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NOTA TÉCNICA Nº 24/2016/CHEFIA GAB-SG/SG/CADE
Processo nº 08700.007888/2016-00
ARTICULAÇÃO ENTRE AS PERSECUÇÕES PÚBLICA E PRIVADA A CONDUTAS ANTICOMPETITIVAS:
ESTUDO DA EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL E BRASILEIRA E PROPOSTAS REGULAMENTARES, LEGISLATIVAS E DE ADVOCACY A RESPEITO DAS AÇÕES DE REPARAÇÃO POR DANOS CONCORRENCIAIS (ARDC) E DO ACESSO A DOCUMENTOS DE ACORDOS DE LENIÊNCIA E DE TERMOS DE COMPROMISSO DE CESSAÇÃO (TCC) NO BRASIL
INTRODUÇÃO
DA EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL NA ARTICULAÇÃO ENTRE AS PERSECUÇÕES PÚBLICA E PRIVADA A CONDUTAS ANTICOMPETITIVAS ESTADOS UNIDOS UNIÃO EUROPEIA REINO UNIDO ALEMANHA HOLANDA AUSTRÁLIA CANADÁ
DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA NA ARTICULAÇÃO ENTRE AS PERSECUÇÕES PÚBLICA E PRIVADA A CONDUTAS ANTICOMPETITIVAS ACESSO A DOCUMENTOS E INFORMAÇÕES ORIUNDOS DE ACORDOS DE LENIÊNCIA E TCC NO BRASIL A experiência administrativa do Tribunal do Cade em relação ao acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência e TCC A experiência do judiciário em relação ao acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência e TCC EXTENSÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NAS ARDC NO BRASIL PRESCRIÇÃO DAS ARDC NO BRASIL
PROPOSTAS REGULAMENTARES, LEGISLATIVAS E DE ADVOCACY NA ARTICULAÇÃO ENTRE AS PERSECUÇÕES PÚBLICA E PRIVADA A CONDUTAS ANTICOMPETITIVAS NO BRASIL PROPOSTAS REGULAMENTARES: ACESSO A DOCUMENTOS E INFORMAÇÕES ORIUNDOS DE ACORDOS DE LENIÊNCIA E TCC Fase de negociação e celebração dos acordos com a SG/Cade Fase de instrução Pela Superintendência-Geral do Cade Pelo Tribunal do Cade Decisão final pelo Plenário do Tribunal do Cade Outras propostas regulamentares PROPOSTAS LEGISLATIVAS: ASPECTOS CÍVEIS DAS ARDC Sobre a extensão da responsabilidade do signatário do Acordo de Leniência nas ARDC Sobre a prescrição das ARDC
CONCLUSÃO |
Algumas jurisdições estrangeiras possuem ampla experiência na seara das ações de reparação por danos concorrenciais (ARDC). Esse é o caso, por exemplo, dos Estados Unidos. Por sua vez, em países onde o combate a cartéis ocorria tradicionalmente por meio da persecução pública (“public enforcement”[1]), tem-se verificado a crescente utilização da persecução privada (“private enforcement”[2]). Observa-se que o tema tem sido objeto de recentes discussões em fóruns internacionais[3], e verifica-se também uma tendência recente de alterações legislativas sobre o tema com vistas a fomentar as ARDC, como ocorrido na União Europeia (2015[4])[5], no Reino Unido (2015)[6], na Alemanha (2012)[7] e na Austrália (2014)[8], dentre outros.
Embora o private enforcement possa auxiliar na promoção da política de defesa da concorrência[9], reconhece-se que a tendência crescente de ajuizamento de ARDC traz desafios aos programas de colaboração das autoridades antitruste no mundo e no Brasil, em especial aos Programas de Leniência. Por um lado, regras que favoreçam excessivamente o private enforcement podem prejudicar o public enforcement. Por outro, regras que sejam excessivamente restritivas às ARDC podem inviabilizar o ressarcimento da parte lesada pela infração à ordem econômica e inviabilizar parte significativa da função dissuasória do enforcement antitruste[10]. Assim, busca-se avaliar em que medida os incentivos para que um participante de um cartel coopere no âmbito de um Acordo de Leniência podem ser reduzidos se tal cooperação o expor excessivamente ao impacto financeiro das ARDC[11].
A presente NOTA TÉCNICA Nº 24/2016/CHEFIA GAB-SG/SG/CADE é resultado de amplo estudo da experiência internacional e nacional a respeito do tema[12]. O objetivo é compatibilizar os Programas de Leniência e os Termos de Compromisso de Cessação (“TCC”) do Cade com a crescente tendência de ajuizamento das ARDC. Ao final, almeja-se alterar a legislação brasileira (normas legais e infralegais) para que se defina o posicionamento institucional do Cade de forma clara e transparente, e para que eventuais divergências judiciais sejam minimizadas. Assim, entende-se que será possível fomentar as ARDC e proteger a eficácia dos Programas de Leniência e de TCC do Cade, conferindo maior segurança jurídica aos administrados, e, ao mesmo tempo, harmonizando as regras das persecuções pública e privada no Brasil.
Para tanto, essa NOTA TÉCNICA Nº 24/2016/CHEFIA GAB-SG/SG/CADE está organizada em quatro partes. O Capítulo 2 mapeia a experiência internacional em relação à articulação entre persecução pública e privada a condutas anticompetitivas, enquanto o Capítulo 3 trata da experiência brasileira nesse mesmo tema. No Capítulo 4 serão apresentadas propostas regulamentares, legislativas e de advocacy sobre a articulação entre as persecuções pública e privada a condutas anticompetitivas no Brasil e, por fim, o Capítulo 5 enunciará conclusões.
A análise da experiência internacional a respeito da articulação entre persecução pública e privada a condutas anticompetitivas e dos seus respectivos regramentos legais e/ou infra-legais permitirá compreender os principais pontos já enfrentados e superados nestas jurisdições, bem como os principais desafios remanescentes. A análise comparativa concentrar-se-á em países com experiência consolidada e/ou aqueles que têm se posicionado de forma inovadora sobre o tema.
Para tanto, serão apresentadas brevemente as experiências dos Estados Unidos (2.1.), da União Europeia (2.2.), do Reino Unido (2.3.), da Alemanha (2.4.), da Holanda (2.5.), da Austrália (2.6.) e do Canadá (2.7.). Por uma restrição em termos de escopo, não se esmiuçará a experiência de outros países. Reconhece-se, porém, alternativas interessantes como as adotadas recentemente pela Áustria[13], Hungria[14], Japão[15] e Suécia[16], dentre outros.
A análise da experiência internacional busca endereçar três pontos principais. Primeiro, a legislação e os precedentes sobre as regras de acesso a documentos e informações de Acordo de Leniência e TCC. Segundo, os aspectos relacionados à extensão da responsabilidade do signatário do Acordo de Leniência. E terceiro, os aspectos relacionados à prescrição para o ajuizamento das ARDC. A intenção é que esse mapeamento da experiência internacional possa auxiliar na definição dos próximos passos a serem adotados no Brasil, sempre adstritos à realidade brasileira e à legislação nacional.
2.1 ESTADOS UNIDOS
Nos Estados Unidos, diferentemente de qualquer outra jurisdição, as ARDC representam cerca de 90% do enforcement antitruste no país[17]. A importância desse private enforcement é tamanha que, uma vez assinado o Acordo de Leniência com a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça (“DOJ”)[18]-[19]-[20] no âmbito do “Corporate Leniency Policy”[21] ou do “Individual Leniency Policy”[22], o beneficiário deve se comprometer a restituir, a qualquer pessoa ou empresa, os danos que tenha causado em decorrência do cartel reportado. Trata-se, então, de uma condição para a celebração do Acordo de Leniência com o DOJ[23], que implica a limitação da responsabilidade do beneficiário da leniência no âmbito cível. No caso dos “plea agreements”[24]-[25], não há tal obrigação de ressarcimento[26], mas tampouco há limitações à responsabilidade civil.
A doutrina destaca que, nos Estados Unidos, toda condenação de cartel imposta pelos tribunais[27] é seguida por uma ARDC bem-sucedida que resulta no ressarcimento aos prejudicados. Metade das ARDC, porém, são ajuizadas independentemente da condenação criminal.[28]
São apontadas três razões para o difundido uso das ARDC nos Estados Unidos: (a) as regras de amplo discovery[29], ou seja, as regras amplas e favoráveis de acesso a documentos e informações para embasar a pretensão indenizatória e a estimativa de danos dos consumidores lesados; (b) a limitação da responsabilidade dos beneficiários de Acordos de Leniência que cooperam em sede das ARDC, por meio do não ressarcimento triplicado por danos concorrenciais (“treble damages”) e pela não responsabilidade solidária com os autores da conduta anticompetitiva; e (c) a existência de prazos prescricionais favoráveis aos autores das ARDC. Aprofundar-se-á sobre essas três razões a seguir.
Em relação às regras de amplo discovery (a), destaca-se a singularidade das regras norte-americanas, as quais preveem o ônus da prova invertido nas ARDC, diferentemente do que geralmente ocorre em jurisdições de civil law, nas quais o autor da ação deve arcar com o ônus da prova para embasar seu pedido. Em virtude dessa regra, tanto o beneficiário do Acordo de Leniência quanto qualquer coautor da conduta anticompetitiva, enquanto réus na ARDC, têm o dever legal de disponibilizar documentos e informações relevantes para embasar a pretensão indenizatória dos consumidores lesados, se assim solicitado pelo tribunal. Logo, a questão que se coloca nos Estados Unidos é menos sobre se as partes ou terceiros interessados terão acesso aos materiais de Acordos de Leniência e plea agreements, mas a quem e quando esse acesso será concedido[30].
Embora inexista dispositivo na legislação norte-americana regulando especificamente a confidencialidade de documentos e informações fornecidos pelas partes colaboradoras no âmbito dos Acordos de Leniência e plea agreements celebrados com o DOJ, três diplomas legais são geralmente aplicáveis nesses casos: (a.1.) Lei de Livre Acesso à Informação (“Freedom of Information Act” – FOIA[31]); (a.2.) Regras Federais do Processo Criminal (“Federal Rules of Criminal Procedure” – FRCrP[32]); e (a.3.) Regras Federais do Processo Civil (“Federal Rules of Civil Procedure” – FRCP[33]). Os diplomas relatados abaixo preveem, ao menos, três exceções à regra geral de amplo acesso a documentos e informações: o sigilo investigativo, o sigilo do informante e a informação privilegiada, tal como se passa a detalhar.
Nos termos da (a.1.) Lei de Livre Acesso à Informação (“Freedom of Information Act” – FOIA), o indivíduo tem o direito de acesso aos arquivos de agências federais, exceto se tais arquivos têm sua confidencialidade protegida pela própria FOIA[34]. Pelo menos duas hipóteses são excepcionadas, de modo a restringir o acesso à informação: a investigação criminal em curso (sigilo investigativo) e a identidade do informante (sigilo do informante), quando a divulgação de tais informações puder interferir na condução do processo investigativo[35].
Aplicando-se a FOIA no escopo de eventuais ARDC, o DOJ pode se opor à apresentação de documentos e informações de Acordo de Leniência e plea agreements se houver uma investigação criminal em curso, fundamentando seu pedido nos sigilos investigativo e do informante. Para tanto, o DOJ comumente se vale do recurso processual conhecido como “discovery stay”[36]. Trata-se de pedido civil de suspensão do processo civil até que se conclua os procedimentos investigativos, tais como as colheitas de depoimentos e provas[37]. Com o stay, portanto, permite-se a priorização da persecução pública da conduta anticompetitiva pelo DOJ. Esse instrumento foi utilizado em diversas investigações de cartéis internacionais conduzidas nos Estados Unidos, como por exemplo nos casos de DRAM[38], LCD[39] e CRT/CPT[40], em que o DOJ logrou suspender o processo de ressarcimento civil por seis meses ou mais, tendo a suspensão se estendido por anos em alguns casos[41].
Os tribunais norte-americanos tendem a decidir favoravelmente ao DOJ diante de um pedido de discovery stay[42], pois se trata de uma restrição temporal quanto ao momento em que o autor terá acesso às informações e documentos apresentados no âmbito do Acordo de Leniência e de plea agreements. Novamente, não se questiona se as partes ou terceiros interessados terão acesso aos materiais de Acordos de Leniência e plea agreements, mas quando esse acesso será concedido[43]. Tanto é assim que, ao término das investigações, a regra é que será concedido amplo acesso a todos os documentos escritos que foram fornecidos pelos colaboradores ao DOJ[44].
Por sua vez, nos termos das (a.2.) Regras Federais do Processo Criminal (“Federal Rules of Criminal Procedure” – FRCrP), há hipóteses de obrigatoriedade de disponibilização, pelo DOJ, de informações e documentos aos acusados pela prática de cartel (notadamente nos artigos 6, 16 e 26.2 do FRCrP). Trata-se de regra de acesso a documentos e informações voltada a quem, e não a quando, o acesso será concedido. E isso porque, no processo criminal, é o réu da ação penal que terá acesso aos documentos e informações, e não, via de regra, uma parte potencialmente lesada pelo cartel.
Segundo o FRCrP, existe uma fase investigativa preliminar no processo criminal denominada “grand jury”[45], que impõe ao DOJ uma estrita obrigação de confidencialidade (artigo 6(e)(2) do FRCrP[46]). Trata-se de fase inicial do processo em que um grupo de cidadãos norte-americanos decidirá se há evidências mínimas para se prosseguir com uma denúncia criminal. Se o grand jury não vislumbrar evidências mínimas de formação de cartel, o DOJ decide se prossegue ou não com o caso. Na hipótese do não prosseguimento, todas as informações e documentos, bem como as testemunhas ouvidas e quaisquer outras informações disponibilizadas no âmbito do grand jury serão abarcadas pela confidencialidade. É em virtude dessa possibilidade de não prosseguimento do processo criminal que se assegura a observância da estrita confidencialidade durante essa fase investigativa. Se, porém, o grand jury entender que há elementos probatórios suficientes (“probable cause”[47]) para pedir a condenação dos indivíduos coautores do cartel no processo criminal (“bring criminal charges”[48]/“indictment”[49]), o DOJ tem o dever legal de conferir aos réus acesso a uma ampla série de documentos e informações, inclusive aqueles produzidos no âmbito do Acordo de Leniência e dos plea agreements (art. 16 e 26.2 do FRCrP).
Esse acesso no processo criminal é definido em quatro categorias de discovery, em favor do réu, que devem ser observadas pelo DOJ.[50] A primeira, prevista no artigo 16 do FRCrP, diz respeito a informações e documentos sobre o réu.[51] O DOJ, obrigatoriamente, deve conceder ao réu acesso a documentos como, por exemplo, registros e dados sobre si; documentos, depoimentos e declarações feitos pelo réu, oralmente ou por escrito, em posse do acusador; e documentos e objetos que serão apresentados ao júri pelo acusador ou que tenham pertencido ao réu. A segunda categoria de discovery prevista pela FRCrP diz respeito a informações e documentos de defesa (“exculpatory information”, conhecida como “Brady evidence”).[52] Cabe ao DOJ, obrigatoriamente, enquanto acusador, disponibilizar ao réu qualquer prova em sua posse que seja a ele favorável ou contrária à pretensão acusatória. A terceira categoria diz respeito a informações e documentos sobre possível contestação de testemunha (“impeachment information”, oriunda do caso “Giglio v. United States”).[53] O DOJ deve então conceder acesso ao réu a qualquer informação que possa embasar eventual contestação de testemunha de acusação, inclusive apontando a identidade do signatário do Acordo de Leniência (ainda que ele não venha a ser testemunha no processo). Por fim, a quarta categoria de discovery abarca outras informações e documentos (FRCrP 26.2, oriunda do caso “Jencks v. United States”).[54] Essa categoria diz respeito a qualquer declaração que esteja na posse do acusador e que tenha sido feita pelas testemunhas ou potenciais testemunhas de acusação que tenham relação com a matéria objeto do julgamento (por exemplo, Affidavits[55], memorandos de entrevistas do FBI e relatórios de entrevistas do DOJ, gravações etc.). Não há obrigação de discovery, porém, no que diz respeito a relatórios, memorandos ou outros documentos governamentais internos relativos à investigação e elaborados por um advogado do governo, ou ainda no que tange a declarações sobre testemunhas prospectivas (FRCrP 16.2).
O detalhamento dessas quatro categorias do FRCrP evidencia que o DOJ, no processo criminal, possui obrigação legal de conferir acesso a uma ampla gama de documentos e informações aos réus acusados da conduta anticompetitiva. Os réus, porém, devem utilizar os documentos e informações a que tiveram acesso estritamente para fins da própria defesa, e não podem divulgá-los a terceiros. Em caso de descumprimento dessa obrigação, as partes no processo podem solicitar ao juízo criminal uma “protective order”[56], com o objetivo de garantir que esses documentos sejam utilizados apenas para os estritos fins do processo criminal. Essa obrigação também se aplica a terceiros que eventualmente venham a ter deferido o acesso a documentos e informações de Acordos de Leniência e plea agreements por juiz cível, no bojo de uma ARDC. Nesse cenário, aquele que teve acesso também não pode disponibilizar os materiais a terceiros, tais como, por exemplo, outros consumidores prejudicados.
Assim, durante o curso do processo investigativo criminal tende-se em favor da proteção da confidencialidade dos materiais de Acordo de Leniência e plea agreements, exceto em caso de o próprio beneficiário abrir mão de tal sigilo ou se assim for requisitado pelo Judiciário[57]. Quando o processo criminal chega a júri, porém, as sessões de julgamento e as decisões são, em regra, públicas, de modo que as partes potencialmente lesadas pela conduta anticompetitiva podem ter acesso a grande parte dos documentos e informações dos Acordos de Leniência e dos plea agreements, em especial após a publicação de eventual sentença penal condenatória do indivíduo coautor do cartel. Esclarece-se, contudo, que cerca de 90% dos casos de investigações criminais de cartel realizadas pelo DOJ não chegam a julgamento[58], pois são objeto de acordo entre o investigado e aquele Departamento, de modo que a divulgação pública de documentos e informações da leniência no âmbito do processo criminal, apesar de possível, é pouco provável na experiência norte-americana. O acesso ao material referente à investigação de cartel e Acordos de Leniência, portanto, apesar de ser teoricamente amplo, é restrito às partes autorizadas pelo juiz no âmbito da ação em que foi concedido o acesso.
Finalmente, nos termos das (a.3.) Regras Federais do Processo Civil (“Federal Rules of Civil Procedure” – FRCP), aplica-se também a regra geral de amplo discovery. O artigo 26(b)(1) do FRCP dispõe que as partes podem obter acesso em relação a qualquer assunto[59], desde que não privilegiado (“non privileged”) e desde que seja relevante para a reivindicação ou o direito de defesa da parte. Em geral, considera-se “privileged” informações referentes a determinadas comunicações entre cliente e advogado, bem como documentos de trabalho elaborados pelos advogados do próprio DOJ e pelos advogados dos proponentes do Acordo de Leniência ou plea agreement.
Nos Estados Unidos, quando há uma ARDC em que a parte autora demanda a apresentação de documentos produzidos no âmbito de Acordos de Leniência e/ou plea agreements firmados em outras jurisdições, os tribunais norte-americanos buscam ponderar o dever de proteção da confidencialidade com as amplas garantias de discovery do processo norte-americano. A jurisprudência recente vem favorecendo o sigilo investigativo de outras jurisdições[60]-[61], embora existam precedentes que favoreçam o direito de acesso[62]. Ilustrativamente, cita-se o caso Air Cargo (2011)[63], no qual o juiz norte-americano Viktor Pohorelsky, baseado no princípio da cortesia internacional (“comity”[64]), recusou-se a ordenar a divulgação dos documentos de leniência que constavam do processo investigativo da Comissão Europeia. Segundo a decisão, a divulgação de documentos considerados estritamente confidenciais para a lei europeia, no âmbito de um processo judicial norte-americano, prejudicaria os interesses soberanos e a política pública da União Europeia, ameaçando a capacidade da Comissão Europeia na detecção e punição de cartéis[65]. Por sua vez, quando o DOJ é demandado por juízes cíveis de outros países no bojo de ARDC, a posição é no sentido de não disponibilizar informações e documentos derivados de Acordos de Leniência[66] e plea agreements, exceto mediante waiver.
Diante das amplas regras de acesso a documentos e informações de Acordos de Leniência e plea agreements, que acabam por favorecer o private enforcement nos Estados Unidos, a legislação norte-americana teve que buscar mecanismos para gerar harmonia desse com a manutenção do public enforcement a condutas anticompetitivas. Para tanto, foram definidas (b) limitações da responsabilidade dos beneficiários do Acordo de Leniência que cooperam em sede das ARDC, que tradicionalmente sujeitar-se-iam à regra de ressarcimento por danos triplicados (“treble damages”) e à responsabilidade solidária.
A lei norte-americana de Aprimoramento e Reforma das Sanções Penais Antitruste (“Antitrust Criminal Penalty Enhancement and Reform Act – ACPERA”) foi alterada, em 2004, para que o beneficiário do Acordo de Leniência não arque com danos triplicados (“de-trebling”), e não responda solidariamente pelos danos causados pelo cartel, desde que coopere de forma satisfatória com os autores da ARDC no âmbito cível.[67] Entendeu-se que como o signatário do Acordo de Leniência é quem colabora com as investigações e quem viabiliza o início de uma investigação de cartel pelo DOJ, este não deve ficar em posição de desvantagem em comparação aos demais coautores do cartel corréus na ARDC, sob pena de colocar em risco o Programa de Leniência norte-americano.
Adicionalmente, as amplas regras de acesso a documentos e informações de Acordos de Leniência e plea agreements que favorecem o private enforcement nos Estados Unidos são reforçadas pela existência de (c) prazos prescricionais favoráveis. As partes potencialmente prejudicadas pela conduta anticompetitiva dispõem quatro anos para ajuizarem uma ARDC, sendo o termo inicial contado, nos casos das infrações continuadas, a partir da cessação da conduta anticompetitiva.[68] Esse prazo prescricional, por sua vez, é suspenso durante as investigações governamentais.[69]
Segue abaixo quadro-resumo da experiência norte-americana no tema.
2.2 UNIÃO EUROPEIA
Na União Europeia, diferentemente dos Estados Unidos, em que 90% do enforcement antitruste civil[70] é realizado por meio das ARDC, a persecução a condutas anticompetitivas sempre foi, tradicionalmente, realizada pela atuação pública.[71] Tanto é assim que estudos apontam que apenas 22% das decisões da Comissão Europeia entre 2006 e 2012 foram seguidas de ajuizamento de ARDC pelas partes potencialmente lesadas pela conduta anticompetitiva.[72]
Desde 2003, porém, há um esforço em alterar esse cenário e fomentar o ajuizamento de ARDC. O Regulamento nº 1/2003[73] tentou impulsioná-las, mas o enforcement privado vinha desempenhando, até bem recentemente, um papel pouco expressivo. Em 2014, então, houve a publicação da Diretiva sobre Ações de Ressarcimento de Danos Concorrenciais do Parlamento Europeu e do Conselho (“Directive on Antitrust Damages Actions[74], consistente no marco regulatório do private enforcement na União Europeia. Suas regras objetivam equacionar o direito dos consumidores lesados de obterem compensação no âmbito das ações civis com a necessidade de proteção do programa de leniência.[75]
Em termos de nomenclatura, destaca-se que, na União Europeia, utiliza-se o termo “immunity” para se referir àquilo que, no Brasil, se chama “Acordo de Leniência”, ao passo que o termo “leniency” é utilizado para se referir aos demais colaboradores, como aqueles de TCC no Brasil e de plea agreements nos Estados Unidos.[76] Assim, ao se falar em proteção ao Programa de Leniência da União Europeia, refere-se à definição de regras de acesso a documentos e informações oriundos tanto de acordos de imunidade quanto de leniência.
