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NOTA TÉCNICA Nº 26/2018/CGAA4/SGA1/SG/CADE
PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO Nº 08700.008318/2016-29
Representantes: Ministério Público do Estado de São Paulo e Daniel Braga Frederico
Representada: Uber do Brasil Tecnologia Ltda.
Advogados: Caio Mário da Silva Pereira; Daniel Tinoco Douek; Luiz Guilherme Ros e outros(as)
EMENTA: Procedimento Preparatório. Representantes: Ministério Público do Estado de São Paulo e Daniel Braga Frederico. Representada: Uber do Brasil Tecnologia Ltda. Supostas práticas de “dumping”, de formação de cartel e de influência à adoção de conduta comercial uniforme. Transporte remunerado privado individual de passageiros. Sugestão de arquivamento nos termos dos arts. 13, IV, e 66, §4º, da Lei Federal nº 12.529/2011 c/c os art. 179, §4º, do Regimento Interno do Cade.
VERSÃO PÚBLICA
Trata-se de Procedimento Preparatório de Inquérito Administrativo (“PP”) instaurado, por meio do Despacho Ordinatório CGAA4 (doc. Sei nº 0302296), nos termos do artigo 66, §6º, da Lei Federal nº 12.529/2011 (“Lei de Defesa da Concorrência” ou “LDC”), em desfavor da Uber do Brasil Tecnologia Ltda. (“Representada” ou “Uber”), a partir de petição do Ministério Público do Estado de São Paulo (“MP/SP”) que encaminhou denúncia recebida por aquele parquet (doc. Sei nº 0280250). Além disso, em razão da semelhança entre o escopo das supostas práticas relatadas, a “Denúncia Uber” (doc. Sei nº 0302529), apresentada por Daniel Braga Frederico por meio do Clique Denúncia do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”), foi juntada aos presentes autos em cumprimento ao Despacho Ordinatório CGAA4 (doc. Sei nº 0302421).
A denúncia encaminhada pelo MP/SP foi apresentada pela Associação de Motoristas Autônomos de Aplicativos (“AMAA”) e narra supostas práticas de “dumping”, de formação de cartel e de influência à adoção de conduta comercial uniforme desenvolvidas pela Uber. Além disso, a referida denúncia questiona: i. a legalidade do Decreto Municipal nº 56.981, de 10 de maio de 2016, da Prefeitura do Município de São Paulo (“Decreto nº 56.981/2016”), afirmando que o mesmo é um risco à concorrência e contrário ao art. 170 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (“CF/1988”); e ii. a possível existência de relação trabalhista entre a Uber e os seus motoristas cadastrados. Em breve síntese, é alegado que a Uber:
promoveria uma espécie de “dumping” às custas dos motoristas ao praticar preços inferiores aos custos daqueles.
ajustaria e manipularia um preço único para todos os prestadores de serviço;
controlaria preços artificialmente;
promoveria campanhas e influenciaria preços com adoção de uma conduta comercial uniforme e concertada entre os motoristas autônomos; e
em certos momentos, utilizaria um fator multiplicador (conhecido, popularmente, como “preço dinâmico” ou “tarifa dinâmica” e, doravante denominado de “multiplicador de preço”) que aumentaria seus próprios lucros e também os lucros dos motoristas, o que, por fim, levaria a insatisfação e prejuízo de passageiros, os quais não estariam possibilitados de encontrar motoristas mais econômicos em tais situações.
Por sua vez, a “Denúncia Uber” (doc. Sei nº 0302529), ao afirmar que os motoristas parceiros da Uber seriam concorrentes em um mesmo mercado relevante, levanta as seguintes indagações, in verbis:
“1. O que o UBER termina por promover, mesmo que isto ocorra de forma não intencional, pode ser considerado um cartel dos ‘motoristas parceiros’? 2. Segundo o que consta da matéria acima referida,[1] podem estar configuradas evidências de falseamento ou prejuízo à livre concorrência (art. 36, I, da Lei n.º 12.529/11)? 3. O aplicativo UBER pode terminar por gerenciar um ajuste de preços entre concorrentes (art. 36, §3º, I, ‘a’, da Lei nº 12.529/11)? 4. Através do aplicativo UBER pode-se estar a promover ou influenciar conduta comercial concertada entre concorrentes (art. 36, §3º, II, da Lei n.º 12.529/11)?”
