expediente para punir, ameaçar, coagir ou retaliar os médicos que aceitarem atendimentos através de cartões de descontos (confirmação da medida preventiva);
Disponibilização de síntese desta decisão em seu sítio eletrônico;
Divulgação aos médicos credenciados o teor desta decisão, por qualquer meio a sua escolha, comprovando seu cumprimento perante o CADE, no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação da decisão.
É o voto [19].
(assinado eletronicamente)
LENISA RODRIGUES PRADO
Conselheira-Relatora
Código de Ética médica: "Art. 72. É vedado ao médico estabelecer vínculo de qualquer natureza com empresas que anunciam ou comercializam planos de financiamento, cartões de descontos ou consórcios para procedimentos médicos".
Resolução CFM nº 1.974/11, art. 3º, alínea “i”: “É vedado ao médico oferecer seus serviços por meio de consórcios ou similares”.
Resolução CFM nº 1.649/02, art. 1º: “Considerar antiética a participação de médicos como proprietários, sócios, dirigentes ou consultores dos chamados cartões de desconto”.
Lei nº 3.268/57: “Art. 22. As penas disciplinares aplicáveis pelos Conselhos Regionais aos seus membros são as seguintes: a) advertência confidencial em aviso reservado; b) censura confidencial em aviso reservado; c) censura pública em publicação oficial; d) suspensão do exercício profissional até 30 (trinta) dias; e) cassação do exercício profissional, ad referendum do Conselho Federal.”
Resolução CFM nº 2.170/2017: “Art. 4º A clínica médica de atendimento ambulatorial, a exemplo das empresas médicas em geral, está impedida de oferecer qualquer promoção relacionada ao fornecimento de cartões de descontos ou similares”.
Resolução CFM nº 2.170/2017: “Art. 5º É permitida, nos termos da lei, a divulgação, de forma interna, dos valores de consultas, exames e procedimentos realizados. Parágrafo único. Fica vedado praticar anúncios publicitários de qualquer natureza com indicação de preços de consultas, formas de pagamentos que caracterizem a prática da concorrência desleal, comércio e captação de clientela”.
Constituição Federal: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
A Clínica de Saúde Araçatuba reportou ter sido alvo de sindicâncias realizadas em 2010, 2012, 2013, 2015 e 2018.
Lei nº 12.529/2011: “Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; [...] IV - exercer de forma abusiva posição dominante [...] § 3º As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: [...] VIII - regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição;”.
Lei nº 12.529/2011: “Art. 46. Prescrevem em 5 (cinco) anos as ações punitivas da administração pública federal, direta e indireta, objetivando apurar infrações da ordem econômica, contados da data da prática do ilícito ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessada a prática do ilícito”.
Lei nº 12.529/2011: “Art. 31. Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal”.
Lei nº 12.529/2011: “Art. 36. [...] I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; § 3º As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: [...] III - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado; [...] VIII - regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição”.
Processos Administrativos nº 08012.004276.2004-71 e 08012.002866.2011-99, p. ex. Vide, ainda, os Processos Administrativos nº 08012.006552/2005-17 e 08012.003048/2003-01, citados na Nota Técnica da SG.
BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Cadernos do Cade – Mercado de Saúde Suplementar: Condutas - 2015. Brasília, 2015, p. 9.
BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Glossário temático: saúde suplementar. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2009. 84 p.
Vide, p. ex., os Processos Administrativos nº 08012.005135/2005-57 e 08012.003048/2003-01.
Conforme destaca a SG “Cabe ressaltar que as efetivas ações contra os médicos que aceitavam os cartões de descontos datam do início de 2012, conforme apontam os documentos acostados aos autos sobre as sindicâncias realizadas (SEI nº 0536369)”.
Ver Processo Administrativo nº 08012.002866/2011-99, Representados: Conselho Federal de Medicina – CFM, Federação Nacional dos Médicos – FENAM e Associação Médica Brasileira – AMB (r. Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior); Processo Administrativo nº 08012.006552/2005-17, Representado: Conselho Regional de Medicina do Estado de Mato Grosso – CRM/MT (r. Conselheiro Eduardo Pontual); Processo Administrativo nº 08012.003048/2003-01, Representados: Sindicato dos Médicos do Estado do Ceará; Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará – CREMEC e Associação Médica Cearense – AMC (r. Conselheiro Gilvandro Vasconcelos Araujo); e Processo Administrativo nº 08012.004276/2004-71, Representados: Conselho Federal de Medicina – CFM, Associação Médica Brasileira – AMB, Confederação Médica Brasileira – CMB e Federação Nacional dos Médico – FENAM (r. Conselheira Ana Frazão). Estes processos foram instaurados sob a égide da Lei 8.884/1994.
Este voto foi elaborado com participação brilhante do Pincadista que integrou o Gabinete 1 em 2020: Rafael Felipe Silva Machado, da UFPE.
Documento assinado eletronicamente por Lenisa Rodrigues Prado, Conselheira, em 05/06/2020, às 13:14, conforme horário oficial de Brasília e Resolução Cade nº 11, de 02 de dezembro de 2014. |
A autenticidade deste documento pode ser conferida no site sei.cade.gov.br/autentica, informando o código verificador 0763115 e o código CRC 91F6DCA2. |
Referência: Processo nº 08700.005969/2018-29 | SEI nº 0763115 |