Antes da publicação da Diretiva de 2014, a análise europeia a respeito da confidencialidade dos documentos e informações de acordos era pautada pelo Princípio da Transparência. Previsto no art. 15 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), esse dispositivo dispõe sobre o direito ao acesso a documentos das instituições públicas, que será excetuado por razões de interesse público ou privado, definidas em regulamento específico. Por sua vez, regras de acesso, pelo público, aos documentos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão eram definidas no Regulamento nº 1049/2001 (“Regulamento da Transparência”).[77] Segundo tal diploma, o acesso poderia ser negado se prejudicasse, dentre outras, as seguintes hipóteses: interesses comerciais, atividades de inspeção, e processo decisório da instituição, salvo se houvesse interesse público superior.[78]
Na ausência de uma norma supranacional que regulasse especificamente o acesso a documentos e informações oriundos de acordos de imunidade e de leniência no âmbito de ARDC, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) formou jurisprudência acerca do tema. No caso Pfleiderer (2011)[79], a questão colocada era se os tribunais nacionais poderiam conceder acesso, em ARDC, aos documentos recebidos pelas autoridades antitruste nacionais (NCAs) em acordos de imunidade e leniência.[80] Até então, a Comissão Europeia vinha adotando a posição de que estes materiais não poderiam ser objeto de discovery, sob pena de prejudicar o Programa de Leniência europeu. O TJUE, todavia, decidiu que caberia às cortes nacionais, com base na legislação de cada Estado Membro, uma análise casuística ponderando as ações indenizatórias vis-à-vis a atratividade do Programa de Leniência, para então decidir, no caso concreto, por conferir ou não o discovery de tais materiais às partes potencialmente prejudicadas pela conduta anticompetitiva.[81] [82]
Nos casos que se seguiram[83], os precedentes jurisprudenciais se dividiram. No caso do cartel dos peróxidos (2011), o TJUE não aceitou o argumento da Comissão de que o texto sumário da decisão em um caso de cartel se tratava de informação comercial sensível, determinando que tal informação não estaria incluída na exceção da Lei da Transparência e que, portanto, deveria ser disponibilizada. Posteriormente, em 2015, a Corte Geral da União Europeia autorizou a Comissão a publicar uma nova e detalhada versão da decisão condenatória, sob o fundamento de que informações que datavam de mais de cinco anos não estariam abarcadas na “professional confidentiality” por não serem objetivamente merecedoras de tratamento confidencial.[84] Já no caso EnBW (2014), o TJUE entendeu que a Comissão Europeia não estaria sujeita à mesma exigência de transparência que os demais órgãos da União Europeia. Por essa razão, o acesso aos documentos obtidos em investigação de cartel deveria ser concedido apenas em caso de necessidade absoluta e quando a evidência não estivesse disponível por vias alternativas, sob pena de prejudicar os incentivos do Programa de Leniência.[85] Observa-se, portanto, que a decisão no caso Pfleiderer resultou em divergência jurisprudencial.
Diante desse cenário, a Comissão Europeia buscou uma solução normativa para proteger a eficácia de seu Programa de Leniência, para conferir maior segurança jurídica aos beneficiários dos acordos de imunidade e leniência, e para harmonizar as regras do enforcement público e privado. Essa solução normativa foi justamente a Diretiva 2014 da União Europeia.
A Diretiva prevê que todas as partes lesadas por práticas anticompetitivas têm direito de receber compensação integral pelos danos sofridos (lucros emergentes e lucros cessantes)[86], acrescida de juros. Visando a incentivar a cultura do private enforcement na Europa, foram propostas diversas alterações institucionais no sentido de reduzir os obstáculos ao ajuizamento das ARDC nos tribunais nacionais dos Estados Membros. As principais alterações abordaram, dentre outros temas: (a) o acesso a evidências; (b) a extensão da responsabilidade solidária ou individual; (c) os prazos prescricionais; (d) o instrumento de defesa dos compradores indiretos chamado “passing-on defense”[87]; (e) a quantificação do dano[88]; (f) a responsabilização consensual das disputas[89]; e (g) o efeito das decisões locais[90]. Concentrar-se-á, para fins deste trabalho, nas três primeiras alterações.
No que tange às (a) regras de acesso a documentos e informações oriundos de acordos de imunidade e leniência na União Europeia, o artigo 5º da Diretiva 2014 (“Divulgação de elementos de prova”) estabelece, como regra geral, que os tribunais nacionais têm a prerrogativa de ordenar a divulgação de elementos de prova, desde que o autor tenha apresentado um pedido considerado plausível, razoável e fundamentado. Os tribunais nacionais devem então declarar tal pedido “proporcional”, ou seja, devem considerar tanto os interesses do requerente da informação quanto os da parte demandada.[91]
O artigo 6º da Diretiva 2014 (“Divulgação de elementos de prova incluídos no processo de uma autoridade da concorrência”), sem prejuízo das previsões do artigo 5º, inovou e estabeleceu categorização em três níveis de proteção aos documentos obtidos em sede do Programa de Leniência: (a.1.) proteção total, (a.2.) proteção temporária e (a.3.) sem proteção necessária. Cada categoria de documentos (que representa a pergunta sobre “o que” se pede acesso na ARDC) possui um regramento específico quanto ao destinatário autorizado a ter acesso (“quem”) e quanto ao momento em que isso acontece (“quando”).
A categoria de (a.1.) proteção total (“black list”) abarca as declarações do signatário do acordo de imunidade e de leniência (“leniency statements”)[92] e as demais submissões de caráter voluntário e auto-incriminatórias (“settlement submissions”)[93]. A nosso ver, esses documentos seriam análogos, no Brasil, ao chamado “Histórico da Conduta” (e seus aditivos), que detalha a conduta anticompetitiva com base nos documentos e informações voluntários e auto-incriminatórios apresentados pelo colaborador. Nos termos da Diretiva 2014, tais documentos da “black list” não podem nunca e em nenhuma hipótese serem divulgados, ainda que sob ordem judicial, mesmo após encerradas as investigações da autoridade. A justificativa dessa proteção absoluta está no fato de que esses documentos não existiriam ou nunca poderiam ser obtidos pela autoridade concorrencial se não fosse pelo Programa de Leniência europeu. Seja por meio do uso de seus poderes investigativos (e.g., buscas e apreensões), informantes, discovery ou qualquer outro meio de acesso a documentos, a autoridade de concorrência nunca seria capaz de obter um documento de caráter voluntário e auto-incriminatório, que apenas foi produzido para fins de celebração do acordo de imunidade ou leniência.
Assim, foi a decisão voluntária do participante do cartel em colaborar com a autoridade antitruste e subscrever tais documentos que permitiu a descoberta e a punição do cartel, bem como o ressarcimento dos danos aos consumidores, razão pela qual esse mesmo documento não poderia ser utilizado justamente contra aquele que colabora com as investigações na União Europeia. A negativa de acesso a essa categoria de documentos representa a adequação necessária para permitir a continuidade da persecução pública a condutas anticompetitivas na Europa, notadamente mantendo a atratividade do Programa de Leniência, sem com isso prejudicar o enforcement privado, já que outros tipos de documentos seriam disponibilizados às partes potencialmente lesadas nas ARDC.
Já a categoria de (a.2.) proteção temporária (“grey list”) abrange documentos e informações trocados entre a autoridade da concorrência e as partes investigadas no curso do processo[94], tais como as respostas a pedidos de informação, os statements of objections[95] e as análises preliminares da Comissão Europeia. A nosso ver, esses documentos seriam análogos, no Brasil, às respostas aos ofícios, às notas técnicas de instauração, saneamento, e final da Superintendência-Geral do Cade (SG/Cade) e demais manifestações interlocutórias. Esses então são divulgáveis, apenas mediante ordem judicial, após a autoridade competente ter proferido decisão final sobre o caso. A justificativa dessa proteção temporária é evitar a disponibilização, no curso das investigações, de documentos produzidos que possam resultar em interferências externas negativas ao devido andamento do processo público de persecução à conduta anticompetitiva na Comissão Europeia.
Finalmente, a categoria (a.3.) sem proteção necessária (“white list”) abrange documentos e informações em posse da autoridade da concorrência que não se encaixam nas hipóteses das categorias acima, e desde que sejam pré-existentes, não preparados no âmbito da investigação (e.g., contratos escritos, textos de e-mails e atas de reuniões). Tais documentos podem ser divulgados para os tribunais no bojo das ARDC a qualquer tempo, desde que o pedido seja pertinente e proporcional. A justificativa para essa ausência de proteção reside no fato de que esses documentos poderiam ser obtidos de outro modo que não exclusivamente por meio da colaboração das partes nos acordos de imunidade e leniência (por exemplo, por meio de buscas e apreensões, informantes, discovery etc.).
O quadro abaixo sumariza o grau de proteção dispensado a cada categoria de documentos.[96]
A existência de uma categoria de documentos sem proteção necessária (“white list”), porém, só foi possível diante da alteração normativa dos aspectos relacionados à (b) extensão da responsabilidade do colaborador no acordo de imunidade e de leniência. A Diretiva 2014 limitou a regra geral da responsabilidade solidária, em seu artigo 11, como forma de harmonizar os interesses do enforcement público e privado. O artigo 11(4) definiu então que os beneficiários da imunidade serão responsáveis apenas perante os seus adquirentes ou fornecedores diretos ou indiretos[97], sendo que a responsabilidade perante outros consumidores lesados apenas ocorrerá se a reparação integral não puder ser obtida das outras empresas implicadas na mesma infração[98].
Essa limitação da extensão da responsabilidade civil no bojo das ARDC é especialmente importante, na Europa, diante da amplitude definida pela jurisprudência para a responsabilidade pelos danos causados pelo cartel. Pelo regramento europeu, os autores da conduta anticompetitiva – incluindo aqueles que obtiverem imunidade total ou parcial em sede do Programa de Leniência – podem responder não apenas pelos danos que causaram diretamente, mas também pelos causados por empresas não participantes do cartel que puderam majorar seus preços em decorrência da prática anticompetitiva. Trata-se do chamado “efeito guarda-chuva” (“umbrella effect”).[99] O caso Kone AG v. OBB Infrastruktur (2012)[100] foi paradigmático nesse tema, ao consolidar o entendimento da Corte de Justiça Europeia (ECJ) de que membros de um cartel podem ser responsabilizados, na esfera civil, também pelos danos causados pelo aumento de preços de outras empresas não participantes da conduta.[101] O argumento é o da ocorrência de danos concorrenciais pelo comportamento “carona” de empresas não cartelizadas. A ECJ entendeu ser possível determinar a responsabilidade por danos decorrentes do efeito guarda-chuva, e, para tanto, definiu que o nexo causal deverá ser estabelecido pelos tribunais nacionais com base em alguns critérios.
A limitação da responsabilidade solidária dos beneficiários do Programa de Leniência, portanto, representa importante instrumento para que se consiga harmonizar o enforcement público e o privado, em especial diante da ampliação das regras de acesso a documentos e informações prevista na Diretiva de 2014.
Finalmente, outra importante alteração da Diretiva de 2014 diz respeito à (c) prescrição da pretensão indenizatória. O artigo 10º previu o prazo prescricional mínimo de cinco anos para ajuizamento de ARDC. E previu também que os Estados membros deverão garantir que a contagem do prazo não tenha início antes que a violação anticoncorrencial haja cessado e que o autor da ação haja tomado conhecimento: (i) da conduta em causa e de que essa constitui uma infração ao direito da concorrência; (ii) do nexo causal entre a infração concorrencial e o dano; e (iii) da identidade do infrator. A Diretiva estabelece, ainda, a suspensão ou interrupção da contagem do prazo prescricional durante as investigações conduzidas pela autoridade antitruste. O término da suspensão se dará apenas após decorrido o período mínimo de um ano da decisão definitiva sobre o caso.
Segue abaixo quadro-resumo da experiência da União Europeia no tema.
2.3 REINO UNIDO
O Reino Unido é uma das jurisdições em que se observa de forma mais acentuada a tendência crescente de ajuizamento de ARDC.[102] Estudos apontam que, entre 2009 e 2012, cerca de 44 dessas ações foram julgadas no Reino Unido, sendo que em dezoito delas os autores obtiveram êxito total ou parcial. Considerando que a autoridade antitruste nacional – Competition and Markets Authority (CMA)[103] – não possui competência sancionatória e deve litigar em juízo para a aplicação de multas e sanções criminais por condutas anticompetitivas, a decisão judicial tradicionalmente torna pública e acessível a fundamentação de uma eventual condenação, ainda que esta decisão se baseie em informações oriundas de Acordo de Leniência. Assim, torna-se mais simples para as partes potencialmente lesadas obter acesso aos documentos e informações que podem embasar sua pretensão de ressarcimento.
Ademais, sendo o Reino Unido um país de common law, existem (a) amplas regras de acesso a documentos e informações no processo civil[104], aplicáveis às ARDC, similarmente ao que se verifica nos Estados Unidos. Cinco são os diplomas legais gerais aplicáveis às ARDC no Reino Unido: Rules & Practice Directions on Disclosure and Inspection of Documents, Competition Act, Freedom of Information Act (FOIA), Data Protection Act e The Enterprise Act. Com base nessa legislação, os tribunais cíveis no Reino Unido possuem ampla discricionariedade para ordenar o acesso, em juízo, de documentos em posse da autoridade da concorrência, mesmo se obtidos via Acordo de Leniência.
O tema foi tratado pelos tribunais ingleses no caso National Grid Electricity Transmission Plc v ABB Ltd. (2012).[105] Nesse caso, a primeira instância do Reino Unido estabeleceu a possibilidade de discovery parcial em relação a determinados materiais de leniência (respostas aos pedidos de informação e ao statement of objections) e em relação a algumas partes da versão confidencial da decisão final da Comissão Europeia. Todavia, a decisão da segunda instância determinou que os documentos elaborados especificamente para serem submetidos ao Programa de Leniência não deveriam ser divulgados.[106]
Ao longo dos últimos anos, o Reino Unido vem implementando alterações legislativas com vistas a fomentar as ARDC, ao mesmo tempo em que busca resguardar o enforcement público. Em 2013, foi realizada uma reforma regulatória por meio da Lei de Empresas e Reforma Regulatória (Enterprise and Regulatory Reform Act).[107] Esse diploma instituiu novas regras para incentivar o enforcement privado no Reino Unido, dentre as quais se destacam aquelas relativas ao encorajamento do ajuizamento coletivo de ARDC[108]; à promoção de métodos alternativos de resolução de conflitos[109]; à expansão do papel do Tribunal de Concorrência de Apelação (Competition Appeal Tribunal – CAT)[110], que deve notificar o CMA quando ações indenizatórias são ajuizadas; e à prerrogativa do CAT de determinar a suspensão processual das ARDC se a matéria estiver sendo investigada pelo CMA[111].
Já em 2015, com o advento da nova Lei dos Direitos do Consumidor (Consumer Rights Act – CRA)[112], foi estabelecido um mecanismo inovador de facilitação ao ressarcimento por danos concorrenciais que (b) limita a extensão da responsabilidade civil tanto do signatário do Acordo de Leniência quanto dos demais coautores. Denominado mecanismo de reparação voluntária (“voluntary redress scheme”)[113], determina que tanto o beneficiário da leniência quanto os demais participantes da conduta anticompetitiva podem submeter, voluntariamente, um plano de ressarcimento às partes lesadas, buscando a aprovação do CMA. O CMA não participa diretamente da negociação desse plano, mas garante que tal processo ocorra com as devidas garantias processuais e com equidade. Se aprovado, o autor da conduta anticompetitiva poderá receber, em contrapartida, descontos de até 20% no valor da multa administrativa a ser aplicada.[114] Em agosto de 2015, foi publicada a regulamentação desse mecanismo de reparação voluntária[115], tendo sido estabelecidas as regras que deverão ser seguidas pelo CMA e pelas demais agências reguladoras para sua aprovação[116].
Acadêmicos sugerem que, sob a perspectiva dos consumidores lesados, o programa de compensação legal facilita a reparação, pois prescinde do ajuizamento judicial de ARDC, sabidamente morosas e custosas no Reino Unido.[117] Ademais, na hipótese de haver relações comerciais continuadas, a reparação voluntária, instrumento inovador, apresenta-se como uma opção capaz de preservar a relação entre fornecedores e consumidores. Logo, esse novo mecanismo assume papel importante na manutenção de regras harmônicas no Reino Unido, vez que a celebração de um Acordo de Leniência ou setllement não exclui o dever de reparação civil dos beneficiários desses acordos.[118]
Espera-se que o Reino Unido implemente as regras da Diretiva 2014 até dezembro de 2016[119], incluindo aquelas relacionadas ao enforcement privado, e que uniformize suas regras de acesso, tornando-as mais restritas.
Cumpre destacar ainda que, no Reino Unido, a decisão da autoridade da concorrência ou da Comissão Europeia sobre determinada violação antitruste constitui evidência prima facie da conduta e do dano, devendo a parte autora da ação provar apenas a quantificação do dano e o nexo causal.[120] Ademais, (c) o prazo prescricional para o ajuizamento das ARDC é um fator de incentivo ao enforcement privado nessa jurisdição, já que no Reino Unido tal pretensão prescreve em seis anos, contados a partir da data em que se tem conhecimento da conduta, ou de quando se pode razoavelmente supor ciência sobre a conduta. Esse tema da prescrição, todavia, tem sido objeto de discussão no Judiciário.[121]
Segue abaixo quadro-resumo da experiência do Reino Unido no tema.
2.4 ALEMANHA
Configurando incremento do private enforcement, a Alemanha vem observando o uso crescente das ARDC[122], o que complementa seu já consolidado enforcement público, desempenhado pelo Bundeskartellamt[123]. Em 2005, inclusive, importantes reformas na lei de concorrência alemã (German Act against Restraints of Competition) foram levadas a cabo com o objetivo de fomentar as ARDC.
As ações de reparação por danos concorrenciais, processadas nos tribunais civis especializados do Poder Judiciário alemão, contam com a participação da autoridade antitruste por uma série de fatores. Primeiramente, porque a decisão final do Bundeskartellamt (assim como de outra autoridade de concorrência que tenha decidido o caso) serve como evidência prima facie do dano para os tribunais alemães.[124] Em segundo lugar, porque a autoridade antitruste deve ser informada sobre ações de danos que envolvam casos de violações antitruste, podendo se manifestar em tais processos na condição de amicus curiae.[125] E em terceiro lugar, porque nas raras situações em que os consumidores potencialmente lesados são facilmente identificados, o Bundeskartellamt pode impor em sua própria decisão a obrigação de que as empresas condenadas reembolsem tais consumidores.[126]
Com relação às (a) regras de acesso aos documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência, a Alemanha é uma das jurisdições em que os tribunais mais têm limitado a divulgação de tais informações e documentos. O Bundeskartellamt, em regra, não confere acesso aos documentos da leniência. Segundo a legislação alemã (German Code of Civil Procedure), os tribunais civis podem determinar a submissão de autos da autoridade de concorrência[127], mas o pedido de acesso geralmente exige que o autor da ação identifique especificamente quais os documentos que deseja[128]. Assim, ao ser solicitado para disponibilizar informações e documentos da leniência para embasar uma ARDC, o Bundeskartellamt normalmente disponibiliza apenas (i) cópia da versão pública da decisão final (sendo que a autoridade alemã normalmente não publica suas decisões), e (ii) lista de evidências disponíveis à autoridade da concorrência.
O já mencionado caso Pfleiderer, por exemplo, foi decidido em primeira instância na Alemanha, em decisão que negou acesso à totalidade dos materiais de leniência no âmbito da ARDC.[129] Já no caso da investigação Rosted Coffee, a negativa de acesso aos materiais de leniência ocorreu em tribunal de segunda instância.[130] Tais precedentes demonstram a acentuada valoração concedida pelos tribunais alemães ao Programa de Leniência do Bundeskartellamt vis-à-vis o enforcement privado.[131]
No que diz respeito às (b) regras de responsabilidade civil relativas a danos concorrenciais, a Alemanha adota a responsabilidade solidária. Contudo, a reforma de 2005 da lei de concorrência alemã (German Act against Restraints of Competition) visou a fomentar as ARDC exatamente por meio da alteração das regras de responsabilidade civil. A primeira emenda tornou clara a inclusão como possíveis legitimados para o ajuizamento de ação todos os potenciais lesados pela conduta, direta ou indiretamente. Desse modo, a lei alemã passou a não fazer diferença entre as partes afetadas direta ou indiretamente por condutas anticoncorrenciais, como afirmado no caso Courage vs. Crehan, julgado pela TJUE.[132] O argumento de defesa conhecido como “passing-on”, portanto, só pode ser usado em condições específicas e na hipótese de não gerar benefício excessivo ao representado.[133] Por sua vez, a segunda emenda estendeu o direito de reparação a empresas ou associações de empresas afetadas pelo lado da demanda, ampliando o escopo de legitimados para ajuizar ARDC.[134]
O beneficiário do Acordo de Leniência não se exime ou tem limitada sua responsabilidade por danos concorrenciais causados aos consumidores, em oposição às regras da Diretiva 2014, a qual prevê, em seu artigo 11(4), (5) e (6), a limitação da responsabilidade civil do beneficiário desse tipo de acordo. A particularidade do direito alemão está em permitir que pequenas e médias empresas possam ter sua responsabilidade civil limitada, atendidos determinados requisitos, de modo a evitar a responsabilidade solidária.[135]
Ainda com relação à responsabilidade civil, vale notar que a jurisprudência alemã sugere a adoção de um procedimento bifásico, que divide a decisão do Bundeskartellamt em dois momentos: (i) uma decisão preliminar declaratória, que é seguida de um período designado para facilitar a celebração de acordos com consumidores lesados; e (ii) a decisão final, que considera tais acordos como um “bônus” no cálculo da multa administrativa final (desconto de 15%). Tal procedimento visa a diminuir os custos do litígio no Judiciário e a assimetria de informações enfrentada pelos consumidores lesados, e a favorecer o beneficiário da leniência na medida de sua cooperação.[136]
Quanto ao (c) prazo prescricional para ajuizamento das ARDC na Alemanha, a lei prevê apenas três anos, contados a partir da ciência sobre a violação, apesar de haver a possibilidade de ações de danos também prescreverem após dez anos da ocorrência da violação. Mesmo diante do apertado prazo prescricional, observa-se a existência de ações exitosas, tais como aquela movida pela Deutsche Bahn AG, maior empresa alemã no setor ferroviário, que iniciou uma ARDC em face dos participantes do cartel de produtores e ofertantes de trilhos após investigação iniciada a partir de um Acordo de Leniência. Por meio de acordos não judiciais, a Deutsche Bahn já recebeu ressarcimento de pelo menos duas empresas, totalizando cerca de 200 milhões de euros. Em onze casos nos quais não se obteve acordos, a empresa iniciou ações civis em diferentes jurisdições da Europa e nos Estados Unidos.[137]
Segue abaixo quadro-resumo da experiência da Alemanha no tema.
2.5 HOLANDA
A Holanda é uma das jurisdições onde mais se tem observado o ajuizamento de ARDC na União Europeia.[138] Isso se verifica, dentre outras razões, porque a decisão final da autoridade holandesa (Dutch Competition Authority – ACM) e da Comissão Europeia constituem prova prima facie do ilícito no âmbito dos tribunais, devendo o autor da ação provar apenas o quantum do dano e o nexo causal.[139] Trata-se de instrumento que facilita a obtenção do ressarcimento pelas partes lesadas e, portanto, acaba por fomentar o enforcement privado. Exemplos de ações civis em curso que utilizam a decisão final da ACM como prova do dano envolvem os cartéis dos mercados de carga aérea[140], elevadores[141] e clorato de sódio[142]. Tais casos discutem temas como a suspensão do processo civil enquanto a decisão da autoridade da concorrência está pendente de discussão no Judiciário, e os limites do argumento de defesa conhecido como passing-on[143], dentre outros temas.
No que tange ao (a) acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência, os tribunais holandeses podem emitir ordens para discovery de documentos tidos como relevantes para o processo, sendo que as partes devem divulgar todos os documentos que estejam em seu controle e que sejam relevantes para o caso, com exceção de documentos com informação de conteúdo privilegiado (“privileged”).[144] A autoridade holandesa não tem obrigação de auxiliar as ARDC fornecendo provas colhidas durante seu processo investigatório, exceto por ordem judicial, podendo, ainda, opor resistência à divulgação, especialmente no caso de documentos de leniência.[145] Essa situação tende a se alterar até o final de 2016, já que a Holanda, enquanto Estado Membro da União Europeia, deverá implementar as previsões da Diretiva 2014, harmonizando regras para ações de ressarcimento de danos concorrenciais no bloco europeu.