A partir das alegações contidas em ambas as denúncias, esta Superintendência-Geral do Cade (“SG/Cade”) oficiou a Uber (Ofício nº 798/2017/Cade, doc. Sei nº 0302343) com o objetivo de garantir o contraditório ao possibilitar que a mesma se manifestasse nos autos. Na resposta apresentada ao ofício em tela (versão restrita ao Cade – doc. Sei nº 0321882 – e versão pública aos Representantes – doc. Sei nº 0342059), a Uber sustenta, inicialmente, que “oferta apenas uma solução tecnológica que integra motoristas e usuários que buscam uma alternativa de mobilidade”[2] e, por esse motivo, não atuaria no mesmo mercado relevante dos motoristas.
Além disso, antes de rebater pontualmente as alegações contidas nas denúncias mencionadas acima, a Uber elucida questões referentes aos preços de viagens cobrados por seu aplicativo, afirmando que os mesmos são definidos por um algoritmo que considera o tempo estimado a ser gasto no trajeto e a distância a ser percorrida, podendo, quando se verifica um desequilíbrio entre o número de passageiros usuários do serviço e o número de motoristas disponíveis na região, incidir um multiplicador. Em outras palavras, o preço a ser cobrado do passageiro usuário dependeria, em regra, do tempo estimado e da distância percorrida em uma determinada viagem. Contudo, quando há mais passageiros usuários demandando corridas do que motoristas parceiros disponíveis em determinada região, o algoritmo aplicaria o multiplicador de preço.
Sobre os preços cobrados e, consequentemente, sobre o algoritmo e o multiplicador de preço, a Uber alega que:
o algoritmo utilizado, “além de seguir a livre formação da oferta e demanda, é benéfico ao consumidor, pois, com o aumento de demanda em dada região, o preço da viagem aumenta, o que atrai mais motoristas ao local para suprir a demanda dos usuários.”[3] Nesse sentido, o multiplicador de preço reequilibraria, por fim, a relação entre demanda e oferta;
a ativação desse multiplicador seria transparente tanto para o motorista parceiro quanto para o passageiro usuário, os quais, além de conseguirem visualizar as áreas em que o mesmo está sendo aplicado, podem acessar o site da Uber e estimar o preço de uma viagem;[4]
(acesso restrito à Representada).[5]
Quanto às supostas práticas anticompetitivas denunciadas, a Uber pontua que:
por disponibilizar apenas plataforma tecnológica de intermediação de serviços de transporte remunerado privado individual de passageiros, não promoveria ou influenciaria à adoção de conduta comercial uniforme de seus motoristas parceiros, já que seus mecanismos de precificação são orientados pelas características do serviço prestado (tempo gasto e distância percorrida), “sem prejuízo da utilização de um multiplicador para tentar corrigir eventual desequilíbrio entre oferta e demanda”;[6]
os valores cobrados aos passageiros visariam remunerar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros prestado pelos motoristas parceiros e a intermediação de tais agentes pela Uber;
seria conferida a todos os motoristas parceiros cadastrados em sua plataforma a possibilidade de operar com outras plataformas, as quais utilizam condições e métodos de precificação distintos daqueles utilizados pela Uber. (acesso restrito à Representada);[7] e
por atuar em uma lógica de economia compartilhada de mercado de dois lados, a suposta prática de preços predatórios (ou “dumping”, como narrado em uma das denúncias) faria com que seus motoristas parceiros incorressem em prejuízo, o que, por fim, levaria os mesmos a deixar de operar com o aplicativo para prestar serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.