Com relação à (b) responsabilidade civil, a regra geral é da responsabilidade solidária. Em 2005, porém, foi adotado na Holanda um sistema “opt-out”[146], denominado “Meio Alternativo de Resolução de Conflito em Ação Coletiva de Danos”, com vistas a fomentar o ressarcimento das partes lesadas. Suas principais características são: (i) celebração de acordo extrajudicial aprovado pelo Judiciário; (ii) existência de consentimento pelos lesados; e (iii) o acordo aprovado pelo Judiciário tem efeito vinculante perante todos os consumidores que sofreram o dano.[147]
Quanto ao (c) prazo prescricional para a ação civil, a legislação holandesa prevê o prazo de cinco anos a partir do dia seguinte em que se conhece o dano e o autor, sendo que o direito prescreve após vinte anos da data em que o dano foi infligido, independentemente da ciência do autor. A legislação nacional facilita o enforcement privado na medida em que prevê prazo prescricional benéfico ao consumidor e meios de ressarcimento extrajudiciais.
Segue abaixo quadro-resumo da experiência da Holanda no tema.
2.6 AUSTRÁLIA
A assinatura de um Acordo de Leniência[148] com a autoridade da concorrência australiana (Australian Competition and Consumer Commission – ACCC[149]) não exclui o dever de indenizar do beneficiário, de modo que esse poderá ser réu em uma ARDC tal qual os demais coautores do ilícito antitruste. Esse tipo de ação, porém, tem apresentado crescimento modesto no país, possivelmente em razão dos altos custos e da morosidade dos procedimentos judiciais.
Quanto ao (a) acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência e de settlements, há na Austrália a orientação geral de não publicização, em que pese a existência de precedentes contrários a essa orientação no Judiciário. Trata-se do caso ACCC v Visy Industries (2007)[150], em que o autor da ação fez pedido de acesso a documentos da ré condenada pela ACCC por formação de cartel. Dentre os documentos requisitados, ressalte-se, estavam incluídas declarações de testemunhas obtidas em Acordo de Leniência. Em consonância com o previsto no manual ACCC Immunity and Cooperation Policy for Cartel Conduct, a autoridade australiana sustentou o sigilo das informações sob a justificativa de interesse público. A Corte, no entanto, entendeu que não havia sigilo, já que as mesmas testemunhas poderiam ser chamadas a depor em audiência, sendo o pedido apenas uma medida de economia processual. O interesse público em manter a confidencialidade também não foi constatado, já que não se comprovou que as testemunhas que produziram os depoimentos tinham a expectativa de que eles fossem mantidos confidenciais. Dessa forma, a Corte ordenou o compartilhamento dos documentos.
As regras gerais de discovery e exibição de documentos na Austrália estão previstas nas Federal Court Rules, de 2011.[151] Entretanto, em virtude da insegurança jurídica causada por aquele julgado, e visando a manter a atratividade do Programa de Leniência australiano[152], editou-se, em 2010, o Competition and Consumer Act (CCA)[153], que trouxe regras protetivas da confidencialidade de informações obtidas em investigação de cartel. Segundo a Seção 157 desse normativo, apesar de a regra geral ser do acesso amplo a documentos públicos, há exceção aplicável a informações confidenciais em investigações de cartéis (“protected cartel information”).
A ACCC e os tribunais australianos podem negar o pedido de acesso aos referidos documentos, ponderando fatores como: (i) a informação pode ter sido fornecida à ACCC de forma confidencial; (ii) a relação da Austrália com outros países; (iii) a necessidade de se evitar prejuízos à política nacional e internacional de combate a cartéis; (iv) a proteção do informante; (v) o risco da divulgação prejudicar o Programa de Leniência no futuro; e (vi) os legítimos interesses do requerente da informação.
Nesse sentido, o manual ACCC Immunity and Cooperation Policy for Cartel Conduct (2014)[154] traz manifestação clara da autoridade de que tentará proteger a confidencialidade dos documentos fornecidos no bojo de Acordo de Leniência, podendo, inclusive, alegar em juízo sigilo relativo a esses documentos.
Ao final do processo que apura a conduta de cartel, as conclusões factuais da ACCC sobre a existência de infração à lei da concorrência constituem prova prima facie em processos posteriores, incluindo ações cíveis (Seção 83 do CCA), o que auxilia os litigantes privados em suas ARDC. Algumas decisões judiciais consideram como conclusões factuais apenas aquelas resultantes de uma contested hearing, o que exclui as settlement hearings, nas quais violações são admitidas por participantes de cartel.[155] Propostas de revisão do CCA sugerem a inclusão das admissões dos beneficiários de Acordos de Leniência e settlements como conclusões factuais admissíveis também como prova prima facie, mas o ACCC tem demonstrado preocupação quanto ao impacto negativo dessa possível revisão na efetividade de seu Programa de Leniência.[156]
Embora tenha havido um número significativo de ações coletivas ajuizadas logo após a ACCC ter emitido decisões finais sobre condutas, estudos apontam para acordos na maior parte dos casos, de modo que o Judiciário ainda não teve oportunidade de se manifestar sobre muitas questões relevante para o private enforcement australiano.[157] Há, porém, interessante precedente judicial que aponta no sentido de que o pagamento de danos concorrenciais nessas ARDC pode ser considerado para mitigar a pena aplicável, a exemplo do caso ACCC v Bridgestone Corporation (2010).[158]
Com relação à (b) responsabilidade civil, a regra geral é a da responsabilidade solidária, podendo os consumidores lesados obterem o montante total do ressarcimento pelos danos concorrenciais sofridos de qualquer participante da conduta, inclusive do beneficiário do Acordo de Leniência.[159]
Quanto ao (c) prazo prescricional para ajuizamento de ARDC na Austrália, esse dependerá da seção do CCA em que estiver fundamentado o pedido de reparação. Ações ajuizadas com base na Seção 82 do CCA terão prazo prescricional de seis anos, contados a partir da data em que o dano foi infligido. Já ações ajuizadas com base na Seção 87(1) do CCA não estão sujeitas a período de limitação.[160]
Segue abaixo quadro-resumo da experiência da Austrália no tema.
2.7 CANADÁ
O Canadá conta com extensa experiência em ARDC.[161] Uma das razões apontadas para tal é que a decisão final do órgão de defesa antitruste do Canadá (Competition Bureau)[162] é considerada como evidência prima facie da conduta e do dano. Mesmo decisões de autoridades antitruste de outras jurisdições podem ser consideradas prima facie no âmbito dos tribunais, desde que preenchidos os requisitos legais.[163] De todo modo, o ajuizamento de uma ARDC pode acontecer independentemente da existência de decisão da autoridade da concorrência[164], sendo que, se ajuizada antes do término dos procedimentos criminais, as informações colhidas durante a investigação do Bureau podem não ser disponibilizadas aos autores da ação[165].
Com relação (a) às regras de acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência, o Comunicado de 2007 do Competition Bureau sobre Confidential Information Under the Competition Act[166] afirma que a identidade do beneficiário do Programa de Leniência ou de acordos subsequentes, bem como as informações por eles fornecidas, serão tratadas como confidenciais[167]. A Seção 29 do Competition Act, inclusive, veda a disponibilização para terceiros das evidências colhidas pelo Bureau. Tanto é assim que o Competition Bureau não fornece voluntariamente informações para os autores de ARDC, nos termos do art. 36 do Competition Act. Ademais, o Bureau se opõe ao cumprimento de intimações para dar acesso a documentos e informações se tal acesso puder prejudicar uma investigação em curso, ou de qualquer forma prejudicar o enforcement de seu Programa de Leniência[168]. Em caso de ordem judicial deferindo o compartilhamento, o Bureau solicita “protective orders”, com o intuito de que o acesso seja mantido estritamente ao destinatário da ordem, com vistas a manter a confidencialidade das informações.[169]
As partes rés nas ARDC, porém, têm o dever de divulgar todos os documentos em seu controle que sejam relevantes para a lide, com exceção das informações privilegiadas. A Lei de Acesso à Informação (Access to Information Act - ATIA), de 1985, regula o acesso a documentos públicos no Canadá, e a regra geral é a publicidade dos documentos.
No que diz respeito às (b) regras de responsabilidade civil, a celebração do Acordo de Leniência com o Competition Bureau não exclui o dever dos autores do ilícito de indenizar os consumidores lesados, havendo, inclusive, responsabilidade de natureza solidária entre eles. Interessante notar que, diferentemente de muitas jurisdições europeias, os tribunais do Canadá não aceitam o argumento de defesa referente à transferência de danos (passing-on defense), mas aceitam que tal argumento seja usado para formar a causa de pedir de consumidores indiretos.[170]
Quanto (c) ao prazo prescricional, o Competition Act estipula o prazo de dois anos para ajuizamento de uma ARDC[171], contados a partir do dia em que a violação tiver ocorrido (embora haja controvérsias em relação ao termo inicial aplicável para condutas continuadas), ou a partir do dia em que todos os processos criminais relacionados ao caso tenham transitado em julgado – o que ocorrer por último.[172]
Segue abaixo quadro-resumo da experiência do Canadá no tema.
No Brasil, a persecução de cartéis é desempenhada nas esferas administrativa, criminal e civil. Na esfera administrativa, cabe ao Cade investigar e julgar empresas e pessoas físicas participantes de práticas colusivas anticompetitivas.[173] Na esfera criminal, compete ao Ministério Público Federal e/ou Estadual investigar e oferecer denúncia ao Poder Judiciário[174], sendo a decisão final promovida pelo juízo criminal. Na esfera civil, o direito de ação dos consumidores lesados para obterem a cessação da prática anticompetitiva e o recebimento de reparação de danos é previsto no art. 47 da Lei nº 12.529, de 2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC), que, por sua vez, seguirá as regras do Código Civil (CC).
Esse dispositivo da Lei nº 12.529, de 2011, expressamente determina que os prejudicados em si ou os legitimados do art. 82 da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), tais como Ministério Público, União, Estados, Municípios, Distrito Federal, entidades e órgãos da Administração Pública direta ou indireta e associações podem ajuizar ações coletivas de reparação de danos por violação às regras concorrenciais.[175] Esse direito de ação, por sua vez, está previsto no ordenamento jurídico brasileiro desde a Lei nº 8.884/1994.[176] Ocorre que, em que pese o número de ARDC estar crescendo, o enforcement privado no Brasil ainda é incipiente.
Estudo indica que, até 2011, pouco mais de vinte ARDC haviam sido ajuizadas no País.[177] Outro estudo de 2015 aponta um crescimento de 450% no número de acórdãos proferidos no bojo de tais ações entre os anos de 2009-2011 (quatro acórdãos) e 2012-2014 (22 acórdãos).[178] Dentre as razões apontadas para o baixo uso das ARDC no Brasil são listadas, pelo menos, as seguintes: (i) ausência de uma cultura de reivindicação de danos por parte dos consumidores lesados no Judiciário; (ii) elevados custos e morosidade do litígio judicial, somados, por vezes, à falta de familiaridade do Judiciário brasileiro com a matéria concorrencial; (iii) indefinição quanto ao termo inicial da prescrição para ajuizamento da ação; e, principalmente, (iv) dificuldades em obter evidências e em fornecer análises econômicas e legais complexas que comprovem o nexo causal entre a conduta e o dano sofrido. Esses fatores tendem a tornar o exercício do direito de ação bastante custoso para os litigantes no Brasil.[179]
As primeiras ARDC que se tem conhecimento foram ajuizadas no âmbito da investigação do chamado “cartel dos gases industriais”. Nesse caso, o Tribunal do Cade incluiu, em sua decisão final em 2010, um requerimento para que uma cópia da decisão fosse encaminhada aos consumidores potencialmente lesados pelo cartel.[180] Como decorrência da decisão e da divulgação dessa condenação, foram ajuizadas ao menos três ARDC no Brasil: em 2009, pela Associação dos Hospitais de Minas Gerais[181]; em 2011, pela Sabesp[182]; e em 2012, pelo Ministério Público Federal[183].
Ainda, em 2012, no âmbito do chamado “cartel de cimentos”[184], o Ministério Público do Rio Grande do Norte ajuizou ARDC contra diversas cimenteiras e associações do setor requerendo ressarcimento de montante superior a R$ 5 bilhões.[185] A ação foi ajuizada antes mesmo do proferimento da decisão da autarquia, com base na instauração do Processo Administrativo no Cade. Quando do julgamento do caso pelo Tribunal do Cade, em 2014, seguindo a mesma linha da decisão tomada no caso dos gases industriais, o Cade recomendou que os lesados pela conduta anticompetitiva buscassem ser reparados pelos danos causados pelo cartel.
Há outras ARDC ajuizadas com fundamento em investigações de cartéis realizadas pelo Cade, a exemplo do que ocorreu nos casos dos cartéis de genéricos, combustíveis, extração de areia, aço, vergalhões e laranjas.[186]
A primeira ARDC ajuizada com base em um caso em que houve celebração de Acordo de Leniência ocorreu em 2012, no chamado “cartel dos compressores”[187]. Outra ARDC foi ajuizada, em 2013, exclusivamente contra o beneficiário do Acordo de Leniência do chamado “cartel do metrô”.[188] O pedido não foi aceito pelo Judiciário, que ordenou a emenda da inicial, dada a natureza plurissubjetiva intrínseca à conduta do cartel.[189] Ainda com relação ao cartel do metrô, o Ministério Público de São Paulo ajuizou três ações civis públicas para ressarcimento de danos. A primeira foi proposta em maio de 2014, e se referia à formação de cartel em contratos para reforma de 98 trens das linhas 1-Azul e 3-Vermelha do Metrô de São Paulo, com pedido de indenização de cerca de R$ 2,5 bilhões.[190] A segunda ação foi proposta em dezembro de 2014, e se referia à manutenção de trens da CPTM, com pedido de indenização de aproximadamente R$ 460 milhões.[191] Já a terceira ação civil pública foi ajuizada em setembro de 2015, e focava três procedimentos de licitação da CPTM, com pedido de indenização de quase R$ 1 bilhão, dos quais, R$ 706,53 milhões a título de reparação de dano material e R$ 211,9 milhões por danos morais difusos causados ao Tesouro.[192]
Com o crescimento, ainda que incipiente, do private enforcement no Brasil, a articulação entre persecução pública e privada a condutas anticompetitivas tem se tornado imperiosa. E é papel do Cade, enquanto agência de defesa da concorrência responsável pelos Programas de Leniência e TCC, fomentar esse debate, finalmente possibilitando ao Brasil que se posicione institucionalmente a respeito do tema.
Assim, com vistas a fomentar o ajuizamento de ARDC no Brasil sem prejudicar o public enforcement, passa-se a discutir e analisar a experiência brasileira acerca de três temas: (3.1.) o acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência e TCC, administrativa e judicialmente; (3.2.) as regras de prescrição aplicáveis às ARDC; e (3.3.) as regras referentes à extensão da responsabilidade nas ARDC.
3.1 ACESSO A DOCUMENTOS E INFORMAÇÕES ORIUNDOS DE ACORDOS DE LENIÊNCIA E TCC NO BRASIL
No Brasil, a regra geral prevista no art. 5º, LX da Constituição Federal de 1988 é a da publicidade dos atos administrativos. Há, porém, exceções à regra constitucional, basicamente oriundas das leis que a regulamentam, quais sejam, a Lei nº 9.784, de 1999 (Lei Geral de Processo Administrativo), e a Lei nº 12.527, de 2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI). A Lei Geral de Processo Administrativo, por exemplo, estabelece o sigilo à intimidade e ao interesse público.[193] Ademais, na LAI, há exceção para a divulgação de informações que possam “representar vantagem competitiva a outros agentes econômicos”[194] e que possam “comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações"[195].
A Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529, de 2011) também contém exceções à regra geral constitucional da publicidade dos atos administrativos. O art. 49, por exemplo, garante o tratamento sigiloso de documentos, informações e atos processuais necessários à elucidação dos fatos, sendo que as partes podem requerer tratamento sigiloso das informações submetidas ao Cade no termo e modo definidos em seu Regimento Interno (“Ricade”). E nesse mesmo Regimento, os arts. 50 a 56 regulamentam aquele dispositivo da Lei. O art. 50 prevê a possibilidade de os documentos e informações apresentados serem tratados de quatro modos: público (quando puderem ser acessados por qualquer pessoa), acesso restrito (quando o acesso for exclusivo a algumas partes), sigiloso (quando o acesso for exclusivo às autoridades públicas) e segredo de justiça (quando o acesso for limitado por decisão judicial).
Segundo o art. 52 do Ricade, no interesse das investigações e instrução processual, o Cade assegurará tratamento sigiloso de autos, documentos, objetos ou informações e atos processuais, dentro do estritamente necessário à elucidação do fato e em cumprimento ao interesse social. Antes do encerramento da instrução do processo administrativo, porém, será dado pleno acesso aos documentos utilizados para a formação da convicção do Cade, em atendimento aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Quanto ao tratamento de acesso restrito, esse poderá ser conferido, conforme o caso e no interesse da instrução processual, às informações e documentos que estiverem relacionados a alguma das hipóteses previstas no art. 53 do Ricade – existência de sigilo definido por lei, informação relativa à atividade empresarial cuja divulgação possa representar vantagem competitiva a outros agentes econômicos (arts. 22 da Lei 12.527/2011 e 5º, §2º e 6º, I do Decreto 7.724/12), segredos de empresas, faturamento, clientes e fornecedores, custos de produção, dentre outras.
Especificamente quanto aos Acordos de Leniência e TCC, a Lei nº 12.529, de 2011, confere tratamento confidencial aos documentos e às informações fornecidos no âmbito de tais negociações, visando justamente a resguardar os incentivos das partes em buscar ambos os instrumentos, considerados pilares da persecução pública a cartéis no País. A confidencialidade do Acordo de Leniência está prevista em lei federal (art. 86, §9º[196]), em regulamento infralegal (art. 200, §§ 1º e 2º do Ricade[197]), e também em cláusulas do próprio Acordo celebrado entre os signatários e o Cade com a intervenção do Ministério Público[198]. Isso também acontece no âmbito dos TCC, cuja confidencialidade consta de lei federal (art. 85, §5º), de regulamento infralegal (art. 179, §3º do Ricade), e de cláusulas do próprio TCC.
Observa-se, ainda, que a confidencialidade das informações e dos documentos consubstancia tanto um direito quanto uma obrigação do proponente dos acordos, já que o acesso indevido a documentos e informações pode gerar prejuízos irreversíveis, não apenas às partes, mas também à investigação do cartel e ao Programa de Leniência e de TCC do Cade como um todo. Por um lado, a quebra da confidencialidade com relação ao signatário do Acordo de Leniência (ou compromissário do TCC) pode expô-lo isolada e antecipadamente em relação aos demais coautores da conduta anticompetitiva que não colaboraram com o Cade, e pode expor também informações concorrencialmente sensíveis, tais como segredos comerciais. Por outro lado, com relação à investigação do Cade, a quebra da confidencialidade pode inviabilizar a coleta ulterior de evidências sobre o cartel, por meio, por exemplo, de uma busca e apreensão. Ainda, especialmente no que tange à efetividade dos Programas de Leniência e de TCC, a quebra da confidencialidade pode macular a confiança na capacidade da agência antitruste em proteger tais informações e documentos, prejudicando a descoberta e a persecução de novos cartéis que continuem a ser implementados no País.
Embora no contexto das ARDC, por um lado, o acesso a materiais oriundos de Acordos de Leniência e TCC possa ser justificado pelo caráter de acervo probatório necessário para o sucesso da pretensão indenizatória dos consumidores lesados, por outro, pode expor os signatários do Acordo de Leniência e os compromissários do TCC a uma situação pior do que a dos coautores que não cooperaram com as autoridades antitruste, criando assim um desincentivo ao enforcement público. Logo, é fundamental encontrar a adequada medida entre a proteção dos documentos e informações de Acordos de Leniência e TCC (com vistas à manutenção da atratividade dos referidos Programas) e o fomento ao ajuizamento das ARDC no Brasil.
3.1.1 A experiência administrativa do Tribunal do Cade em relação ao acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência e TCC
O proferimento do voto pelo Conselheiro-Relator na sessão de julgamento do Plenário do Tribunal do Cade torna públicos todos os documentos e informações que forem considerados relevantes para a imputação da conduta delitiva em face de todas as empresas e pessoas físicas envolvidas na conduta anticompetitiva investigada, independentemente de serem oriundos de Acordo de Leniência, TCC, busca e apreensão ou outras fontes. Esse voto público tende a qualificar, de modo similar, a participação de todos os coautores da conduta anticompetitiva, inclusive em relação ao nível de prova existente contra cada um deles. Trata-se de documento extenso, que pode até mesmo transcrever as principais provas que evidenciam a conduta anticompetitiva.
Até abril de 2016, o Plenário do Tribunal do Cade havia julgado seis casos[199] instaurados em decorrência da celebração de Acordos de Leniência, a saber:
A fim de se compreender melhor a experiência administrativa do Tribunal do Cade em relação ao acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência e TCC, será realizada, para cada caso, uma breve análise da forma como os Conselheiros- Relatores trataram o tema da confidencialidade após o julgamento final pela autoridade antitruste brasileira.
A investigação do (i) cartel dos vigilantes do Rio Grande do Sul (julgado em 2007) foi resultado do primeiro Acordo de Leniência celebrado no Brasil, o qual ensejou a realização de operações de busca e apreensão e interceptações telefônicas. Quando do julgamento do caso pelo Tribunal do Cade, o Conselheiro-Relator elaborou uma versão pública e uma versão confidencial de seu voto. No voto público, foram transcritos trechos do Acordo de Leniência, e foram disponibilizados o termo de celebração do referido Acordo (fls. 329 e ss.) e as degravações das interceptações telefônicas (fls. 6.622 e ss.). Já nos autos de acesso restrito permaneceram os documentos fornecidos pelos beneficiários da leniência e os documentos obtidos em sede de busca e apreensão.
Também na investigação referente ao (ii) cartel internacional dos peróxidos (julgado em 2012) houve operação de busca e apreensão embasada na prévia celebração de Acordo de Leniência. Inicialmente, durante as investigações, foi disponibilizado aos representados apenas o “Histórico de Infrações” (atualmente denominado Histórico da Conduta), contendo o lastro probatório da infração noticiada. Posteriormente, porém, para fins de ampla defesa, foi disponibilizado aos representados também o termo de celebração do Acordo de Leniência.[206] Quando do julgamento do caso pelo Tribunal do Cade, o Conselheiro-Relator elaborou uma versão pública e uma versão confidencial do seu voto. Por um lado, na versão pública, houve transcrição de diversos trechos dos documentos da busca e apreensão e também de documentos do Acordo de Leniência. Por outro, o termo de celebração do Acordo de Leniência em si, o Histórico de Infrações e as provas colhidas em sede de busca e apreensão permaneceram em apartado de acesso restrito às representadas no processo.
A exemplo dos demais casos, na investigação referente ao (iii) cartel internacional de cargas aéreas (julgado em 2013)[207] também ocorreu operação de busca e apreensão após a celebração de Acordo de Leniência. Quando do julgamento do caso pelo Tribunal do Cade, o Conselheiro-Relator elaborou uma versão pública e uma versão confidencial do seu voto. Na versão pública, havia a transcrição de diversos trechos dos documentos da busca e apreensão e também de documentos oriundos do Acordo de Leniência. Já o termo de celebração do Acordo de Leniência em si, o Histórico de Infrações e as provas colhidas em sede de busca e apreensão permaneceram em apartado de acesso restrito às representadas no processo. Conferiu-se, portanto, o mesmo tratamento em termos de acesso que foi dado ao caso anterior (cartel internacional de peróxidos), com destaque para o fato de que aos documentos recebidos em sede do Acordo de Leniência foi dispensado o mesmo tratamento que o conferido aos documentos apreendidos nas sedes das empresas alvo de busca e apreensão.
Por sua vez, a investigação referente ao (iv) cartel internacional de mangueiras marítimas (julgado em 2015) inaugurou uma nova era em termos da preocupação do órgão antitruste com o enforcement privado. Essa preocupação foi possivelmente influenciada pelas recentes discussões sobre o tema na seara internacional, notadamente após a Diretiva de 2014 da Comissão Europeia. Nesse caso, a exemplo do que ocorreu no caso do cartel internacional de peróxidos, ao longo do Processo Administrativo foi discutida a adequação de se conceder ou não acesso ao termo de celebração do Acordo de Leniência aos representados. Decidiu-se então, pela disponibilização do documento aos representados ainda durante a tramitação do processo.[208] O Conselheiro-Relator, quando do julgamento, afastou as preliminares de confidencialidade suscitadas pelas representadas e buscou ponderar a disponibilização de documentos e informações oriundos de leniência e TCC versus o fomento às ARDC. Na versão pública do voto, o Conselheiro-Relator transcreveu trechos de confissão de conduta dos TCC e trechos do Histórico da Conduta do Acordo de Leniência.[209] Uma peculiaridade desse caso reside no fato de que, até o momento do voto, as representadas ainda não tinham tido acesso aos documentos apreendidos nas diligências de busca e apreensão em virtude de segredo de justiça ainda mantido na via judicial.[210]
Assim, o Conselheiro-Relator, em seu voto, permitiu a divulgação do material oriundo do Acordo de Leniência a terceiros e determinou que, após o julgamento do caso, o termo de celebração do Acordo de Leniência (e demais documentos anexos apresentados pelo beneficiário) poderia ser disponibilizado a terceiros, em razão dos princípios da publicidade e moralidade. Segundo o Relator, “fatos e documentos apresentados pelo beneficiário integram a confissão da conduta e só podem ser divulgados a terceiros não-representados após o julgamento do caso em sessão pública”.[211] Em que pese essa decisão pela publicização após o julgamento, o Conselheiro-Relator destacou que determinados documentos não usados como base para a acusação deveriam ser mantidos confidenciais, mesmo após o julgamento do caso, por versarem sobre segredos de empresa (incluindo especificações técnicas de produtos).[212] Ademais, foi mantida a confidencialidade dos materiais apreendidos em medida de busca e apreensão, tendo em vista o segredo de justiça pendente. Esses documentos a que se autorizou a disponibilização não se encontram nos autos públicos no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do Cade, de modo que a íntegra do termo de celebração do Acordo de Leniência e seus anexos ainda permanecem em acesso restrito aos representados. A princípio, tais documentos estarão disponíveis apenas às partes que tiverem autorização judicial de acesso.
Já no julgamento da investigação do (v) cartel internacional de perborato de sódio (julgado em 2016), excepcionalmente, o voto do Conselheiro-Relator determinou a publicidade de todo o apartado de acesso restrito às representadas sob o fundamento de que as informações comerciais que poderiam ser consideradas sigilosas datavam de muitos anos e, portanto, não poderiam mais ser consideradas concorrencialmente sensíveis. Contudo, o termo de celebração do Acordo de Leniência, bem como o Histórico da Conduta e demais anexos permanecem em acesso restrito aos representados. A princípio, tais documentos estarão disponíveis apenas às partes que tiverem autorização judicial de acesso.
Por fim, no julgamento do (vi) cartel dos compressores (julgado em 2016), o Conselheiro-Relator, tal como feito em outros casos de sua relatoria, transcreveu em seu voto os principais trechos do Histórico da Conduta e franqueou o acesso aos representados à totalidade dos documentos probatórios. Para tal, embasou-se na Súmula Vinculante nº 15 do Supremo Tribunal Federal, que garante aos representados amplo acesso aos elementos de prova, em observância ao direito de defesa.[213] Por sua vez, mesmo após o julgamento do caso, permaneceram nos autos de acesso restrito informações sobre segredos de empresa, o termo de celebração do Acordo de Leniência e seus anexos.
3.1.2 A experiência do judiciário em relação ao acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência e TCC
O Judiciário se manifestou explicitamente em pelo menos dois casos sobre o acesso a informações e documentos fornecidos no âmbito do Acordo de Leniência:
O caso conhecido como cartel dos trens e metrôs (i) teve origem em Acordo de Leniência, que ensejou a realização de buscas e apreensões cíveis nas sedes das empresas investigadas. Um dos juízes que analisou o pedido de busca e apreensão[216], após o término da operação, ordenou a divulgação das informações e documentos referentes ao Acordo de Leniência, inclusive do Histórico da Conduta que detalhava o suposto cartel. Segundo o juiz, a publicização seria justificável visto que os prazos prescricionais para eventuais ações judiciais já se encontravam em curso, além da identidade dos signatários já ser de conhecimento de todos devido à divulgação ocorrida na imprensa.[217]
Apesar de determinar o acesso, o Juiz reconheceu a excepcionalidade do caso, frisando que, em regra, o sigilo de tais documentos e informações deve ser mantido até o julgamento do caso pelo Tribunal do Cade. Nos termos da decisão: “A identidade do beneficiário de um acordo de leniência é mantida sob sigilo no interesse das investigações e para proteger aqueles que colaboram com a autoridade antitruste. Essa confidencialidade, em geral, é mantida até o julgamento do caso pelo Tribunal do Cade, quando é confirmada a imunidade administrativa e criminal a que a leniência dá direito (...). Os nomes das pessoas físicas que assinam a leniência, os termos do acordo e os documentos que o acompanham continuam confidenciais”.
Uma das empresas representadas no processo interpôs agravo de instrumento contra a decisão de primeira instância. O TRF3, todavia, negou provimento ao agravo tendo em vista que “o recorrente deveria ter se insurgido da primeira decisão que apreciou o pedido de decretação de sigilo”.[218]
Então, a decisão de primeiro grau foi apelada pelo Cade e por uma das empresas investigadas[219], apelação esta que foi provida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Embora não tenha ordenado o sigilo quanto à tramitação do processo, foi reordenado o sigilo dos documentos que instruíram o pedido inicial de busca e apreensão. Ou seja, o TRF reordenou a manutenção do sigilo do Acordo de Leniência e do Histórico da Conduta para resguardar as atividades de investigação do Cade, alterando o entendimento do juiz de primeira instância sobre a excepcionalidade de se divulgar tais materiais.[220]
Por sua vez, no caso conhecido como cartel dos compressores (ii), cuja investigação também foi iniciada a partir da celebração de Acordo de Leniência, uma empresa prejudicada demandou acesso aos documentos da investigação do Cade. O juiz de primeira instância da 33ª Vara Cível do Foro Central Cível de São Paulo determinou inicialmente o envio de “cópias de todos os documentos integrantes do processo administrativo (...) inclusive aqueles não disponíveis publicamente na fase de investigação, para fins essenciais de instrução da presente demanda”.[221] Tal solicitação, contudo, englobava documentos sigilosos oriundos de Acordo de Leniência.
Na segunda instância, a empresa prejudicada pela conduta anticompetitiva interpôs agravo de instrumento contra decisão do juiz que indeferiu a expedição de ofícios ao Cade para a remessa de documentos constantes do Processo Administrativo. O Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento a esse recurso, determinando a expedição de tais ofícios. Então, a partir dessa decisão, as empresas citadas no Processo Administrativo interpuseram recurso especial para o STJ[222], recurso esse que não foi provido. Nesse momento, a Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade (ProCade) opôs embargos de declaração, com fundamento nas leis que conferem tratamento confidencial ao material de leniência, bem como na necessidade de preservação da política de combate a cartéis por meio da proteção ao Programa de Leniência do Cade.
Em 09 de junho de 2015, o Ministro-Relator reformou a decisão anterior adotando as razões mencionadas pela ProCade quanto à necessidade de proteção da confidencialidade das informações e documentos provenientes de Acordo de Leniência e TCC.
Todavia, em 11 de março de 2016, apenas cinco dias antes do julgamento final do caso pelo Plenário do Tribunal do Cade, o STJ alterou seu entendimento no julgamento final da cautelar pela 3ª Turma de Direito Privado. O Ministro-Relator, no bojo da ARDC, limitou o entendimento sobre a extensão do sigilo que resguarda os acordos de leniência vis-à-vis às pretensões privadas de responsabilização civil por danos concorrenciais. Ao julgar o Recurso Especial[223], o Ministro-Relator confirmou que se assegura o sigilo das propostas de leniência, bem como a possibilidade de extensão desse sigilo no interesse das apurações ou em relação a documentos específicos.[224] No entanto, manifestou-se no sentido de que o sigilo não poderia se estender indefinidamente no tempo, sendo que “o envio do relatório circunstanciado pela Superintendência-Geral ao Presidente do Tribunal Administrativo”, marcaria, na opinião do Ministro, o fim da fase de apuração da conduta, e, consequentemente, o termo final do sigilo.[225]
A ProCade, por entender que a decisão do STJ diverge do entendimento do Cade acerca do tema, opôs Embargo de Declaração, ainda pendente de análise pelo Ministro-Relator. Em sede de embargos, a ProCade argumentou omissão do acordão por não considerar que a lei confere ao Tribunal do Cade poder para requerer diligências de caráter investigatório[226], e que ao Cade é a dada a competência legal para regular o termo final do sigilo. Há, portanto, fundamento legal para o art. 207 do Ricade[227], que prevê a manutenção da confidencialidade dos documentos e informações oriundos de Acordo de Leniência até o julgamento final pelo Plenário do Tribunal do Cade. Ainda, a decisão embargada teria sido omissa por não considerar os termos da Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei nº 12.527, de 2011), a qual garante o sigilo das informações que possam representar vantagem competitiva a outros agentes e que possam comprometer atividades de investigação em andamento.[228] Por fim, a ProCade também argumentou omissão em face da ausência de contornos jurídicos sobre quais documentos deveriam ser entregues, a quem seria conferido o acesso a tais documentos e com que finalidade.
O esforço da ProCade reflete a preocupação em se proteger os Programas de Leniência e de TCC do Cade. Favorecer o enforcement privado (tal como feito pela decisão do STJ) sem, em contrapartida, regular as regras de acesso e limitar a responsabilidade civil do signatário da leniência, pode prejudicar o enforcement público. E o desincentivo aos Programas de Leniência, pela via reflexa, também prejudica o enforcement privado, ainda incipiente no Brasil. Se há perda de atratividade do Programa de Leniência, que é uma das principais ferramentas do Cade para desvendar cartéis, menos cartéis tendem a ser descobertos e, assim, menos ARDC passam a ter a chance de serem ajuizadas (com consequente ressarcimento das partes lesadas).
Ademais, corre-se o risco de o Brasil se tornar o tortuoso canal de obtenção indevida de documentos e informações por estrangeiros. Na hipótese de um cartel internacional que tenha resultado na celebração de Acordo de Leniência no Brasil, por exemplo, as partes que não obtiverem acesso aos documentos e informações considerados necessários para o ajuizamento das ARDC em seus respectivos países poderão se utilizar indevidamente do Brasil para obter tal acesso, colocando em risco o Programa de Leniência brasileiro no contexto internacional do combate a condutas anticompetitivas.
3.2 EXTENSÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NAS ARDC NO BRASIL
A regra geral do artigo 927 do Código Civil define que há obrigação de reparação civil por todo dano causado por ato ilícito.[229] Assim, sendo cartel um ato ilícito, há o dever de reparar. O direito à reparação de danos, por sua vez, inclui danos patrimoniais[230] e danos morais[231]. O Programa de Leniência do Cade[232], tal qual na maior parte das jurisdições, não concede imunidade ao beneficiário do Acordo de Leniência quanto aos danos civis concorrenciais decorrentes da prática de cartel[233]. A lei brasileira também não limita a responsabilidade civil do beneficiário de leniência, embora, por outro lado, não exija o ressarcimento dos danos como condição sine qua non para a assinatura de um Acordo de Leniência com a Superintendência-Geral do Cade[234]. O mesmo se aplica ao compromissário no âmbito do TCC[235], que não tem a obrigação de indenizar as partes prejudicadas e tampouco recebe benefícios em termos de imunidade e/ou limitação da responsabilidade nas ações privadas de ressarcimento.
Essa reparação civil no Brasil é regida pelos arts. 275[236] e 942[237] do Código Civil e pelo art. 7º, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor (CDC)[238], que determina a responsabilidade solidária entre os coautores pelo ato ilícito. Aplicando ao ambiente antitruste, cada participante do cartel, inclusive o signatário do Acordo de Leniência ou o compromissário do TCC, poderia, em tese, ser demandando no âmbito de uma ARDC pela totalidade dos danos causados pelo cartel, ressalvado o direito de regresso.[239] E existe ainda a possibilidade de cobrança duplicada de danos, nos termos do CDC. Essa hipótese, não pacificada na doutrina nem nos tribunais, seria aplicável aos casos em que se entenda que o pagamento de preços de cartel, supra competitivos, constitui cobrança indevida[240] (conceito análogo ao treble damages norte-americano).
Ocorre que tais cenários não se coadunam com o fomento das ARDC. Sem limitar a responsabilidade do signatário da leniência, prejudica-se o public enforcement, já que o impacto financeiro decorrente do ajuizamento de tais ações, tanto em nível nacional quanto internacional, pode reduzir a atratividade do Programa de Leniência do Brasil.
3.3 PRESCRIÇÃO DAS ARDC NO BRASIL
De acordo com os arts. 189[241] e 206, §3º, V[242] do Código Civil, o prazo prescricional para ajuizamento das ações de reparação civil é de três anos. Há, contudo, divergências interpretativas em relação ao termo inicial da contagem do prazo prescricional, ou seja, quando se tem início o prazo para que o detentor do direito violado busque a reparação do dano.[243]
Adotando uma interpretação literal e considerando o termo inicial como o momento da lesão do direito, o prazo prescricional pode ser desarrazoadamente pequeno, principalmente em face de cartéis que se alongam por extensos períodos de tempo e são de difícil detecção. Há quem aponte ser adequado considerar o termo inicial da prescrição o momento da ciência inequívoca do ilícito, em se tratando de responsabilidade extracontratual, ou o momento da sentença definitiva do juiz criminal, na hipótese de envolver crime a ser investigado naquele âmbito, como ocorre com cartéis.[244] Na primeira hipótese, o prazo prescricional só começaria a contar após o julgamento final do caso pelo Tribunal do Cade, e, na segunda, após o desfecho da ação penal, o que garantiria aos consumidores lesados maiores chances de reclamar eventuais danos concorrenciais. Essa indefinição, porém, acaba por desestimular o ajuizamento de ARDC.
Ressalte-se que as ARDC no Brasil podem ser ajuizadas independentemente de haver ou não investigação em curso no Cade.[245] Todavia, a lei não estabelece que a decisão final da agência antitruste servirá de evidência prima facie da conduta e do dano.
Dado que as ARDC representam uma das grandes preocupações do proponente quando avalia a decisão de participar ou não de um Programa de Leniência ou de TCC[246], há que se encontrar a adequada medida entre as persecuções pública e privada a condutas anticompetitivas no Brasil. Para tanto, a seguir serão propostas diretrizes para que o Cade se posicione institucionalmente sobre o tema e auxilie o Judiciário, Ministério Público, advogados e a sociedade em geral em sede de ARDC. As propostas estão divididas em três frentes de atuação, a depender do modo de endereçamento:
4.1 PROPOSTAS REGULAMENTARES: ACESSO A DOCUMENTOS E INFORMAÇÕES ORIUNDOS DE ACORDOS DE LENIÊNCIA E TCC
Propõe-se que o Cade, por meio de Resolução própria, regulamente o tema do acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência e TCC. Algumas das previsões dessa Resolução, contudo, são direcionadas aos próprios signatários de Acordos de Leniência, compromissários de TCC, juízes, promotores, procuradores e advogados, o que significa que esse instrumento trará reflexos para os acordos e para as políticas de advocacy.
Em consonância com as melhores práticas internacionais, adstritos à realidade e à legislação brasileira, propõe-se a definição de três fases processuais no Cade, com relação às quais se terá contornos diferentes a respeito do acesso a documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência e de TCC. Visualmente, as fases estão apresentadas da seguinte maneira:
4.1.1 Fase de negociação e celebração dos acordos
Durante a fase de negociação e celebração dos acordos[247] com a Superintendência-Geral e com o Tribunal do Cade, há previsão na Lei nº 12.529/2011 e no Ricade sobre o sigilo da proposta de Acordo de Leniência, de seus anexos e de quaisquer documentos apresentados pelo signatário do Acordo.[248] Similarmente, também há previsão legal e regimental que assegura o caráter confidencial da proposta de TCC, dos termos desse acordo, seu andamento processual e processo de negociação.[249]
Nesse sentido, tanto o Guia do Programa de Leniência quanto o Guia de TCC[250] destacam que o Cade não divulgará as informações e os documentos recebidos durante a fase de negociação de acordos, ficando seu acesso restrito aos proponentes, aos advogados e aos servidores do Cade que participarem do processo de negociação. Logo, é vedada também a divulgação ou o compartilhamento dos materiais de leniência[251] e de TCC com outras pessoas físicas, jurídicas ou entes de outras jurisdições, sob pena das sanções administrativas e penais cabíveis.
Essa proteção dos acordos na fase de negociação e celebração faz parte de toda a lógica prevista na Lei nº 12.529, de 2011, tendo em vista que, em caso de rejeição ou desistência da proposta de leniência ou de TCC, todas as informações e documentos recebidos pelo Cade devem ser devolvidos ao proponente, restando sob sigilo todas as informações prestadas.[252] Assim, eventual divulgação de material de leniência ou de TCC anteriormente à assinatura do acordo, além de ilegal, estaria prejudicada caso houvesse rejeição ou desistência da proposta.
Além disso, vale ressaltar que o tratamento sigiloso e confidencial conferido a essa fase está em consonância com as melhores práticas internacionais. A manutenção do sigilo é da própria essência da fase de negociações, e sua ausência pode frustrar, preliminarmente, a tentativa de cooperação entre o signatário/compromissário e a autoridade de defesa da concorrência.
4.1.2 Fase de instrução
4.1.2.1 Pela Superintendência-Geral do Cade
Uma vez celebrado o Acordo de Leniência, inicia-se a fase de investigação da conduta anticompetitiva, período de instrução do procedimento investigativo pela SG/Cade[253] que pode ocorrer via Procedimento Preparatório de Inquérito Administrativo (PPIA), Inquérito Administrativo (IA) e/ou Processo Administrativo (PA).[254] No caso de Procedimento Preparatório ou Inquérito Administrativo, as investigações podem ser sigilosas, de modo que sequer os investigados têm conhecimento de que constam nessa posição. Durante essa fase, todo o material do Acordo de Leniência (Acordo de Leniência assinado, aditivos celebrados, Histórico da Conduta, apêndice de prova documental e demais anexos) é mantido em sigilo, justamente para preservar possíveis medidas investigativas, tais como uma eventual busca e apreensão.
Por sua vez, quando da instauração do Processo Administrativo, deve ser sempre disponibilizada uma versão pública de Nota Técnica, na qual o nome das pessoas jurídicas e físicas participantes da conduta anticompetitiva deve ser mencionado. Nessa Nota Técnica pública deverá constar a identificação do mercado investigado, o período provável da conduta, as empresas envolvidas e, quando possível, os clientes potencialmente afetados. Via de regra, o signatário do Acordo de Leniência não deverá ser identificado como tal na Nota Técnica de instauração do Processo Administrativo para garantir o sigilo de sua identidade ao longo da instrução processual. Durante esse período, eventual celebração de TCC é pública, sendo a identidade do compromissário publicizada quando da homologação do acordo pelo Plenário do Tribunal.
De todo modo, os documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência (Acordo de Leniência assinado, aditivos celebrados, Histórico da Conduta, apêndice de prova documental e demais anexos) e de TCC (Termo de Compromisso Confidencial, aditivos, Histórico da Conduta, apêndice de prova documental e demais anexos)[255] deverão ser mantidos em apartado de acesso restrito, conforme os art. 44, §2º e 49 da Lei nº 12.529, de 2011, arts. 52, 53 e 54 do Regimento Interno do Cade, arts. 22 e 23, VIII da Lei nº 12.527, de 2011, e art. 5º, §2º do Decreto nº 7.724, de 2012.
O art. 44, §2º da Lei nº 12.529, de 2011, dispõe que regulamento definirá o procedimento para que uma informação seja tida como sigilosa no âmbito do Cade. Já o art. 49 prevê a possibilidade de se assegurar sigilo de documentos, informações e atos processuais necessários à elucidação dos fatos ou exigidos pelo interesse da sociedade. No Ricade, as hipóteses de sigilo e acesso restrito estão previstas nos arts. 52 a 54. E de acordo com a LAI (art. 23, VIII da Lei nº 12.527/2011 e Decreto nº 7.724/2012), há que se garantir a confidencialidade das atividades de inteligência, das informações que possam representar vantagem competitiva, bem como de investigações em andamento relacionadas à repressão de infrações, o que se adequa à fase investigativa conduzida pela SG/Cade.
No que diz respeito aos documentos e informações oriundos de busca e apreensão, esses também deverão ser mantidos em apartado de acesso restrito, conforme os termos da decisão judicial que deferiu sua realização, e conforme critério de conveniência e oportunidade.
O apartado de acesso restrito ficará acessível aos representados no respectivo Processo Administrativo, e tal acesso deverá ser concedido estritamente para fins do exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa[256], sendo vedada sua utilização em outras esferas e/ou sua divulgação ou compartilhamento com terceiros, no Brasil ou no exterior[257].
Entende-se que a proteção conferida às informações e aos documentos na fase de investigação da conduta anticompetitiva está em consonância com as melhores práticas internacionais. No caso dos Estados Unidos (2.1.), os tribunais, em regra, não têm acesso às informações e documentos obtidos no âmbito de um Acordo de Leniência e plea agreements se a investigação criminal conduzida pelo DOJ ainda estiver em curso. Na fase inicial do processo, na qual o DOJ busca elementos probatórios suficientes para, posteriormente, requerer a condenação criminal do autor do cartel no Judiciário, há o dever de sigilo estrito (secrecy) no âmbito do grand jury. Aplicam-se também as regras de confidencialidade previstas no FOIA acerca do sigilo do informante e do sigilo investigativo. Ainda, para fazer valer a proteção dos materiais de leniência até que o DOJ encerre suas investigações, essa agência federal pode fazer uso do instrumento chamado discovery stay, consistente em pedido de suspensão do acesso às informações e documentos até que se conclua os procedimentos investigativos. Por se tratar apenas de postergar o momento em que os autores da ação civil terão acesso aos documentos, os tribunais tendem a acatar os pedidos de stay do DOJ e determinar o acesso aos materiais de leniência apenas quando encerradas as investigações.
Também a Diretiva 2014 da União Europeia (2.2.) estabelece que apenas após a decisão final da autoridade concorrencial será dado acesso a uma determinada categoria de documentos (“grey list”), que são divulgáveis, apenas mediante ordem judicial, após a autoridade competente ter proferido decisão final sobre o caso. Consistem em documentos preparados no âmbito das investigações, tais como respostas aos pedidos de informação, statements of objections e análises preliminares. Por sua vez, a autoridade antitruste holandesa (2.5.) opõe resistência ao pedido de fornecimento de provas colhidas durante seu processo investigatório, especialmente se o caso envolver Acordo de Leniência, de modo a preservar a efetividade das suas investigações. Na Austrália, a ACCC (2.6.) pode alegar violação ao interesse público, dentre outros argumentos, para afastar ordem judicial de acesso a materiais de leniência a qualquer tempo. O Competition Bureau do Canadá (2.7.) também tradicionalmente se opõe a divulgar quaisquer documentos de leniência enquanto houver investigação em curso. Por fim, a autoridade de defesa da concorrência na Suécia apenas concede acesso no âmbito da ação privada de ressarcimento uma vez encerradas as investigações da autoridade, sujeito, ainda, a regras de confidencialidade específicas.
4.1.2.2. Pelo Tribunal do Cade
Uma vez publicada a Nota Técnica final da Superintendência-Geral do Cade, na qual é emitida posição final acerca do Processo Administrativo, o caso é remetido para decisão pelo Tribunal do Cade.