Ainda em resposta ao Ofício nº 798/2017/Cade, a Uber também alega que sua entrada no mercado brasileiro teria sido responsável por uma profunda reestruturação do serviços de transporte de passageiros do país, “trazendo nítidos benefícios ao consumidor deste serviço, (acesso restrito à Representada).”
Por último, esta SG/Cade enviou à Uber o Ofício nº 3788/2018/Cade, o qual solicitou informações referentes a possíveis alterações, promovidas em junho de 2018,[8] quanto a sua forma de cobrança aos motoristas. Em síntese, a Uber afirmou que:
“as alterações no modelo de pagamento dos motoristas parceiros não acarretarão aumento do valor do serviço para o usuário”;[9]
o preço pago pelos motoristas parceiros pela utilização da plataforma tecnológica Uber passará a ser variável; e
com isso, o valor a ser recebido pelos motoristas parceiros em razão da realização de uma corrida também será variável, dando mais peso “aos principais fatores determinantes de precificação: tempo de viagem e distância percorrida.”[10]
Para buscar demonstrar o maior peso atribuído ao tempo de viagem e à distância percorrida nesse novo modelo variável de valores a serem recebidos pelos motoristas parceiros em razão da realização de uma corrida, a Uber apresentou o seguinte exemplo fictício de uma corrida com origem e destino idênticos:
Figura 1. Exemplo de corrida com origem e destino idênticos, mas com tempo de viagem e distância diferentes, no novo modelo variável de pagamento dos motoristas.
Fonte: Representada (Fl. 6, doc. Sei nº 0519817).
Por fim, a Uber sustentou que a “alteração (...) estabelece maior proporcionalidade com as características da viagem efetivamente realizada (tempo e distância).”[11]
É o relatório.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE CONCORRENCIAL DE MERCADOS INOVADORES E DE VÁRIOS LADOS
2.1. Considerações Iniciais
As denúncias que motivaram a instauração do presente PP dizem respeito à atuação da Uber no mercado de serviços de transporte remunerado privado individual de passageiros, conforme denominação dada pela Lei Federal nº 13.640/2018.[12]
Tratam-se, portanto, de possíveis condutas anticompetitivas derivadas de um modelo de negócios que sequer existia há alguns anos. Por isso, parece ser imprescindível, antes de se debruçar sobre a análise do caso concreto, tecer algumas breves considerações sobre a análise concorrencial de mercados inovadores e de vários lados.
2.2. Mercados e plataformas de vários lados
Expressões como mercados de dois-lados e plataformas de vários lados, oriundas, respectivamente, do inglês “two-sided markets” e “multi-sided platforms”, tem aparecido frequentemente no âmbito do Direito Concorrencial. Debates em torno desses temas certamente se intensificaram em razão do surgimento de serviços inovadores que apresentam características próprias, diferentes daquelas observadas, por exemplo, em mercados tradicionais, nos quais a relação entre consumidor e fornecedor é estabelecida de maneira direta.
Importantes considerações a respeito do modelo de concorrência observado em mercados de vários lados foram apresentadas, inicialmente, por Jean-Charles Rochet e Jean Tirole, no artigo seminal “Platform Competition in Two-Sided Markets”.[13] Nesse artigo, é sustentado que, em vários mercados nos quais se observa a presença de externalidades de rede,[14] nota-se a presença de algum tipo de plataforma comum que possibilita a interação de dois tipos de agentes econômicos interdependentes.
No entanto, os referidos autores destacam que definir um mercado de vários lados apenas com base na existência de uma plataforma, capaz de colocar a bordo todos os agentes interdependentes, pode tornar tal definição indesejavelmente ampla. Considerando isso, defendem ser imprescindível uma análise quanto à estrutura de preços adotada por determinada plataforma para, portanto, definir os mercados de vários lados.