A Nota Técnica final da SG/Cade tem caráter opinativo e não vinculante. Se a Superintendência entender pela existência de infração à ordem econômica, opinará pela condenação das empresas e/ou pessoas físicas no Processo Administrativo, que contará com um conjunto probatório robusto a fim de aferir a participação de cada um na conduta anticompetitiva. O Conselheiro-Relator, por sua vez, ainda pode requisitar informações, documentos e diligências, solicitar a produção de provas, determinar a elaboração de pareceres, etc. (cf. art. 11 da Lei nº 12.529, de 2011), consubstanciando atividade de instrução a fim de formar o seu entendimento a respeito da conduta anticompetitiva sob investigação. Assim, diante da possibilidade de realização de instrução complementar pelo Conselheiro-Relator, ainda há investigação em curso quando o Processo Administrativo se encontra pendente de julgamento pelo Tribunal do Cade, de modo a exigir as mesmas cautelas em termos de sigilo da fase anterior. Essa cautela se justifica, portanto, nos arts. 11, 44, §2º e 49 da Lei nº 12.529, de 2011, arts. 52 a 54 do Regimento Interno do Cade, arts. 22 e 23, VIII da Lei nº 12.527, de 2011, e art. 5º, §2º do Decreto nº 7.724, de 2012.
Também se justifica a manutenção da confidencialidade nessa fase ante a possibilidade de que, concomitantemente ao Processo Administrativo original encaminhado ao Tribunal do Cade, ainda estejam em instrução na Superintendência-Geral outros processos administrativos subsequentes (i.e., os processos “filhotes”, tais como aqueles instaurados para investigar pessoas físicas estrangeiras de difícil notificação internacional). Logo, permitir a divulgação dessas informações antes do julgamento final pelo Plenário do Cade pode prejudicar as investigações conexas que se encontram em curso na Superintendência-Geral.
Vale notar, a nosso ver, que a entrega do relatório circunstanciado pela SG/Cade ao Tribunal não pode ser comparada ao oferecimento de denúncia na seara criminal, tal como sugerido pela decisão do STJ no caso anteriormente mencionado do “cartel dos compressores”. Na referida decisão, foi traçado um paralelo entre a colaboração premiada e o término do sigilo dos documentos, a exemplo do que ocorre no âmbito da Lei nº 12.850, de 2013. Data venia, não se pode comparar o Cade, órgão da Administração Pública Federal, com entidades com personalidade jurídica própria, como é o caso do Ministério Público. Parece-nos mais apropriado comparar a denúncia com o julgamento do Tribunal administrativo, por representar, tal como no Ministério Público, a palavra final da Autarquia sobre a existência ou não do ilícito, a qual ainda será analisada em controle posterior pelo Poder Judiciário.
Além disso, considerando que, atualmente, o tempo médio no qual um Processo Administrativo permanece pendente para julgamento no Tribunal do Cade é de 1 (um) ano e meio entre a distribuição ao Conselheiro-Relator e o julgamento pelo Plenário, suspender o acesso a documentos ainda durante essa fase é uma cautela proporcional, cujo objetivo é resguardar a atratividade dos programas de Leniência e de TCC no Brasil.
Aqui também, a exemplo do que ocorre nas fases anteriores, a proteção conferida aos documentos e informações está em consonância com as melhores práticas internacionais, já que ainda há investigação em curso e não há decisão final sobre a participação ou não de todas as empresas e/ou pessoas físicas investigadas, o que permite a não exposição antecipada daqueles que colaboraram com a autoridade antitruste.[258]
4.1.3. Decisão final pelo Plenário do Tribunal do Cade
Finalmente, a fase após o julgamento do caso pelo Plenário do Tribunal do Cade consiste no período que se segue ao pronunciamento do voto pelo Conselheiro-Relator e a publicação da decisão no Diário Oficial da União. Tal como visto pelos julgamentos mais recentes do Cade, propõe-se que seja disponibilizado, nos autos públicos do processo, o voto do Conselheiro-Relator e os demais votos-vogais, se houver. Tal(is) voto(s) conterá(ão) o detalhamento da conduta anticompetitiva sob julgamento e a transcrição de documentos e informações considerados relevantes para a formação do entendimento sobre a conduta julgada, ainda que tais documentos e informações sejam oriundos de Acordo de Leniência, TCC e busca e apreensão. Em regra, é nesse momento que é tornada pública a identidade dos signatários do Acordo de Leniência (art. 207, Ricade).
Novamente, ressalte-se o alinhamento dessa conduta com as melhores práticas internacionais. Conforme definido pela Diretiva de 2014 da Comissão Europeia (2.2.), apenas após a autoridade da concorrência ter proferido decisão final sobre o caso proveniente de leniência é que os documentos preparados no âmbito da investigação poderão ser requeridos por meio de ordem judicial para utilização em ações civis (“grey list”). E isso porque, antes da decisão final da autoridade de defesa da concorrência competente, a requisição de acesso pelo Poder Judiciário pode acabar prejudicando o enforcement público. Proteção semelhante se verifica em diversas jurisdições, tais como Holanda (2.5.), Austrália (2.6.), Canadá (2.7.), e Suécia, nas quais os materiais da leniência não são, em regra, divulgados para embasar ações civis antes do julgamento do caso pela autoridade antitruste.
Superada a questão do momento em que o acesso será conferido (i.e., o “quando”), resta delimitar o conteúdo e as partes a quem tal acesso será disponibilizado (i.e., “o que” e “a quem”). Como a experiência do Tribunal do Cade é recente no julgamento de processos administrativos envolvendo Acordos de Leniência, propõe-se a criação de pelo menos dois apartados de acesso restrito para disciplinar o acesso subsequente à decisão final aos documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência, TCC e buscas e apreensões.[259]
Propõe-se que o primeiro apartado contenha documentos e informações que poderão ser disponibilizados aos autores de ações de reparação, para uso exclusivo no âmbito de tais ações, mediante expressa determinação legal, decisão judicial específica, autorização do signatário do Acordo de Leniência ou do compromissário do TCC (com a anuência do Cade), ou cooperação jurídica internacional. Os documentos a serem inseridos neste apartado de acesso restrito são: I – a íntegra dos documentos e informações que foram citados nos votos dos Conselheiros para formação do entendimento do Plenário, ainda que tais documentos e informações sejam oriundos de Acordo de Leniência, TCC e busca e apreensão; e/ou II – a íntegra dos demais documentos e informações que evidenciem a conduta anticompetitiva e nos quais partes potencialmente lesadas pela conduta sejam citadas, ainda que tais documentos e informações sejam oriundos de Acordos de Leniência, TCC e buscas e apreensões.
Por sua vez, propõe-se que o segundo apartado contenha documentos e informações que não poderão ser disponibilizados, pois põem em risco a condução de negociações (art. 23, II da Lei nº 12.527, de 2011), as atividades de inteligência (arts. 23, VIII da Lei nº 12.527, de 2011) e a efetividade dos Programas de Leniência e de TCC do Cade. Os documentos a serem inseridos neste apartado de acesso restrito são: I – o Histórico da Conduta e seus aditivos, elaborados pela Superintendência-Geral do Cade com base em documentos e informações de caráter auto-incriminatório submetidos voluntariamente no âmbito da negociação de Acordo de Leniência e TCC, que não poderiam ter sido obtidos de qualquer outro modo senão por meio da colaboração no âmbito dos Programas de Leniência e de TCC; e/ou II – os documentos e informações: a) que se enquadrem nas restrições previstas nos arts. 44, §2º, 49, 85, §5º e 86, §9º da Lei nº 12.529, de 2011; b) que constituam segredo industrial (art. 22 da Lei nº 12.527/2011); c) relativos à atividade empresarial de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado cuja divulgação possa representar vantagem competitiva a outros agentes econômicos (art. 5º, §2º do Decreto nº 7.724/2012); d) que constituam hipóteses de sigilo previstas na legislação, como fiscal, bancário, de operações e serviços no mercado de capitais, comercial, profissional, industrial e segredo de justiça (art. 6º, inciso I do Decreto nº 7.724/2012); e) que constituam hipóteses previstas nos arts. 52, 53 e 54 do Regimento Interno do Cade.
A manutenção da confidencialidade dos documentos e informações desse segundo apartado estão em linha com a experiência internacional. A Diretiva 2014 da União Europeia, no item 26 das considerações iniciais, menciona que excluir as declarações de leniência e demais propostas de acordo de caráter voluntário e auto-incriminatório dos elementos de prova objetiva visa a assegurar que as empresas continuem dispostas a apresentar voluntariamente às autoridades da concorrência declarações de leniência ou propostas de acordo. Tal entendimento também se coaduna com a experiência da Alemanha, já que o Bundeskartellamt, ao ser solicitado para disponibilizar informações e documentos oriundos de leniência para embasar ações civis de ressarcimento, tradicionalmente, disponibiliza apenas: (i) cópia da versão pública da decisão final (a autoridade da concorrência alemã normalmente não publica suas decisões); e (ii) lista de evidências disponíveis à autoridade da concorrência. O Bundeskartellamt, em regra, não confere acesso aos documentos de leniência.
Por fim, quanto ao destinatário do acesso (i.e., “a quem”), propõe-se que os documentos do primeiro apartado sejam acessíveis apenas ao autor da ação privada de ressarcimento por danos concorrenciais a quem o Judiciário deferiu o pedido de acesso. Essa parte não poderá repassar esses documentos a terceiros ou utilizá-los para outros fins, especialmente para outras jurisdições, sob pena de descumprimento da ordem judicial. Isso porque, se as partes que tiverem acesso aos documentos confidenciais não tiverem a obrigação de sigilo estrito e puderem repassar tais documentos a terceiros, o Brasil se tornará o canal de acesso a documentos de Acordos de Leniência e TCC no âmbito de ações de reparação de danos concorrenciais no restante do mundo, em sério prejuízo à atratividade do Programa de Leniência e de TCC do Cade. Vale notar que, nos Estados Unidos (2.1.), as partes podem inclusive ajuizar pedido de proteção das evidências de modo a restringir quem pode ter acesso às informações e documentos prestados (“protective order”). Por exemplo, no caso da Air Cargo (2010)[260], os autores da ARDC foram proibidos de compartilhar os materiais de leniência com terceiros.
Ademais, propõe-se que o Cade sinalize, em termos de advocacy, que na análise do caso concreto, o juiz cível deverá se nortear por uma série de fatores, tais como: I – a legitimidade do requerente; II – os fatos e fundamentos específicos que embasam o requerimento; III – a razoabilidade e a proporcionalidade do requerimento; IV – a fase processual da investigação no Cade; V – a manutenção do nível de confidencialidade pelo requerente; VI – a necessidade de preservação da investigação e da identidade do colaborador; VII – a necessidade de preservação da política nacional de combate às infrações contra a ordem econômica, notadamente dos Programas de Leniência e de TCC do Cade; VIII – a necessidade de preservação da participação do Brasil em programas internacionais de combate às infrações contra a ordem econômica; e IX – a existência de informações protegidas por segredo de empresa, segredo de justiça ou qualquer outro tipo de informação confidencial.
Tais fatores estão em consonância com a experiência da ACCC na Austrália (2.6.)[261], onde a autoridade antitruste pode negar o pedido de acesso a materiais de leniência ponderando elementos como: (i) o caráter confidencial da forma como a informação foi fornecida; (ii) a relação com outros países; (iii) a necessidade de se evitar prejuízos à política nacional e internacional de combate a cartéis; (iv) a proteção do informante; (v) o risco da divulgação prejudicar o programa de leniência no futuro; e (vi) a razoabilidade e os legítimos interesses do requerente da informação.
Ainda, segundo os critérios estabelecidos pelo art. 5º da Diretiva 2014 da União Europeia (2.2.), ao avaliarem um pedido de acesso a materiais de prova, os tribunais devem dispor de medidas eficazes para proteger as informações confidenciais e devem levar em conta, por exemplo: (i) a medida em que o pedido de indenização é fundamentado em fatos e elementos de prova que justificam o pedido de divulgação desses mesmos elementos; (ii) o âmbito e os custos da divulgação, em especial para os terceiros interessados; (iii) se os elementos de prova cuja divulgação é requerida contêm informações confidenciais, em especial no que respeita a terceiros, e quais os procedimentos adotados para proteger tais informações confidenciais.
4.1.4 Outras propostas regulamentares
Uma vez proposto o posicionamento institucional do Cade com relação ao acesso a documentos de leniência e TCC, são apresentadas três propostas adicionais, em termos de procedimento, com o objetivo de garantir efetividade na implementação, pela Superintendência-Geral, pelo Tribunal e pela ProCade, das diretrizes estabelecidas.
A primeira proposta adicional é de que o Cade seja informado sobre quaisquer ARDC que envolvam casos de violações antitruste, em especial quando estiverem relacionadas a Acordo de Leniência e/ou TCC celebrados. Essa obrigação deverá constar tanto da Resolução XX quanto de uma cláusula no próprio Acordo celebrado. Nesses casos, a ProCade deverá envidar seus melhores esforços para garantir junto à autoridade judicial competente que a análise do pedido de acesso pondere os fatores acima mencionados.
Nesse contexto, a ProCade poderá requerer, caso necessário, a suspensão da ação de reparação por danos concorrenciais até que se conclua o julgamento do Processo Administrativo pelo Plenário do Tribunal do Cade.[262] Desse modo, uma vez julgado o Processo Administrativo no Cade, cessaria a causa de suspensão da ação e a parte autora teria acesso aos documentos e informações necessários para subsidiar sua pretensão. Tal pedido de suspensão seria feito à semelhança do “discovery stay”[263] norte-americano (2.1.), consistente em recurso processual tradicionalmente utilizado pelo DOJ para garantir que a integridade das investigações das práticas de cartel não seja prejudicada pelas ARDC.
Uma segunda proposta adicional é no sentido de que o voto do Conselheiro-Relator e demais votos-vogais incluam, quando possível e razoável, uma seção específica voltada às ARDC, a qual sumarizará as informações relativas: (i) ao período de duração da conduta; (ii) aos consumidores potencialmente atingidos pela conduta; e (iii) à estimativa dos danos causados. Sabe-se que existem grandes discussões acadêmicas em torno desse tema, em especial em relação ao item (iii), mas entendemos que a menção expressa a esses pontos pode fomentar ainda mais o ajuizamento das ARDC, sem prejuízo para os Programas de Leniência e de TCC, caso sejam aplicadas as demais medidas regulamentares e legislativas propostas.
Por fim, a terceira proposta adicional consiste em fomentar a reparação voluntária de danos concorrenciais por meio da possibilidade de redução da contribuição pecuniária ou da multa administrativa aplicada aos participantes da infração concorrencial que comprovarem o ressarcimento extrajudicial no âmbito das ações de reparação por danos concorrenciais, considerada nos termos do art. 45 da Lei 12.529, de 2011.
Alternativas semelhantes foram adotadas, por exemplo, na União Europeia, no Reino Unido e na Alemanha. A Diretiva de 2014 da União Europeia (2.2.) estabelece que a autoridade de concorrência pode considerar os danos pagos decorrentes de acordo como um fator de mitigação antes de proferir decisão final de imposição de multa. No Reino Unido (2.3.), a nova Lei dos Direitos do Consumidor de 2015 estabeleceu o mecanismo da reparação voluntária para facilitar o ressarcimento de danos concorrenciais (denominado “voluntary redress scheme”[264]. Trata-se de um plano de reparação de danos civis sem que os consumidores lesados tenham que acionar o Judiciário, de modo que o participante do cartel que colaborar no âmbito da mediação terá reduzido o valor da multa imposta como forma de retribuir a parte disposta a indenizar os consumidores lesados. Por sua vez, na Alemanha[265] (2.4.), há sugestão jurisprudencial para a adoção de um procedimento bifásico, que divide a decisão do Bundeskartellamt em dois momentos: (i) uma decisão preliminar declaratória, que é seguida de um período designado para facilitar a celebração de acordos com consumidores lesados; e (ii) a decisão final, que considera tais acordos como um “bônus” no cálculo da multa administrativa final (desconto de 15%). Tal procedimento visa a diminuir os custos do litígio no Judiciário e a assimetria de informações enfrentada pelos consumidores lesados, e a favorecer o beneficiário da leniência na medida de sua cooperação.
No Brasil, a colaboração do signatário e/ou compromissário traria benefícios inegáveis para os consumidores lesados, endereçando as questões de custos de litígio, morosidade do Judiciário e assimetria de informação. Em relação à situação dos participantes do cartel, sua colaboração refletiria na atenuação de sua responsabilidade administrativa e, eventualmente, também civil. Preferencialmente, tal colaboração deverá ser realizada e constatada antes da decisão final do Plenário do Cade acerca do Processo Administrativo em trâmite. Do ponto de vista do Programa de Leniência como um todo, a colaboração seria benéfica na medida em que tornaria os materiais de Acordos de Leniência e TCC menos valiosos aos olhos dos consumidores lesados, uma vez que transformaria a celebração de acordos consensuais antecipados em procedimento comum.
O consolidado das propostas a serem endereçadas por meio regulamentar encontra-se visualmente apresentado no quadro abaixo.
4.2 PROPOSTAS LEGISLATIVAS: ASPECTOS CÍVEIS DAS ARDC
O Programa de Leniência no Brasil, à semelhança da maioria das jurisdições estrangeiras, confere imunidade administrativa e penal aos seus signatários[266], não excluindo, contudo, a responsabilidade civil. Desse modo, em consonância com o art. 47 da Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529, de 2011)[267], que prevê as ARDC no Brasil[268], entende-se necessária a promoção de alterações legislativas com vistas à compatibilização e devida articulação entre as persecuções pública e privada a condutas anticompetitivas no País. Estas propostas concentram-se, basicamente, em aspectos relacionados à extensão da responsabilidade civil (4.2.1.) e ao prazo prescricional (4.2.2.).
4.2.1 Sobre a extensão da responsabilidade do signatário do Acordo de Leniência nas ARDC
Nos Estados Unidos (2.1.), tal como observado anteriormente, a Lei de Aprimoramento e Reforma das Sanções Penais Antitrustes objetivou manter a atratividade do Programa de Leniência do DOJ ao prever a possibilidade de o signatário do Acordo de Leniência cooperar com os autores de ações indenizatórias em troca da limitação de sua responsabilidade civil.[269] Havendo cooperação satisfatória, o signatário do Acordo de Leniência não arcará com danos triplicados (de-trebling) e nem responderá solidariamente pelos danos causados pelo cartel, mas tão somente pelos danos que causou e em relação a seus próprios clientes.
Na União Europeia (2.2.), similarmente, embora a responsabilidade solidária seja a regra, a Diretiva de 2014 também previu tratamento mais favorável ao signatário do Acordo de Leniência. Segundo o artigo 11(4)[270], os beneficiários da leniência serão responsáveis apenas perante: (i) os seus adquirentes ou fornecedores diretos ou indiretos; e (ii) outros consumidores lesados na situação em que a reparação integral não puder ser obtida das outras empresas implicadas na mesma infração. Ademais, o art. 18(3) estabelece que a autoridade pode considerar os danos pagos decorrentes de acordo cível como um fator de mitigação antes de proferir decisão final de imposição de multa. Vale destacar que o incentivo à reparação voluntária no âmbito civil é usado pela Comissão Europeia como uma ferramenta para harmonizar o enforcement público e o privado, na medida em que facilita a reparação civil e agiliza o processo administrativo.
Por sua vez, Reino Unido e Alemanha apresentam iniciativas inovadoras para endereçar o potencial conflito de incentivos enfrentado pelo beneficiário do Acordo de Leniência que, ao confessar o ilícito, acaba se expondo às ações civis de ressarcimento. No Reino Unido (2.3.), a nova Lei dos Direitos do Consumidor, de 2015, estabeleceu o mecanismo da reparação voluntária para facilitar o ressarcimento de danos concorrenciais (denominado “voluntary redress scheme”)[271]. Trata-se de um plano de reparação de danos civis que dispensa os consumidores lesados de acionar o Judiciário, de modo que o participante do cartel que colaborar no âmbito da mediação terá reduzido o valor da multa imposta como forma de retribuir a parte disposta a indenizar os consumidores lesados. Já na Alemanha (2.4.)[272], há sugestão jurisprudencial para a adoção de um procedimento bifásico, que divide a decisão do Bundeskartellamt em dois momentos: (i) uma decisão preliminar declaratória, que é seguida de um período designado para facilitar a celebração de acordos com consumidores lesados; e (ii) a decisão final, que considera tais acordos como um “bônus” no cálculo da multa administrativa final (desconto de 15%). Tal procedimento visa a diminuir os custos do litígio no Judiciário e a assimetria de informações enfrentada pelos consumidores lesados, e a favorecer o beneficiário da leniência na medida de sua cooperação.
Na Hungria[273], a autoridade da concorrência confere imunidade civil ao signatário do Acordo de Leniência desde que os demais participantes da conduta anticompetitiva possam responder integralmente à pretensão indenizatória dos consumidores lesados no âmbito da ARDC.
Atualmente, no Brasil, a regra geral prevista nos arts. 275[274] e 942[275] do Código Civil e no art. 7º, parágrafo único do CDC[276] é a da responsabilidade solidária entre os coautores pelo ato ilícito. Aplicado ao cenário antitruste, cada participante do cartel (inclusive o signatário de um Acordo de Leniência ou o compromissário de um TCC) poderia, em tese, ser demandando no âmbito de uma ARDC pela totalidade dos danos causados pelo conluio, ressalvado o direito de regresso.[277] Ocorre, contudo, que esse cenário não se coaduna com o fomento às ARDC. Sem limitar a responsabilidade do signatário da leniência, prejudica-se o public enforcement, já que o impacto financeiro decorrente do ajuizamento de tais ações, tanto em nível nacional quanto internacional, pode reduzir a atratividade do Programa de Leniência brasileiro.
Há, portanto, duas alternativas legislativas no que tange à limitação da responsabilidade civil do signatário do Acordo de Leniência: (i) conferir imunidade civil; ou (ii) limitar a extensão de sua responsabilidade civil.[278]
A alternativa (i) – conferir imunidade civil ao signatário do Acordo de Leniência –, nos moldes do que se verifica na Hungria, não seria o mais adequado no entendimento do Cade, já que o enforcement privado em face de todos os participantes da conduta anticompetitiva é reconhecidamente importante para a dissuasão de novas infrações. Por sua vez, a alternativa (ii) – limitar a extensão da responsabilidade civil do signatário do Acordo de Leniência –, nos moldes do direito norte-americano e europeu, parece ser proporcional e adequada ao objetivo maior que é o fomento das ARDC no Brasil. Nesse caso, o signatário do Acordo de Leniência continuaria a responder civilmente pelo ilícito, mas não solidariamente em relação aos danos causados pelos demais coautores da prática anticompetitiva. Sua responsabilidade estaria limitada aos danos efetivamente causados aos seus consumidores e/ou fornecedores direitos e indiretos, sem aplicação do chamado efeito guarda-chuva (“umbrela effect”).[279] Ademais, não se aplicaria a repetição do indébito por valor em dobro (duplicação dos danos), conforme prevê o parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor (CDC).[280] [281]
O consolidado das propostas sobre a extensão da responsabilidade civil do signatário do Acordo de Leniência a serem endereçadas por alteração legislativa encontra-se visualmente apresentado no quadro-resumo abaixo.
4.2.2 Sobre a prescrição das ARDC
Tal como visto anteriormente, nos Estados Unidos (2.1.), as partes prejudicadas gozam de um prazo prescricional de quatro anos, contados, nos casos das infrações continuadas, a partir da cessação da conduta anticompetitiva[282], sendo que tal prazo é suspenso durante as investigações governamentais[283]. Na União Europeia (2.2.), a Diretiva de 2014 propôs alterações que conferissem maior segurança jurídica para consumidores lesados no que diz respeito à prescrição da pretensão indenizatória.[284] Segundo essa Diretiva, o prazo prescricional para ajuizamento de uma ARDC foi ampliado para, no mínimo, cinco anos.[285] Também ficou previsto que o termo inicial da prescrição será definido pelo momento em que os consumidores potencialmente lesados tiverem a possibilidade de verificar que foram vítimas de uma conduta colusiva, estipulando-se a publicação da decisão pela autoridade antitruste como fator razoável para tanto.[286] Ademais, a Diretiva previu que a investigação em andamento pela autoridade da concorrência caracteriza hipótese de suspensão do prazo prescricional, sendo que, após decisão final da autoridade, os consumidores terão ao menos um ano para ajuizar ações civis. Vale notar ainda que, na Alemanha (2.4.), a lei nacional prevê prazo prescricional de três anos, contados a partir da ciência sobre a violação. A possibilidade de ajuizamento de uma ARDC também pode prescrever após dez anos da ocorrência da violação[287], sendo que a jurisprudência aponta a divulgação à imprensa da nota da decisão final do Bundeskartellamt como termo inicial da contagem dessa prescrição.[288] Na Áustria, há a suspensão do prazo prescricional para ajuizamento de uma ARDC após seis meses da decisão transitada em julgado.
No Brasil, a regra geral do art. 189[289] c/c art. 206, parágrafo 3º, V[290] do Código Civil aponta para um prazo prescricional de três anos para ajuizamento de ARDC. Há, contudo, divergências interpretativas com relação ao termo inicial da contagem desse prazo[291], o que prejudica o fomento das ações de reparação por danos concorrenciais. Trata-se de importante diretriz que precisa ser endereçada institucionalmente no Brasil, a fim de garantir segurança jurídica ao private enforcement local.
Assim, a fim de solucionar essa indefinição a respeito do termo inicial da prescrição no ordenamento jurídico brasileiro, propõe-se alteração legislativa para estabelecer a ciência inequívoca do ilícito concorrencial como termo inicial para a contagem do prazo previsto de três anos. Essa ciência inequívoca se daria, no entendimento do Cade, quando da publicação do julgamento final do Processo Administrativo pelo seu Tribunal, ou, alternativamente, após o desfecho da ação penal, o que garantiria aos consumidores lesados maiores chances de ajuizar as ARDC. Essa previsão a respeito do termo inicial não inviabilizaria, todavia, a possibilidade de as partes lesadas, se assim quiserem, ajuizarem antecipadamente suas respectivas ARDC, quando houver, por exemplo, a realização de uma busca e apreensão e/ou a instauração de um Processo Administrativo. As partes lesadas, porém, somente terão amplo acesso aos documentos e informações da infração concorrencial, nos casos em que haja Acordo de Leniência e/ou TCC, após o julgamento final pelo Plenário do Cade, o que converge com as propostas regulamentares (4.1.).
Outra proposta relacionada ao tema é que a instauração de procedimento para apuração da infração contra a ordem econômica pela Superintendência-Geral do Cade seja considerada como fator de interrupção do prazo prescricional para ajuizamento das ARDC. Assim, evitar-se-ia a perda do direito de ação dos consumidores potencialmente lesados em decorrência do transcurso do Processo Administrativo no Cade.
Ainda, sugere-se que o juiz cível se utilize, no bojo da ARDC, caso necessário, da prerrogativa de suspender o curso da ação durante as investigações do Cade, com base no art. 313, V, “a” do Código de Processo Civil (CPC).[292] Desse modo, uma vez julgado o Processo Administrativo no Cade, cessaria a causa de suspensão da ação cível e a parte autora teria acesso aos documentos e informações necessários para subsidiar sua pretensão. Essa solução é adotada, semelhantemente, nos Estados Unidos (2.1.), por meio do pedido de “discovery stay,” e também na Áustria.
Finalmente, sugere-se que o juiz cível possa utilizar a decisão condenatória do Plenário do Tribunal do Cade como título executivo extrajudicial[293] e prova prima facie da existência da conduta e do dano, de forma a facilitar o ajuizamento das ações civis do tipo “follow-on”. Assim, restaria às partes potencialmente lesadas provar apenas o quantum do dano e o nexo causal, tal como ocorre em quase todas as jurisdições analisadas (União Europeia, Reino Unido, Alemanha, Holanda, Austrália e Canadá). Em que pese tal proposta, ações autônomas continuariam a ser ajuizadas concomitantemente à investigação do Cade, independentemente do Inquérito ou Processo Administrativo, nos termos do próprio caput do art. 47 da Lei nº 12.529, de 2011.
O consolidado das propostas a serem endereçadas por alteração legislativa sobre a prescrição das ARDC encontra-se visualmente apresentado no quadro-resumo abaixo.
É premente a necessidade de posicionamento institucional do Cade a respeito do modo de articulação entre as persecuções pública e privada a condutas anticompetitivas no Brasil. Essa premência é oriunda, basicamente, da necessidade de uniformidade decisória, seja no âmbito externo (incluindo o Judiciário), seja no âmbito interno (quando do julgamento do caso no Plenário do Tribunal do Cade). Ilustrativa desse contexto é a recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 11 de março de 2016.[294] Analogamente à decisão da União Europeia no caso Pfleiderer, proferida em 2011, as razões de decidir do STJ no bojo de uma ARDC fundamentada na investigação do cartel de compressores (2016) desafiam a prática reiterada do Cade e podem suscitar questionamentos em relação à atratividade dos Programas de Leniência e de TCC do Brasil.
Assim, propõe-se a adoção de medidas regulamentares, legislativas e de advocacy para normatizar os procedimentos de acesso aos documentos e informações oriundos de Acordos de Leniência, TCC e buscas e apreensões, bem como para fomentar as ARDC. Acredita-se que, com isso, aumentar-se-á a segurança jurídica no País.
[1] Utiliza-se a expressão “public enforcement” para se referir à atuação das autoridades de defesa da concorrência na persecução de práticas anticompetitivas. No Brasil, o public enforcement é desempenhado pelo Cade e pelo Ministério Público, sendo que as decisões administrativas podem ser revistas pelo Poder Judiciário.
[2] Utiliza-se a expressão “private enforcement” para se referir às hipóteses de aplicação das normas de defesa da concorrência pelo Judiciário, no âmbito das ARDC movidas por consumidores lesados pela prática anticompetitiva.
[3] A título exemplificativo, aponta-se as discussões realizadas em 2015 no bojo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE): http://www.oecd.org/daf/competition/antitrust-enforcement-in-competition.htm e em 2007 pela International Competition Network (ICN): http://www.internationalcompetitionnetwork.org/uploads/library/doc349.pdf.
[4] Ver Diretiva 2014/104/EU sobre Ações de Ressarcimento de Danos Concorrenciais da União Europeia do Parlamento Europeu e do Conselho (“Directive on Antitrust Damages Actions”) (“Diretiva”). Disponível em:
http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0104&from=DE.
[5]Ver European Commission, “Impact Assessment Report on Damages actions for breach of the EU antitruste rules” (2013), Commission Staff Working Document (doravante “Relatório de Avaliação de Impacto da Comissão Europeia 2013”). Disponível em:
http://ec.europa.eu/competition/antitrust/actionsdamages/impact_assessment_en.pdf.
[6] Ver Competition and Markets Authority – CMA, “Guidance on the CMA’s approval of voluntary redress schemes” (2015), sobre o mecanismo de reparação voluntária (“voluntary redress scheme”), https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/408333/Draft_guidance_-_CMA_voluntary_redress_schemes.pdf.
[7] Cf. Relatório de Avaliação de Impacto da Comissão Europeia 2013, p. 74. A proposta de emenda da GWB (lei alemã de defesa da concorrência) em 2012, legitima as associações de consumidores para ajuizar ARDC.
[8] Ver Australian Competition and Consumer Commission – ACCC, “Immunity and Cooperation Policy for Cartel Conduct” (2014), manual elaborado pela autoridade australiana de defesa da concorrência, https://www.accc.gov.au/publications/accc-immunity-cooperation-policy-for-cartel-conduct.
[9] “(...) No Brasil, porém, quase não se tem notícia de ações privadas em razão de danos causados por cartéis. Perde-se, assim, um importante fator a desestimular a prática de conluio. E os prejudicados também deixam de ser ressarcidos pelos danos causados.” Voto do ex-Conselheiro Fernando Furlan no Processo Administrativo nº 08012.009888/2003-70 (“cartel dos gases industriais”).
[10] Para mais detalhes sobre essa inter-relação ver: Capobianco, A. e Lee, S. “Relationship Between Public and Private Antitrust Enforcement” (junho, 2015), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, e Nota do Secretariado da OCDE (doravante “Relatório OCDE 2015”), disponível em: http://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP/WP3(2015)14&docLanguage=En.
[11] O Acordo de Leniência contém a confissão e as provas de participação da empresa e/ou indivíduos participante da conduta anticompetitiva. Uma vez que o dano causado pelo cartel é de difícil mensuração, o acesso a determinadas informações da leniência pode, de um lado, ser determinante para o sucesso das ações de reparação, e, por outro lado, expor excessivamente o beneficiário da leniência.
[12] Amanda Athayde Linhares Martins e Andressa Lin Fidelis agradecem em especial a colaboração de Max Alexandre Barbosa Villela na pesquisa sobre a experiência internacional, contida na Seção 2. Agradecem também a contribuição na elaboração das pesquisas dos estudantes João Felipe Aranha Lacerda e Fábio Lopes de Sousa, bem como da Luiza Kharmandayan, Chefe da Assessoria Internacional do Cade. Agradecem também a Larissa Nacif Fonseca pela revisão final.
[13] Em 2012, as alterações legislativas propostas (e já aprovadas) pelo governo austríaco incluem medidas, dentre outras (i) para que as decisões da Comissão e da NCA tenham efeito vinculante nos tribunais referente à comprovação da conduta; (ii) a possibilidade dos tribunais suspenderem o processo pendente na Comissão e na NCA; e (iii) suspensão do prazo prescricional em ações de ressarcimento em até seis meses depois que a decisão da NCA tenha transitado em julgado. Ver Relatório de Avaliação de Impacto da Comissão Europeia 2013, p. 74. Ademais, o prazo prescricional para ajuizamento de ações privadas é de 3 (três) anos a partir do dia em que dano e autor são conhecidos pela parte lesada. Ver contribuição da Áustria para o Relatório OCDE 2015. Disponível em:
http://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP/WP3/WD(2015)20&docLanguage=En. Ademais, há propostas legislativas que preveem a possibilidade de suspensão do prazo prescricional durante a investigação da autoridade. Ver Relatório de Avaliação de Impacto da Comissão Europeia, p. 17.
[14] Apesar da regra geral ser a da responsabilidade solidária, na Hungria o beneficiário da leniência pode se recusar a ressarcir os consumidores lesados se os autores da ARDC puderem ser ressarcidos por qualquer outro coautor do cartel. Ademais, a autoridade húngara da concorrência deve ser informada a respeito das ARDC que envolvam a lei da concorrência, e tais ações serão suspensas até a decisão final daquela autoridade, a qual servirá de evidência prima facie perante os tribunais. O prazo prescricional é de cinco anos a partir da ocorrência do dano, suspenso durante as investigações da autoridade antitruste até sua decisão final. Ver Baker & McKenzie, “Global guide to competition litigation” (2015) (doravante “Guia Baker & McKenzie 2015”), p. 103.
http://www.bakermckenzie.com/files/Upload/bk_competitionlitigationguide_may15.pdf.
[15] A experiência das ARDC no Japão se concentram nos próprios órgãos públicos contra participantes de cartéis em licitações, especialmente como resultado do aumento do número de casos de bid rigging. Ver Contribuição do Japão ao Relatório OCDE 2015. Disponível em:
http://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP/WP3/WD(2015)3&docLanguage=En. Ver também Guia Baker & McKenzie 2015, p. 119. Ademais, com base no artigo 25 do Antimonopoly Act, a ARDC só pode ser ajuizada após a decisão final do JFTC, dentro do prazo de três anos a partir da decisão final da autoridade. A decisão da JFTC, porém, não é vinculante, apesar de constituir evidência admissível em cortes civis.
[16] Embora os cidadãos suecos tenham direito ao acesso dos documentos da administração pública, as informações e os documentos recebidos pela autoridade antitruste sueca durante o curso de uma investigação serão considerados confidenciais e o acesso ao material de leniência só poderá ser concedido no âmbito da ARDC uma vez encerradas as investigações administrativas, sujeito, ainda, às regras de confidencialidade específicas. Ver contribuição sueca ao Relatório OCDE 2015, p. 10. Disponível em: http://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP/WP3/WD(2015)4&docLanguage=En.
[17] Para mais informações, ver Jones, Alison, “Private Enforcement of EU Competition Law: A comparison with, and lessons from, the US”, Harmonising EU Competition Litigation: The New Directive and Beyond (Hart Publishing, 2016), http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2715796 e Lande, Robert H. and Joshua P., Davis. “Benefits from Private Antitrust Enforcement: An Analysis of Forty Cases” (2008) University of San Francisco Law Review, v. 42, p. 891, http://ssrn.com/abstract=1090661.
https://www.fbi.gov/news/testimony/cartel-prosecution-stopping-price-fixers-and-protecting-consumers (último acesso em 10.03.2016). Uma segunda frente de combate a cartéis ocorre pela atuação de consumidores, no âmbito das ARDC, ajuizadas independentemente da condenação no processo criminal. É nesse contexto que surgem as questões relacionadas ao “discovery” de documentos. Finalmente, uma terceira frente é refletida no papel dos tribunais judiciais em processos criminais e/ou civis.
[19] Embora existam duas agências federais nos Estados Unidos competentes para analisar matéria concorrencial – o DOJ e o Federal Trade Commission (FTC) –, o DOJ tem competência exclusiva para o enforcement criminal da Lei Sherman de 1890 (“Sherman Act”). A Seção 1 do Sherman Act (15 U.S.C.) proíbe contratos, combinações, ou qualquer conspiração que possa restringir o comércio. Assim, o direito norte-americano considera como infração criminal per se toda prática de cartel, ou seja, todos os acordos entre concorrentes para a fixação de preços, alocação de clientes, divisão de mercado e fraude à licitação. Disponível em: http://www.justice.gov/atr/antitrust-enforcement-guidelines-international-operations (último acesso em 10.03.2016).
[20] As principais características do Programa de Leniência do DOJ se encontram no site http://www.justice.gov/atr/leniency-program. Trata-se de um dos mais importantes instrumentos de detecção de cartéis nos Estados Unidos, em que o beneficiário do acordo de leniência poderá evitar a condenação penal e aplicação de multas em troca da confissão da conduta anticompetitiva e da colaboração com as investigações.
[23]Pergunta 20 da seção de Perguntas e Respostas do DOJ referente ao Programa de Leniência e Modelo de Carta de Leniência 2008 (doravante “FAQ do DOJ”). Disponível em:
https://www.justice.gov/atr/frequently-asked-questions-regarding-antitrust-divisions-leniency-program “There is a strong presumption in favor of requiring restitution in leniency situations”. Nesse mesmo sentido, o Modelo de Carta de Leniência (model conditional letter), parágrafo 2(g). Disponível em:
https://www.justice.gov/atr/model-corporate-conditional-leniency-letter. “2.Cooperation. g. making all reasonable efforts, to the satisfaction of the Antitrust Division, to pay restitution to any person or entity injured as a result of the anticompetitive activity being reported, in which Applicant was a participant. However, Applicant is not required to pay restitution to victims whose antitrust injuries are independent of any effects on United States domestic commerce proximately caused by the anticompetitive activity being reported”.
[24] Modelo do plea agreement pode ser encontrado no site do DOJ. Disponível em:
http://www.justice.gov/sites/default/files/atr/legacy/2013/12/24/302601.pdf.
[25] Plea agreements são acordos disponíveis para as partes que não se qualificam para a leniência, ou para os casos em que a leniência não está mais disponível. O DOJ confere leniência total apenas para o primeiro a se qualificar, como no Brasil. O discurso proferido por Scott Hammond (DOJ) em sessão do Comitê de Concorrência da OCDE oferece mais detalhes sobre a política de plea agreements do DOJ: https://www.justice.gov/atr/speech/us-model-negotiated-plea-agreements-good-deal-benefits-all. A celebração dos plea agreements é feita conforme a discricionariedade do DOJ, o qual, tradicionalmente, não os celebra com os indivíduos contra os quais já há evidências suficientes de conduta anticompetitiva no âmbito do plea agreement firmado com a empresa (procedimento conhecido como “carve out”). Ver Snyder, Brent, “Individual Accountability for Antitrust Crimes” (New Haven, 2016), notas preparadas para a conferência Global Antitrust Enforcement, p. 14, disponível em https://www.justice.gov/opa/speech/deputy-assistant-attorney-general-brent-snyder-delivers-remarks-yale-global-antitrust.
[26] Ver a contribuição dos Estados Unidos para o Relatório OCDE 2015: “The cartel convictions that the Antitrust Division secures, including those secured through guilty pleas, constitute ‘prima facie evidence’ in follow-on private damages actions against those companies and individuals convicted (…) Because private parties have the opportunity to pursue treble damages under federal antitrust law, plea agreements in criminal cartel prosecutions rarely impose a restitution obligation on prosecuted entities.” Disponível em:
[27] Nos Estados Unidos, a prática de cartel é considerada um ilícito criminal e pode ensejar multa de até US$ 100 milhões para empresas e US$ 1 milhão para indivíduos, os quais podem ser condenados em até 10 anos de prisão, conforme a redação conferida pela emenda de 2004 (Lei 108-237, Título II, § 215(a), 118 Stat. 668).
[28] Para dados sobre ARDC nos Estados Unidos e o papel de tais ações em face dos cartéis internacionais, ver Connor, J. M., “Private Recoveries in International Cartel Cases Worldwide: What do the Data Show?” (2012). The American Antitrust Institute, Working Paper No. 12-03. Disponível em:
[29] Discovery se refere a um conjunto de dispositivos processuais empregados por uma parte em um processo civil ou criminal, na fase de produção de provas, com o objetivo de demandar da parte contrária a divulgação de informação essencial para a formação da causa de pedir da parte requerente e que apenas a parte adversa tem conhecimento ou possui. Ver Federal Rules of Civil Procedure, Title 28 of the U.S. Code.
[30] Ver Schwartz, Edward, “Access to Leniency Documents and the Effectiveness of Private Damages Claims - The US and EU Defense Perspective” (2014), 20º Seminário IBRAC, disponível em http://www.ibrac.org.br/Uploads/Eventos/20SeminarioConcorrencia/PALESTRAS/Painel%202%20-%20Edward%20B.%20Schwartz.pdf
[31] Estados Unidos, Lei de Livre Acesso à Informação (“Freedom of Information Act” – FOIA). Disponível em:
[32] Estados Unidos, Regras Federais do Processo Criminal (“Federal Rules of Criminal Procedure” – FRCrP). Disponível em:
https://www.federalrulesofcriminalprocedure.org (último acesso em 10.03.2016).
[33] Estados Unidos, Regras Federais do Processo Civil (“Federal Rules of Civil Procedure” – FRCP). Disponível em:
[34] Ver Department of Justice Freedom of Information Act Reference Guide (“Reference Guide”). http://www.justice.gov/oip/department-justice-freedom-information-act-reference-guide. “The FOIA generally provides that any person has the right to obtain access to federal agency records except to the extent those records are protected from disclosure by the FOIA”.
[35] Nos Estados Unidos, há a figura do “sigilo investigativo”, dispensado às informações obtidas por autoridades em investigação criminal, e do “sigilo de informante”, aplicável às informações fornecidas por informante em colaboração com a autoridade. Para mais detalhes, ver o Reference Guide do DOJ. Ver também In re Flat Glass Antitrust Litig. (Flat Glass I), MDL No. 1200, Misc. No. 97-550, at 5-6 (W.D. Pa. Mar. 26, 1998).
[36] Discovery stay é o instrumento processual solicitado pelo DOJ para proteger a integridade das investigações sobre prática de cartel. O stay pode ser referente a documentos ou à colheita de depoimentos, sendo que os do segundo tipo costumam ter longos períodos de duração. Para mais informações ver Lerner, Kellie and Friedman Elizabeth, “DOJ Stays Are Often Unfair To Private Antitrust Plaintiffs” (Março, 2014), Law 360. Disponível em:
[37] Sobre esse tema, o Manual da Divisão Antitruste (“Antitrust Division Manual”) do DOJ dispõe que: “As ações civis podem criar risco de interferência com a investigação do ‘grand jury’ e com as ações penais resultantes. Muitas vezes essas ações são ajuizadas assim que as informações do ’grand jury’ são publicadas, aumentando o risco de interferência. Quando essas ações geram risco de interferência com investigações do ‘grand jury’ e/ou com ações penais resultantes, os representantes legais do DOJ podem requerer judicialmente a suspenção do pedido de acesso aos documentos na ação civil para proteger a integridade da investigação e/ou das ações penais resultantes.” Disponível em:
[38] In re Dynamic Random Access Memory (DRAM) Antitrust Litigation, No. 02-1486 (N.D. Cal.)
[39] In re TFT-LCD (Flat Panel) Antitrust Litigation, No. 07-1827 (N.D. Cal. Sept. 25, 2007) (order granting the United States’ motion to stay discovery). “In the TFT-LCD litigation, the court acknowledged that a stay helps the government preserve the secrecy and confidentiality of its grand jury proceedings and not “reveal the nature, scope and direction of the ongoing criminal investigation, as well as the identities of others who may be providing evidence to the grand jury or the government, and the identities of potential witnesses and targets”, ver Lui, B. S.; Illovsky, Eugene; Bos, Jacqueline. “Increased DOJ Intervention to Stay Discovery in Civil Antitrust Litigation”, Antiturst Litigator (Spring, 2008), vol. 8, nº. 1.
[40] In re Cathode Ray Tube (CRT) Antitrust Litigation, MDL No. 1917, No. 32007cv05944 (N.D. Cal. 2015).
[41] Pontua-se, porém, que mesmo na hipótese de o DOJ haver obtido o stay diferindo no tempo a apresentação de materiais de leniência no âmbito da ação civil, o beneficiário da leniência, para que possa obter os benefícios legais da sua cooperação, permanece com o dever de cooperar com o fornecimento da informação tão logo o stay expire, e.g., de-trebling. Ver Kate Patchen, Assistente Chefe do Escritório de São Francisco do DOJ, em apresentação intitulada “The Interplay Between Private Enforcement and Leniency Policy”, disponibilizada no call “Impact of private enforcement on public anti-cartel enforcement” (23 de fevereiro de 2016), SG1 call series.
[42] In re Micron Technology Inc. Securities Litigation, Case No. 09-mc-00609 (Doc. No. 17) (D.D.C. Feb. 01, 2010). No caso Micron Technology (2010), os autores da ação civil solicitaram o acesso aos depoimentos de empregados das empresas representadas fornecidos no âmbito do acordo de leniência. O tribunal acatou a manifestação do DOJ e entendeu que a divulgação dos documentos investigativos em questão macularia gravemente a integridade do programa de leniência, e prejudicaria as investigações em curso, bem como futuras ações de repressão antitruste. Ainda, o tribunal entendeu que os referidos documentos eram protegidos por sigilo investigativo. Para outros precedentes, ver Samuel Miller, Kristina Nordlander e James Owens, “U.S. Discovery of European Union and U.S. Leniency Applications and Other Confidential Investigatory Materials”, The CPI Antitrust Journal (Março, 2010).
[43] Ver Schwartz, Edward, “Access to Leniency Documents and the Effectiveness of Private Damages Claims - The US and EU Defense Perspective” (2014), 20º Seminário IBRAC, disponível em http://www.ibrac.org.br/Uploads/Eventos/20SeminarioConcorrencia/PALESTRAS/Painel%202%20-%20Edward%20B.%20Schwartz.pdf.
[44] Id., Flat Glass I (1998), refere-se aos documentos apresentados pelo signatário do acordo de leniência.
[45] A fase investigativa conduzida pelo DOJ ainda conta com o instituto do grand jury. Trata-se de um órgão independente, com obrigação de sigilo, composto por um grupo de jurados leigos para os quais o DOJ apresenta as evidências de prática anticompetitiva do caso sob investigação. Ao final, o grand jury decide se há ou não elementos suficientes para a apresentação de denúncia contra os investigados. Para mais detalhes, ver o capítulo 9-11.000 do U.S. Attorneys' Manual (“USAM”).
[46] Tradução livre do artigo 6(e)(2): “Exceto se houver provisão em sentido contrário, as seguintes pessoas têm obrigação de sigilo referente às questões debatidas no âmbito do grand jury . . . (vi) os procuradores do governo”. Artigo 6(e)(2): “Unless these rules provide otherwise, the following persons must not disclose a matter occurring before the grand jury: . . . (vi) an attorney for the government”.
[47] Cf. USAM, Title 9: Criminal, 9-27.200 “Initiating and Declining Prosecution – Probable Cause Requirement”. Disponível em https://www.justice.gov/usam/usam-9-27000-principles-federal-prosecution#9-27.200.
[48] Nesse caso, a denúncia é oferecida diretamente à corte.
[49] Nesse caso, a acusação é apresentada pelo grand jury.
[50] Para mais informações sobre as obrigações de discovery do DOJ no âmbito do processo criminal, ver http://www.justice.gov/dag/memorandum-department-prosecutors e Criminal Discovery (Setembro, 2012), DOJ, http://www.justice.gov/sites/default/files/usao/legacy/2012/09/24/usab6005.pdf.
[51] Os documentos listados pelo artigo 16 do FRCrP estão disponíveis em https://www.law.cornell.edu/rules/frcrmp/rule_16.
[52] Brady v. Maryland, 373 U.S. 83 (1963).
[53] Giglio v. United States, 405 U.S. 150, 153 (U.S. 1972).
[54] Jencks v. United States, 353 U.S. 657 (U.S. 1957).
[55] Affidavits é uma declaração escrita, garantida por juramento da parte, tomada por alguém autorizado a recebê-la. Tais declarações são geralmente utilizadas em processos judiciais ou em outras hipóteses previstas em lei.
[56] Nos Estados Unidos, as partes podem ajuizar pedido de proteção das evidências de modo a restringir quem pode ter acesso às informações e documentos prestados (protective order). Por exemplo, no caso Air Cargo (2010) [In re Air Cargo Shipping Antitrust Litigation, 06-MD-1777 (E.D.NY)], os autores da ARDC ficaram proibidos de compartilhar os materiais de leniência com terceiros.
[57] Segundo o Manual do DOJ, pág. III-101: “O DOJ não disponibiliza a identidade do beneficiário ou as informações por ele fornecidas, a não ser que o beneficiário o tenha feito anteriormente ou que o DOJ tenha autorização do beneficiário ou seja ordenado pelo Judiciário”. Nesse mesmo sentido, ver questão 32 do FAQ do DOJ.
[58] Cerca de 90% dos representados acusados de prática de cartel preferem firmar acordo com o DOJ do que prosseguir com a ação no Judiciário. Ver Jones Day Commentary “Federal Jury Returns Verdicts in Rare Price-Fixing Trial of Global Liquid-Crystal Displays Conspiracy” (Abril, 2012). Disponível em: http://www.jonesday.com/files/Publication/dff3fca0-c0b3-4d42-bc32-23fc3b481e05/Presentation/PublicationAttachment/4ca92dd8-de5e-4915-aed5-171b9afffa1e/Federal%20Jury%20Returns%20Verdict.pdf.
[59] Rule 26(b)(1): “Unless otherwise limited by court order, the scope of discovery is as follows: Parties may obtain discovery regarding any non-privileged matter that is relevant to any party's claim or defense and proportional to the needs of the case, considering the importance of the issues at stake in the action, the amount in controversy, the parties’ relative access to relevant information, the parties’ resources, the importance of the discovery in resolving the issues, and whether the burden or expense of the proposed discovery outweighs its likely benefit. Information within this scope of discovery need not be admissible in evidence to be discoverable.”
[60] In re Rubber Chems. Antitrust Litig. 486 F. Supp. 2d 1078, 1080 (N. D. Cal. 2007), no qual o tribunal concluiu, com base no princípio da “cortesia internacional” (“International Comity Doctrine”), pela não divulgação de documentos constantes de processos da Comissão Europeia.
[61] In re Methionine Antitrust Litig., MDL No. 00-1311 CRB (N.D. Cal. June 17, 2002). Foi ajuizada na Califórnia ação indenizatória com pedido de acesso aos documentos fornecidos no acordo de leniência feito pela Comissão Europeia em relação ao Cartel das Metioninas (2002). Aqui, o mesmo tribunal que decidiu o caso do Cartel das Vitaminas (2002) (“Northern District of California”) reconheceu a relevância dos interesses da Comissão Europeia, que juntou, na condição de amicus curiae, a mesma manifestação feita naquele caso. O tribunal reconheceu, ainda, o sigilo investigativo dos documentos e entendeu que existiam outros meios de os autores provarem as alegações de cartel. Vale mencionar que nos dois casos foi feita uma análise de comity na ponderação dos interesses da autoridade estrangeira.
[62] In re Vitamins Antitrust Litig., 2002 U.S. Dist. LEXIS 26490, No. 99-197, 8 (D.D.C. Jan. 23, 2002) e 25815 (Dec. 18, 2005). No Cartel das Vitaminas (2002), autores de ARDC nos Estados Unidos pediram acesso às declarações fornecidas no âmbito do Programa de Leniência da Comissão Europeia. A autoridade europeia, na condição de amicus curiae, impugnou o pedido de discovery sob o argumento de que os documentos eram confidenciais e que sua divulgação prejudicaria a eficácia de seu Programa. O tribunal norte-americano decidiu que as razões apresentadas pela Comissão foram insuficientes para limitar o direito dos autores de acessar os documentos. Decidiu-se ainda que a alegação de sigilo é inaplicável a documentos em posse de terceiros, como ocorria no caso.
[63] Air Cargo Shipping Services Antitrust Litigation No. MD-06-1775 (E.D.N.Y. Dec. 19, 2011).
[64] O “comity” (do latim, comitas gentium) refere-se aos atos de cortesia internacional, a exemplo do reconhecimento da validade de decisões judiciais de uma jurisdição pela outra, em bases recíprocas. No ordenamento jurídico dos Estados Unidos, esse princípio está insculpido no artigo 4º, Sessão 2, de sua Constituição. Com base no princípio do “comity”, tribunais estadunidenses têm proferido decisões que indeferem o acesso a documentos em outras jurisdições.
[65] Para mais informações sobre as regras e jurisprudência da EU pré Diretiva, ver Tavares, Mariana, “A proteção dos documentos de leniência no âmbito de ações de indenização por violação das regras de concorrência na União Europeia” (2013), RDC, vol. 1, nº 2, pp. 32-44.
[66] Ver Manual do DOJ, pág. III-101: “(...) o DOJ não disponibiliza a autoridades estrangeiras a identidade do beneficiário da leniência ou as informações por ele fornecidas, a não ser com o consentimento do beneficiário.”
[67] Entende-se que o beneficiário coopera se: (i) fornece um relato completo de todos os fatos de seu conhecimento que possam ser relevantes para a ação civil; (ii) fornece todos os documentos ou outros materiais potencialmente relevantes para ação civil que estejam sob sua posse, custódia ou controle, onde quer que estejam localizados; e (iii) envida seus melhores esforços para garantir e facilitar entrevistas, depoimentos ou testemunhos de funcionários que sejam beneficiários da leniência em conexão com a ação civil. Os coautores permanecem responsáveis por danos triplicados de forma solidária, conforme a pergunta 20 do FAQ do DOJ.
[68] Embora o termo inicial, como regra geral, seja contado a partir do momento em que o requerente sofre dano patrimonial ou aos seus negócios, essa regra é excepcionada quando o dano é resultante de uma conduta anticompetitiva continuada, hipótese na qual cada ato anticompetitivo tem o condão de reiniciar o prazo prescricional, cf. Pace Industries, Inc. v. Three Phoenix Co., 813 F2d 234 (9th Cir. 1987).
[69] Cf. Clayton Act, §§ 4B c/c 5(i). Ver Jones, Alison, “Private Enforcement of EU Competition Law: A comparison with, and lessons from, the US” (2016). Disponível em:
[70] Para mais informações, ver Jones, Alison, “Private Enforcement of EU Competition Law: A comparison with, and lessons from, the US”, Harmonising EU Competition Litigation: The New Directive and Beyond (Hart Publishing, 2016), http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2715796 e Lande, Robert H. and Joshua P., Davis. “Benefits from Private Antitrust Enforcement: An Analysis of Forty Cases” (2008) University of San Francisco Law Review, v. 42, p. 891, http://ssrn.com/abstract=1090661.
[71] Na União Europeia, o combate a carteis é desempenhado tanto em nível nacional, por meio das autoridades de concorrência dos países membros (“National Competition Authorities - NCAs”), quanto em nível supranacional, no âmbito da Comissão Europeia, por meio da Direção-Geral para Concorrência (DG COMP), a qual possui competência investigativa e decisória. Tais autoridades são conjuntamente competentes para aplicar o artigo 101 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), que versa sobre práticas colusivas entre concorrentes. As NCAs também podem aplicar, de forma residual, leis domésticas de defesa da concorrência.
[72] Relatório OCDE 2015, p. 5. De 54 decisões finais tomadas pela Comissão entre 2006 e 2012, apenas 15 foram seguidas por ARDC. Ver Relatório de Avaliação de Impacto da Comissão Europeia, p. 19.
[73] Dispõe sobre a descentralização da implementação das regras antitruste (arts. 101 e 102 do TFUE).
[74] A Diretiva 2014 deve ser implementada pelos Estados Membros até dezembro de 2016. Disponível em:
http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0104&from=DE.
[75] A Diretiva, destinada aos Estados Membros e cortes nacionais, disciplina as seguintes questões: (i) acesso a elementos de prova; (ii) efeitos das decisões nacionais; (iii) prazos prescricionais; (iv) responsabilidade solidária; (v) defesa baseada no repasse de custos (“passing-on defense”) e direito de adquirentes indiretos à reparação; (vi) quantificação do dano; (vii) meios alternativos de resolução de conflitos. Ver Machado, Luiza A., “Programas de leniência e responsabilidade civil concorrencial: o conflito entre a preservação dos interesses da leniência e o direito à indenização” (novembro, 2015), Revista de Defesa da Concorrência, vol. 3, nº 2.
Sobre o Programa de Leniência da Comissão Europeia e as hipóteses de imunidade e redução das multas, ver http://ec.europa.eu/competition/cartels/leniency/leniency.html.
[77] Sobre o tema, ver demais Regulamentos da Comissão Europeia (EC nº 1/2003 e EC nº 773/2004), Comunicação da Comissão nº 802/2004, art. 339 do TFUE e a Decisão 2011/695/EU do Presidente da Comissão Europeia.
[78] Cf. art. 4º do Regulamento 1049/2001.
[79] Caso C-360/09, Pfleiderer AG v Bundeskartellamt (2011) ECR I-05161. Três anos antes, em 2008, a NCA da Alemanha condenou um cartel de fabricantes de papel. A empresa Pfleiderer, consumidora dos produtos cartelizados, requereu acesso aos documentos recebidos pela autoridade alemã no âmbito do Acordo de Leniência com o intuito de ajuizar ação civil de ressarcimento. O acesso foi negado e a Pfleiderer recorreu ao Tribunal de Bonn, o qual encaminhou o processo em consulta para a manifestação do TJUE. Quando o Tribunal de Bonn aplicou a decisão proferida pelo TJUE, a Corte se recusou a divulgar os materiais de leniência para a Pfleiderer.
[80] Segundo o parecer do Advogado-Geral, os documentos produzidos para o Acordo de Leniência e aqueles preexistentes ao acordo que teriam sido entregues à autoridade antitruste deveriam receber tratamento distinto. Para Mazák, somente a segunda categoria estaria sujeita ao discovery. Já em relação aos documentos produzidos para o Acordo de Leniência, seu acesso por parte de terceiros prejudicados deveria ser vedado de forma a garantir a integridade do Programa de Leniência.
[81] Cf. trecho da decisão do TJUE (2011): “The provisions of European Union law on cartels, and in particular Council Regulation (EC) No 1/2003 of 16 December 2002 on the implementation of the rules on competition laid down in Articles 101 TFEU and 102 TFEU, must be interpreted as not precluding a person who has been adversely affected by an infringement of European Union competition law and is seeking to obtain damages from being granted access to documents relating to a leniency procedure involving the perpetrator of that infringement. It is, however, for the courts and tribunals of the Member States, on the basis of their national law, to determine the conditions under which such access must be permitted or refused by weighing the interests protected by European Union law.” Disponível em: http://eurlex.europa.eu/legalcontent/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:62009CJ0360&from=EN
[82] No mesmo sentido, o caso Bundeswettersbewerbsbehörde v Donau Chemie et al C-536/11, EU:C:2013:366, parágrafo 43, julgado em junho de 2013, no qual o TJUE rejeitou uma lei da Áustria que permitia o acesso aos documentos obtidos em Acordo de Leniência a terceiros prejudicados para embasarem ações indenizatórias. O Tribunal reafirmou que tal decisão deve ser tomada caso a caso, após a ponderação dos interesses conflitantes.
[83] Cf. apontado por Machado (2015), ver: Case T-437/08, Cartel Damage Claim Hydrogene Peroxide Cartel Damage Claims v Commission (Tribunal Geral da União Europeia, 2011); Case HC08C03243, National Grid v. ABB (Suprema Corte do Reino Unido, 2012); Case T-344/08, EnBW Energie Baden-Württemberg v Commission (Tribunal Geral da União Europeia, 2012); Case C-365/12P, Commission v EnBW Energie Baden-Württemberg AG (Tribunal de Justiça da União Europeia, 27 de fevereiro de 2014); Case E-5/13 DB Schenker v EFTA Surveillance Authority (Corte EFTA, 2014).
[84] Ver Asins, Marta Giner e Thill-Tayara, Mélanie, “The General Court of the European Union authorizes the Commission to communicate information submitted in support of its leniency program, through the publication of a new and more detailed version of its penalty decision in the hydrogen peroxide cartel (Akzo Nobel, Eka Chemicals)”, e-Competitions National Competition Laws Bulletin (January 2015), n. 72350.
[85] O Tribunal definiu que a presunção contra a divulgação dos documentos de leniência é juris tantum, ou seja, o terceiro interessado pode requerer o acesso a um documento específico, desde que prove que possui um interesse público de maior importância.
[86] Cf. art. 3(2) da Diretiva.
[87] Segundo o Relatório OCDE 2015, p. 7, na hipótese de um aumento de preços decorrente de um ilícito ser repassado ao longo da cadeia de distribuição, somente aqueles que arcaram em último lugar com os prejuízos terão direito à indenização. A Diretiva torna, portanto, mais fácil para os adquirentes indiretos provarem que o repasse do aumento dos preços ocorreu.
[88] Segundo o Relatório OCDE 2015, p. 7, a Diretiva estabelece uma presunção relativa segundo a qual carteis causam danos e permite que os tribunais estimem tais danos. Tal presunção auxilia os consumidores lesados na difícil tarefa de provar e quantificar os danos sofridos.
[89] Segundo o Relatório OCDE 2015, p. 7, para que o ressarcimento ocorra de maneira mais rápida e de modo mais barato, será possível adotar modos alternativos de resolução de conflitos. A Diretiva prevê a suspensão do prazo prescricional se houver processos judiciais em curso para permitir aos consumidores lesados tempo suficiente para alcançar um acordo consensual sem o risco de perder os direitos processuais nesse meio tempo.
[90] Segundo o Relatório OCDE 2015, p. 7, decisões das NCAs constituem prova prima facie automática da existência de cartel perante os tribunais da mesma jurisdição. Decisões de NCAs de outros Estados Membros também podem constituir evidência prima facie.
[91] Segundo os critérios estabelecidos pelo art. 5º da Diretiva da Comissão Europeia, os tribunais, ao avaliarem um pedido de acesso a materiais de prova, devem considerar: (i) a medida em que o pedido de indenização é fundamentado em fatos e elementos de prova que justificam o pedido de divulgação; (ii) o âmbito e os custos da divulgação, em especial para os terceiros interessados; e (iii) se os elementos de prova cuja divulgação é requerida contêm informações confidenciais, em especial no que respeita a terceiros, e quais procedimentos devem ser adotados para proteger tais informações confidenciais.
[92] Cf. artigo 2(16) da Diretiva: “leniency statement” é qualquer comunicação oral ou escrita apresentada voluntariamente por uma empresa ou uma pessoa singular, ou em seu nome, a uma autoridade da concorrência, ou um registo dessa comunicação, que descreve as informações de que essa empresa ou pessoa singular tem conhecimento sobre um cartel e o papel que a mesma nele desempenha, elaborada especificamente para apresentação à autoridade da concorrência a fim de obter dispensa ou redução da multa ao abrigo de um programa de leniência, excluindo as informações preexistentes.
[93] Cf. artigo 2(18) da Diretiva: “settlement submission” é qualquer comunicação voluntária apresentada por uma empresa, ou em seu nome, a uma autoridade da concorrência na qual a empresa reconheça ou renuncie a contestar a sua participação numa infração ao direito da concorrência e a sua responsabilidade por essa infração ao direito da concorrência, e elaborada especificamente para que a autoridade da concorrência possa aplicar um procedimento simplificado ou acelerado.
[94] Trata-se de documentos especificamente elaborados para o procedimento da NCA e de informações que a NCA elaborou no âmbito do processo, incluindo declarações preliminares da autoridade (“statement of objections”) e respostas a pedidos de informação (“request for information”). Para uma análise de eventuais fragilidades da Diretiva, ver Polley, Romina, “Is the Continued Success of Leniency in Cartel Cases in Danger? Some Comments from a Private Practioner’s Perspective” (Setembro, 2015), Competition Policy International, vol.1.
[95] Statement of objections é um passo formal da investigação concorrencial da Comissão Europeia no qual a Comissão, por escrito, informa as partes investigadas sobre as condutas imputadas contra elas. O destinatário de um statement of objections pode responder, também por escrito, elencando todos os fatos de seu conhecimento relevantes para sua defesa. A parte também pode querer uma audiência para apresentar seus comentários sobre o caso. Cf. MEMO/07/314. Disponível em:
http://europa.eu/rapid/press-release_MEMO-07-314_en.htm?locale=en.
[96] Tal quadro foi elaborado com base naquele disponível no Relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) “Relationship Between Public and Private Antitrust Enforcement”, de 2015. p. 28.
[97] Nesse sentido, há a discussão sobre passing-on defense, em que os membros do cartel alegam o repasse do aumento de preço pelos adquirentes diretos aos consumidores finais. Desse modo, os adquirentes diretos não teriam sido, em tese, lesados pelo cartel. (Ver Ferraz Jr., Tercio Sampaio. “Direito da concorrência e enforcement privado na legislação brasileira”. Revista de Defesa da Concorrência, vol.1, nº 2, 2013, p. 11-31.
[98] O parágrafo 48 da Diretiva 2014/104/EU indica possibilidades de resolução de disputas em ações de danos: “(48) Achieving a ‘once-and-for-all’ settlement for defendants is desirable in order to reduce uncertainty for infringers and injured parties. Therefore, infringers and injured parties should be encouraged to agree on compensating for the harm caused by a competition law infringement through consensual dispute resolution mechanisms, such as out-of-court settlements (including those where a judge can declare a settlement binding), arbitration, mediation or conciliation”.
[99] Trata-se da possibilidade de empresas não participantes do conluio aumentarem seus preços a níveis superiores àqueles que existiam antes a vigência do cartel. Ver Gamble, Roger. “The European embrace of private enforcement: this time with feeling”. European Competition Law Review, Vol 35, Issue 10. United Kingdom: Thomson Reuters, 2014, p. 469-479.
[100] Case C-557/12, Kone AG and Others v. ÖBB-Infrastruktur AG, Judgment of the Court of Justice (Fifth Chamber), 5 de junho de 2014. No caso, a OBB Infrastruktur, empresa subsidiária da Austrian Federal Railways, era cliente de quatro empresas do mercado de elevadores e escadas rolantes condenadas por bid rigging na Áustria, dentre elas a Kone, e de outras empresas não participantes do cartel.
[101] Apud. Ibidem. Tradução livre do original: O cartel em questão foi, nas circunstâncias do caso e, em particular, nos aspectos específicos do mercado relevante, responsável pelo efeito de preço guarda-chuva ter sido aplicado por terceiros que agiam de modo independente; e aquelas circunstâncias e aspectos específicos não poderiam ser ignorados pelos membros do cartel. “(a) it is established that the cartel at issue was, in the circumstances of the case and, in particular, the specific aspects of the relevant market, liable to have the effect of umbrella pricing being applied by third parties acting independently; and (b) those circumstances and specific aspects could not be ignored by members of that cartel”.
[102] Vale observar, contudo, que a maior parte dos casos foram decididos em âmbito de acordos e não chegaram aos tribunais. Ver Roger, B. J., “Competition Law litigation in the UK Courts: A Study of all Cases 2009-2012” (2013), Global Litigation Law Review, p. 7.
[103] O CMA é o órgão responsável pela aplicação do Competition Act (1998). Compete ao CMA realizar estudos sobre práticas abusivas contra consumidores e investigar violações ao direito concorrencial britânico ou europeu.
[104] Cf. Seção 31 – Disclosure and Inspection of Documents, Regra 31.5 – Disclosure das Regras Processuais Civis. Disponível em:
https://www.justice.gov.uk/courts/procedure-rules/civil/rules/part31#31.1.
[105] [2012] EWHC 869 (Ch) (“National Grid”). Para mais detalhes sobre o caso ver Rodger (2013), p. 13.
[106] High Court of Justice, julgado em 04 de abril de 2012, caso nº HC08C03243 (National Grid). Para mais informações sobre as ações privadas na UE, ver Relatório de Avaliação de Impacto da Comissão Europeia.
[107] Enterprise and Regulatory Reform Act de 2013, responsável pela criação do CMA.
[108] O novo sistema alarga o âmbito das ações de danos para permitir que associações de consumidores possam ajuizar ações “opt-in” para consumidores lesados, bem como introduz um regime “opt-out” limitado de ações coletivas para danos concorrenciais. Ver a contribuição do Reino Unido referente ao Relatório OCDE 2015, p. 8. Disponível em:
[109] Id., p. 8: embora tais mecanismos não sejam mandatórios, são percebidos como uma forma de assegurar que os tribunais sejam acionados apenas em último caso. As propostas de solução alternativa de conflitos incluem o estabelecimento de um novo regime de acordo coletivo “opt-out” no âmbito do CAT. Assim, as empresas poderão alcançar acordos voluntários de forma mais rápida e mais fácil.
[110] Id., p. 7: o CAT foi expressamente autorizado a processar ações de indenização por danos concorrenciais seguidas da decisão da autoridade competente (considerada evidência prima facie da conduta). Em que pese isso, as reformas permitem ao CAT processar ações antes, independentemente de ter havido tal decisão administrativa sobre a infração concorrencial.
[111] Id., p. 8: o CAT é obrigado a notificar o CMA do ajuizamento de ações privadas de ressarcimento de danos concorrenciais. As regras do CAT serão modificadas para conceder ao CMA competência expressa para atuar como interventor, quando apropriado, em ARDC. O CAT também terá a prerrogativa de requerer a suspensão de ações (“stay”) quando o caso estiver sendo investigado pela autoridade da concorrência competente.
[112] Ver UK’s Consumer Rights Act 2015, Schedule 8 (“Private Actions in Competition Law”). Disponível em: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2015/15/contents/enacted.
[113] Ver CMA, “Guidance on the approval of voluntary redress schemes for infringements of competition law” (2015). Disponível em:
[114] Id., p. 46. O documento consigna, contudo, que o esquema não gera direito de redução da pena, ficando a cargo do CMA decidir por essa redução ou não, observado o desconto máximo de 20% sobre a multa aplicável.
[115] Ver “The Competition Act 1998 (Redress Scheme) Regulations 2015. Disponível em:
[116] Id. Dentre as regras dos mecanismos de reparação voluntária no Reino Unido: Regra 5: o requerente deve indicar um presidente, o qual constituirá um conselho composto por um economista, um profissional com experiência no setor, um representante do requerente e qualquer outra pessoa cuja participação o presidente entender pertinente. O redress scheme só ocorrerá se aprovado por maioria; Regra 6: o CMA deve se certificar de que não há conflito de interesses entre as pessoas indicadas e de que ao conselho foi dado acesso a todas as informações relevantes do caso; Regra 7: o redress scheme terá duração mínima de nove meses e desde que não haja reclamação de terceiros.
[117] Ver Davies, Lucy, “Rules governing the UK’s new voluntary redress schemes published”, agosto de 2015, Olswang. Disponível em:
[118] O Programa de Leniência do CMA garante imunidade administrativa total à empresa beneficiária do acordo e imunidade criminal aos seus administradores e empregados, caso as condições sejam preenchidas. Para fazer jus aos benefícios, exige-se que o delator seja o primeiro a denunciar a prática, que confesse participação no ilícito, e que coopere com as investigações. Além disso, a autoridade não deve ter conhecimento sobre o cartel reportado.
[119] Com o Brexit, há discussão a respeito do prosseguimento ou não das medidas para implementação da Diretiva 2014.
[120] Guia Baker & McKenzie 2015, p. 75-84.
[121] Em abril de 2014, a Suprema Corte do Reino Unido determinou temas relevantes referentes ao prazo prescricional para ações “follow-on” perante o CAT. Ver Deutsche Bahn AG and others v Morgan Advanced Materials plc (2014) UKSC 24. Disponível em:
https://www.supremecourt.uk/decided-cases/docs/UKSC_2012_0209_Judgment.pdf.
[122] Cf. Relatório de Avaliação de Impacto da Comissão Europeia (2013), p. 19.
[123] O Bundeskartellamt, órgão competente para investigar condutas anticoncorrenciais que afetem mercados em mais de um estado federado, aplica, enquanto legislação nacional, o German Act against Restraints of Competition (GWB).
[124] Id., p. 16.
[125] Contribuição da Alemanha ao Relatório OCDE 2015. Disponível em:
[126] Id., p. 3.
[127] Id., p. 4.
[128] Cf. Relatório de Avaliação de Impacto da Comissão Europeia (2013), p. 17.
[129]Amtsgericht Bonn (Corte Distrital de Bonn), caso nº 51 Gs 53/09 julgado em 18 de janeiro de 2012. A Corte entendeu que, não obstante a negativa de acesso à empresa Pfleiderer, a obtenção do ressarcimento por danos permaneceria possível para a autora. Posteriormente, esse caso foi julgado no TJUE, quando se definiu a casuística de que o discovery de documentos deverá ser avaliado caso a caso pelas cortes nacionais – conforme descrito anteriormente na seção sobre a União Europeia (2.2.).
[130] Oberlandesericht Düsseldorf (Tribunal Recursal de Dusseldorf), caso nº B-4. Kart 5/11(OWi) (roasted coffee), julgado em 22 de agosto de 2012.
[131] Embora a Corte Distrital de Bonn venha reiteradamente protegendo o acesso aos “leniency statements” e documentos correlatos, um tribunal de segunda instância de Frankfurt (Higher Frankfurt Regional Court) relativiza tal entendimento, afirmando que, à luz do caso Pfleiderer, a possibilidade da divulgação dos materiais de leniência não pode ser excluída como uma questão de princípio. Para mais detalhes sobre o tema, ver Polley, Romina, “Is the Continued Success of Leniency in Cartel Cases in Danger? Some Comments from a Private Practitioner’s Perspective” (2015), Competition Policy International, p. 10.
[132] Courage v Crehan, julgado pela ECJ em 20 de setembro de 2011, C-453/99. Para mais detalhes ver: Kuijpers, Matthijs, et al., “Actions for Damages in the Netherlands, the United Kingdom, and Germany” (Janeiro, 2015), Journal of European Competition Law & Practice, p. 11. Disponível em:
https://www.herbertsmithfreehills.com/-/media/Files/PDFs/2015/JournalofEuropeanCompetitionLawPractice2015jeclaplpu125.pdf.
[133] Bundesgerichtshof (Suprema Corte Civil Alemã), caso nº KZR 75/10 (Carbonless paper cartel), julgado em 28 de junho de 2011.
[134] Contribuição da Alemanha ao Relatório OCDE 2015, p. 3.
[135] Contribuição da Alemanha ao Relatório OCDE 2015, p. 5.
[136] Id, p. 3 e ss.
[137] Ver Contribuição da Alemanha ao Relatório da OCDE 2015, p. 6.
[138] Cf. Relatório de Avaliação de Impacto da Comissão Europeia (2013), p. 19.
[139] Id.
[140] Corte Distrital de Amsterdã, 7 de março de 2013, ECLI:NL:RBAMS:2012:BV8444, (Equilib / KLM c.s.).
[141] Corte Distrital de Utrecht, 27 de novembro de 2013,, ECLI:NL:RBMNE:2013:5978 (East West Debt / United Technologies Corporation c.s.).
[142] Corte Distrital de Amsterdã, 4 de junho de 2014, ECLI:NL:RBAMS:2014:3190 (CDC / AkzoNobel c.s.).
[143] Tribunal Recursal de Arnhem-Leeuwarden, 2 de setembro de 2014, ECLI:NL:GHARL:2014:6766. O Tribunal Recursal declarou que se o autor da ação civil (consumidor direto) embutiu o aumento de preços para os seus consumidores (consumidores indiretos), os danos devem ser reduzidos proporcionalmente a esse repasse.
[144] Guia Baker & McKenzie 2015, p. 133.
[145] Id., p. 134.
[146] O consumidor eventualmente lesado que não optou por sair do polo ativo (opt-out) dentro do prazo estipulado para tanto fica obrigado ao resultado do acordo e terá que se contentar com seus termos. Ver Mel, Marquis, “Perchance to Dream: Well Integrated Public and Private Antitrust Enforcement in the European Union” (2011), 16th edition of the Annual EU Competition Law and Policy Workshop.
[147] Relatório OCDE 2015, p. 31. Esse sistema tem se mostrado bastante exitoso, tendo em vista que seis acordos coletivos foram ajuizados perante o Tribunal Recursal de Amsterdã. Desses, cinco foram declarados de efeito vinculante e seus valores alcançam o montante de EUR 1 bilhão por acordo, a exemplo do que ocorreu no caso dos produtos de investimento Dexia.
[148] Id., p. 16. A ACCC possui Programa de Leniência que garante imunidade sancionatória (criminal e administrativa) à primeira empresa que buscar a autoridade para relatar cartel e cooperar com a investigação, fornecendo informações e provas. A assinatura do Acordo possibilita inclusive a concessão de “derivative immunity” para funcionários, diretores e oficiais relacionados à empresa beneficiária da leniência.
[149] A ACCC é uma autarquia independente criada por lei, que tem sua atuação guiada pelo Competition and Consumer Act – CCA, de 2010. Além de promover a concorrência e o comércio justo, a ACCC desempenha também papel regulatório da infraestrutura nacional australiana. A aplicação de penalidades depende de processo judicial, de modo que o Federal Court of Australia é o órgão responsável por decidir sobre violações ao CCA. Em casos de cartéis, sujeitos à responsabilização criminal, a ACCC pode ajuizar ação judicial requerendo a punição dos infratores. Para casos menos graves, porém, a ACCC dispõe de alguns instrumentos administrativos, tais como as resoluções administrativas (“administrative resolutions”) e as notas de infração (“infringiment notices”). Ver Contribuição da Austrália para o Relatório OCDE 2015, p. 2. Disponível em:
[150] ACCC v Visy Industries Holdings Pty Limited (No 3) [2007] FCA 1617.
[151] Federal Court Rules 2011, Part 20: Discovery and inspection of documents. Disponível em:
https://www.legislation.gov.au/Details/F2011L01551/Html/Text#_Toc297989753
Division 20.1 General 20.01 Withholding documents on public interest grounds This Part does not affect any rule of law under which a document may be withheld on the ground that its disclosure would injure the public interest. 20.02 Privilege An order made under this Part does not require the person against whom the order is made to produce any document that is privileged. 20.03 Undertakings or orders applying to documents (1) If a document is read or referred to in open court in a way that discloses its contents, any express order or implied undertaking not to use the document except in relation to a particular proceeding no longer applies. (2) However, a party, or a person to whom the document belongs, may apply to the Court for an order that the order or undertaking continue to apply to the document.(…) Division 20.2 Discovery 20.11 Discovery must be for the just resolution of the proceeding A party must not apply for an order for discovery unless the making of the order sought will facilitate the just resolution of the proceeding as quickly, inexpensively and efficiently as possible. 20.12 No discovery without court order (1) A party must not give discovery unless the Court has made an order for discovery. (2) If a party gives discovery without being ordered by the Court, the party is not entitled to any costs or disbursements for the discovery. (…)”
[152] Contribuição da Austrália ao Relatório OCDE 2015, p. 8.
[153] Competition and Consumer Act (CCA), 2010. Disponível em:
https://www.accc.gov.au/about-us/australian-competition-consumer-commission/legislation
[154] ACCC immunity and cooperation policy for cartel conduct (2014). Disponível em:
https://www.accc.gov.au/system/files/884_ACCC%20immunity%20and%20cooperation%20policy%20for%20cartel%20conduct_FA2.pdf “Step 4. Confidentiality 50. The ACCC will use its best endeavours to protect any confidential information provided by an immunity applicant, including the identity of the immunity applicant, except as required by law and in accordance with sections 155AAA, 157B and 157C (protected cartel information provisions) of the CCA. In relation to criminal matters disclosure obligations may require the ACCC and the CDPP to disclose such information. 51. The ACCC may be able to claim privilege and/or public interest immunity to protect confidential information from disclosure. 52. The applicant and its legal representatives are required to keep confidential both the fact that the party has applied for immunity and any information they have obtained through cooperating with the ACCC, except as required by law or with the consent of the ACCC.”
[155] Id., p. 5.
[156] Idem. Segundo Contribuição da Austrália para o Relatório OCDE 2015, os tribunais não têm entendido as settlement hearings (quando os participantes de cartel confessam sua participação) como prova de fato. A proposta de revisão da lei de concorrência australiana sugere incluir as settlement hearings como prova, mas a autoridade teme que isso enfraqueça o programa de settlements. Contribuição da Austrália para o Relatório OCDE 2015. Disponível em:
[157] Guia Baker & McKenzie 2015, p. 21.
[158] Contribuição da Austrália ao Relatório OCDE 2015, p. 2.
[159] Guia Baker & McKenzie 2015, p. 17.
[160] Id. A Seção 87 permite aos tribunais compensarem vítimas por perdas sofridas em razão da violação de seus direitos, incluindo indenização, bem como meios alternativos.
[161] Relatório OCDE 2015, p. 20.
[162] O Competition Bureau é um órgão com competência investigativa. Após a investigação, a autoridade decide se abre um processo contra as partes investigadas perante o Competition Tribunal, que possui, por sua vez, competência adjudicatória. Portanto, em casos de infrações administrativas como abuso de posição dominante ou restrições verticais, o Bureau demanda contra as partes, na esfera administrativa, perante o Competition Tribunal. Em casos mais graves, em que a conduta é tipificada como crime (a exemplo de cartéis), o Competition Bureau reporta o caso ao Attorney General, que atuará como órgão acusador em eventual ação penal perante o Poder Judiciário.
Ver http://www.competitionbureau.gc.ca/eic/site/cb-bc.nsf/eng/h_00125.html.
[163] Guia Baker & McKenzie, p. 41.
[164] Contribuição do Canadá ao Relatório da OCDE 2015. Disponível em:
http://www.competitionbureau.gc.ca/eic/site/cb-bc.nsf/eng/03926.html.
[165] Não obstante tais regras de confidencialidade, o Judiciário pode, no caso concreto, requerer acesso às informações confidenciais do Bureau. No caso Simon Jacques c. Les Pétroles Therrien Inc., julgado em 2008 pela Suprema Corte do Canadá, havia uma ação coletiva indenizatória movida por representantes de consumidores lesados por um cartel investigado pelo Competition Bureau e pelo Public Prosecution Service of Canada. As duas agências possuíam interceptações telefônicas de membros do cartel, e os autores da ação privada de ressarcimento requisitaram acesso aos áudios. A Corte Superior de Quebec decidiu em prol dos consumidores e determinou a concessão do acesso aos áudios. Após o recurso, a Suprema Corte manteve a decisão anterior e ordenou que as autoridades antitruste disponibilizassem as interceptações telefônicas aos litigantes na ação indenizatória, afirmando que seria constitucional a discricionariedade das Cortes para determinar o discovery de informações. Vale notar que, apesar de se tratar de informações confidenciais obtidas em investigação, nesse caso particular, as informações não foram fornecidas por beneficiário de Acordo de Leniência.
[166] The Communication of Confidential Information under the Competition Act, 10 de outubro de 2007. Disponível em:
http://www.competitionbureau.gc.ca/eic/site/cb-bc.nsf/eng/03597.html#s7_1.
[167] Id. As exceções a essa política são as seguintes: (a) informações cuja divulgação é determinada por lei; (b) informações cuja divulgação é necessária para o exercício dos poderes investigativos do Bureau ou de outra agência governamental; (c) casos em que a parte concorda com a divulgação ou ela própria já publicou a informação; e (d) casos em que a divulgação é necessária para evitar a prática de algum crime grave. O Comunicado de 2007 também afirma que a autoridade canadense não disponibilizará informações a autoridades estrangeiras sem o consentimento da parte, e que tomará todas as medidas cabíveis para garantir a confidencialidade das informações recebidas em sede de Acordo de Leniência.
[168] Segundo o Programa de Leniência do Competition Bureau, a primeira pessoa ou empresa a relatar um cartel ainda não conhecido pela autoridade recebe imunidade sancionatória (incluindo criminal), desde que confesse a infração e coopere com a investigação. Além disso, os postulantes subsequentes podem receber diminuição na sanção aplicada se confessarem a prática e contribuírem com a investigação.
[169] Contribuição do Canadá ao Relatório da OCDE 2015, p. 4.
[170] O Tribunal Recursal do Bristish Columbia no caso Sun-Rype declarou que a defesa “passing-on” não se aplica no Canadá, e que, portanto, o representado não pode argumentar que o autor não sofreu danos simplesmente porque o sobrepreço foi repassado para terceiros (consumidores finais). Ver Guia Baker & McKenzie 2015, p. 45.
[171] Para exceções à regra geral de dois anos, ver Guia Baker & McKenzie, p. 42.
[172] No Canadá, os prazos de prescrição são baseados em princípios de “discovery”. Isso significa que o prazo de dois anos não se inicia até que o consumidor potencialmente lesado tenha conhecimento da causa de ação. Alternativamente, pode ser considerado como termo inicial da contagem da prescrição o dia em que seja razoável supor que tal consumidor tenha tomado conhecimento sobre a conduta. Ver Foer, A. A. e Cuneo, J. W., The International Handbook on Private Enforcement of Competition Law (2012), Edição de Edward Elgar & American Antitrust Institute.
[173] Cf. art. 36, Lei nº 12.529/2011.
[174] O Ministério Público Federal e/ou Estadual, tradicionalmente, atua como interveniente nos Acordos de Leniência celebrados pelo CADE, de modo a garantir o não oferecimento da denúncia criminal com relação à pessoa física beneficiária do acordo (cf. art. 4º, II, Lei nº 8.137/1990). Cumprido o Acordo de Leniência, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes objeto do acordo (cf. artigo 87 da Lei nº 12.529/2011).
[175] Id.
[176] Segundo o art. 29 da antiga Lei de Defesa da Concorrência: “Os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação." A mesma redação está prevista no artigo 47 da Lei nº 12.529/2011. Além da Lei de Defesa da Concorrência, a possibilidade de ressarcimento por danos está prevista no art. 927 do Código Civil.
[177] Ver Carvalho, L. C. L. G. D. Fundação “Responsabilidade Civil Concorrencial: a Busca pela Efetiva Reparação de Danos” (FGV Direito Rio, 2011). Disponível em:
[178] Cf. apontado por Machado (2015), pág. 116.
[179] Ver a contribuição do Brasil ao Relatório OCDE 2015. Disponível em:
[180] “Tendo em vista a necessidade de estimular e promover o ajuizamento de ações privadas pelas vítimas do cartel, entendo necessário divulgar essa possibilidade junto aos potenciais interessados.” Cf. item 7.3, p. 126 e ss. do voto do ex-Conselheiro-Relator Fernando Furlan, no Processo Administrativo nº 08012.009888/2003-70, julgado em 1º de setembro de 2010. As representadas foram condenadas a uma multa total de 2,9 bilhões de reais, uma das mais elevadas da história da autarquia. A decisão final do Cade foi enviada aos seguintes consumidores: Conselho Federal de Medicina, CNI, Associação Nacional de Hospitais Privados, Federação Brasileira de Hospitais, Ministério da Saúde, Ministério das Cidades e Sabesp.
[181] Trata-se da Ação Civil Coletiva nº 7099345-90.2009.8.13.0024, ajuizada em 15 de maio de 2009 pela Associação dos Hospitais de Minas Gerais em face da empresa White Martins Gases Industriais Ltda. e outros, em trâmite na 28ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte. Em decisão liminar de primeiro grau, a juíza Iandara Nogueira ordenou que as empresas condenadas pelo Cade parassem de cobrar sobrepreço na venda de gases industriais e medicinais e deferiu a produção de prova pericial para calcular o montante superior pago pelos hospitais em decorrência do cartel. Em 2011, as representadas ajuizaram o Agravo de Instrumento nº 1.0024.09.709934-5/012 na 13ª Câmara Cível, relatoria do Des. Nicolau Masselli, no qual as agravantes suscitaram prescrição e, alternativamente, solicitaram que fosse indicado um profissional graduado em economia para realização da prova técnica. Em 05 de outubro de 2011, o agravo foi negado e os autos remetidos ao juiz da primeira instância.
[182] A Ação Civil Pública nº 0000233-25.2011.403.6100 para ressarcimento de danos em decorrência do cartel dos gases, ajuizada na 21ª Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), foi extinta em abril de 2011, sem julgamento de mérito, pelo juiz Maurício Kato, da 21ª Vara Federal Cível de São Paulo, sob o fundamento da ilegitimidade da Sabesp para ajuizar ACP na defesa de direito difuso ou coletivo.
[183] A Ação Coletiva nº 0002983-48.2012.4.03.6105 foi ajuizada pelo MPF na 3ª Vara Federal da Seção Judiciária de Campinas/SP contra as seguintes empresas: Linde Gases Ltda.; AGA S.A.; Air Liquide Brasil Ltda.; Air Products Brasil Ltda.; Indústria Brasileira de Gases Ltda. e White Martins Gases Industriais Ltda. Requereu-se reparação “em valor pelo menos igual ao montante total dos danos materiais e morais de caráter individual”. A ação também incluiu o Cade no polo passivo, para apresentação de documentos, e a União Federal.
[184] Processo administrativo nº 08012.011142/2006-79, julgado em 28 de maio de 2014 com relatoria do Conselheiro Alessandro Octaviani. Representadas: Lafarge, Cimentos Liz, Holcim, Votorantim Cimentos, InterCement, Cimpor, Itabira, Itambé, Abesc, ABCP e SNIC, além de executivos ligados a essas empresas. As multas aplicadas a seis empresas, seis pessoas físicas e três associações somaram R$ 3,1 bilhões.
[185] Processo nº 0105302-66.2012.8.20.0001, 3ª Vara Cível de Natal/RN. Para mais detalhes, ver Gabbay, D. M. e Pastore, R. F., “Demandas Indenizatórias por Danos Causados por Cartéis no Brasil: um Campo fértil aos Mecanismos Consensuais de Solução de Conflitos”, Revista de Arbitragem e Mediação (DTR, 2014), vol. 43, p. 14 e ss.
[186] Existem, ao menos, seis ARDC decorrentes de processos administrativos não iniciados por Acordo de Leniência. Tais ações, ainda pendentes de julgamento final, foram ajuizadas por consumidores ou pelo Ministério Público e ocorreram nos seguintes mercados: (i) cimentos; (ii) gases industriais e/ou medicinais; (iii) genéricos; (iv) combustíveis; (v) extração de areia; e (vi) aço. Ver Martinez, Ana Paula e Araújo, Mariana Tavares, “Private Damages in Brazil: Early Beginnings, Big Stumbling Blocks” (Janeiro, 2016), CPI, http://www.levysalomao.com.br/files/publicacao/anexo/20160201161034_1309160-1.pdf. No cartel de cimentos e de gases medicinais, o Cade impôs algumas das multas mais elevadas de sua história e expressamente recomendou em suas decisões que os prejudicados por esses cartéis buscassem a reparação dos danos sofridos por meio de demandas indenizatórias. Especificamente sobre esses dois casos, ver Gabbay, D. M. e Pastore, R. F. (2014), pp. 171-207. Vale mencionar que diversas ações de ressarcimento por danos concorrenciais também foram ajuizadas contra os participantes do “cartel de vergalhões de aço” (Processos nºs 2009.34.00.035755-7, 2009.38.00.015651-4 e 2009.34.00.029734-2, ajuizados na 13ª Vara Federal da Seção Judiciária do DF e Processo nº 002406984815-8, ajuizado na 22ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte/MG) e do “cartel das laranjas”.
[187] Trata-se do Processo nº 0116924-71.2012.8.26.0100, ajuizado na 33ª Vara Cível do Foro Central Cível de São Paulo, no qual a Electrolux do Brasil S.A. move ação de reparação de danos em face das empresas Whirlpool S.A. e Brasmotor S.A. (compromissárias de TCC firmados com o Cade). Em 15 de julho de 2014, foi proferida sentença que julgou a ação extinta com resolução do mérito em relação à Whirlpool S.A. e à Brasmotor S.A. Já em 08 de março de 2016, a Terceira Turma do STJ julgou o Recurso Especial nº 1.554.986/SP, interposto pela Electrolux, definindo limite temporal da confidencialidade de dados de Acordo de Leniência firmado com o Cade. Decisão disponível em:
[188] Trata-se da ação de reparação de danos movida pelo governo do Estado de São Paulo em face da empresa Siemens, referente ao cartel que fraudou licitações do Metrô e da CPTM. A 7ª Vara da Fazenda determinou a emenda à ação de reparação de danos movida pelo Estado contra a Siemens, decisão mantida pela 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, em dezembro de 2013, para que fossem incluídas as demais empresas no polo passivo da demanda. Ver:
http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/tribunal-de-justica-rejeita-recurso-do-governo-paulista-no-caso-siemens/. Para mais informações, ver Souza, Nayara M. S., “Mecanismos de Proteção ao Programa de Leniência Brasileiro: um Estudo sobre a confidencialidade dos Documentos e a Responsabilidade Civil do Signatário à Luz do Direito Europeu” (Ed. Singular, 2014), Revista IBRAC, pp. 441.
[189] Cf. decisão proferida pela juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, em 05 de novembro de 2013. Ver Carvalho, M.C.; Credendio, J.E. “Justiça obriga Alckmin a refazer ação contra cartel” (2013), Folha de São Paulo. Disponível em:
[190] A primeira ação civil pública foi ajuizada em face de onze empresas e três ex-diretores do Metrô de São Paulo, sendo que o Ministério Público requereu indenização de R$ 2,49 bilhões pelos prejuízos causados aos cofres públicos nas reformas dos trens das linhas em referência. Ver G1, “MP quer que empresas paguem R$ 2,5 bilhões por cartel no Metrô de SP”, 26 de maio de 2014. Disponível em:
[191] A segunda ação civil pública foi ajuizada também em face de onze empresas envolvidas no cartel dos trens de São Paulo. Nessa ação, o Ministério Público pedia a anulação dos contratos celebrados com a CPTM entre 2001 e 2002, a devolução integral dos valores recebidos por força dos contratos (R$ 374.935.419,88), e o ressarcimento integral dos danos morais difusos (multa estimada no valor de R$ 112.480.625,97, correspondente a 30% da soma dos valores nominais dos contratos supramencionados). Ver Ação Civil Pública proposta pelo MP/SP na Vara da Fazenda Pública de São Paulo. Disponível em:
http://www.mpsp.mp.br/portal/pls/portal/!PORTAL.wwpob_page.show?_docname=2555380.PDF, págs. 38-42.
[192] A terceira ação civil pública foi ajuizada em face da CPTM e de nove empresas (Siemens, Alstom, CAF Brasil Indústria e Comércio, Trans Sistemas de Transportes, Bombardier Transportation, MGE, Temoinsa do Brasil, Empresa Tejofran de Saneamento e Serviços e MPE). Nessa ação, o MP/SP requereu o pagamento de danos no valor de R$ 918 milhões e a dissolução das empresas para que não atuassem mais no Brasil. Ver “Promotoria pede dissolução d