Diversos outros autores tem se debruçado na tentativa de buscar uma definição mais precisa para “mercados de vários lados”.[15] Mesmo assim, é impossível afirmar que existe uma definição comum unanimemente aceita.[16]
Contudo, é razoável concluir a respeito da existência de um consenso quanto às seguintes características de mercados de vários lados:
a presença de dois ou mais grupos de consumidores;
esses grupos de consumidores dependem, de alguma maneira, uns dos outros;
no entanto, essa mera atração de um grupo por outro dificilmente gera valor por si só, o que acaba atravancando a interação entre tais grupos;
logo, é necessária a presença de uma plataforma capaz de gerar valor na referida atração, viabilizando, por fim, a interação entre os diferentes grupos.
Considerando isso, cumpre destacar alguns exemplos de mercados de vários lados, com seus respetivos grupos interdependentes e plataformas:
Quadro 1. Exemplos de mercados de vários lados.
PLATAFORMA |
GRUPOS DE INTERAÇÃO |
Jornais |
Leitores e anunciantes |
TV |
Telespectadores e anunciantes |
Cartões de crédito |
Consumidores e lojistas |
Consoles de video games |
Jogadores e publishers de games |
Serviços de aluguel de imóveis |
Locatários e proprietários |
Empresas de rede de transporte |
Passageiros e motoristas |
Elaboração própria. Fonte: EVANS, David S.; SCHMALENSEE, Richard. Matchmakers: The new economics of multi-sided platforms. Boston: Harvard Business Review Press, 2016 (com alterações).
A partir do exposto, é razoável concluir que o PP ora analisado tem como objeto um mercado de vários lados, no qual a plataforma Uber (ou qualquer outra empresa de rede de transporte) promove a interação entre passageiros e motoristas.
2.2.1. Empresas de rede de transporte[17] e a atual regulação brasileira
As discussões acerca de mercados de vários lados podem ganhar contornos ainda mais específicos e delimitados quando, por exemplo, apenas determinada plataforma é analisada. Essa é a situação, inclusive, a ser enfrentada pela presente Nota Técnica.
Nesse sentido, conforme já afirmado, as supostas práticas descritas nas denúncias que originaram o presente PP inserem-se no contemporâneo debate legal e concorrencial a respeito de empresas como a Uber, em virtude de sua característica de empresa de rede de transporte (“ERT”) que trabalham com motoristas parceiros não-taxistas.
O termo ERT, adaptado do inglês TNC (“Transportation Network Company”), foi cunhado pela recente legislação estadunidense que regulamenta a Uber e outras empresas que desenvolvem atividades semelhantes e será empregado aqui, em razão principalmente da ausência de unanimidade quanto à nomenclatura ideal, para se referir genericamente às empresas desse tipo.[18] Esclarece-se, no entanto, que o termo será utilizado apenas, convenientemente, para denotar o modelo de negócios específico desse tipo de empreendimento. Destaca-se, ainda, que o Decreto nº 56.981, atacado por uma das denúncias ora analisada, denominou as empresas que desenvolvem esse modelo de negócios como “Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas – OTTCs”.[19] Por sua vez, a Lei Federal nº 13.640/2018, responsável por regulamentar o transporte remunerado privado individual de passageiros, denominou tais empresas de aplicativos ou plataformas de comunicação em rede.[20]
As ERTs surgiram no decorrer da última década e foram possibilitadas pelo surgimento e massificação de algumas tecnologias essenciais, notadamente os smartphones dotados de conexão com Internet e sistema de posicionamento global (“GPS”), sendo a Uber possivelmente a primeira ERT.[21] O modelo de negócios desse tipo de empresa aproxima-se da operação de uma plataforma de um mercado, no caso, de dois lados. Por meio dos smartphones, as ERTs operam um aplicativo (“software”), que representa a própria marca da empresa e pode ser livremente baixado por seus futuros usuários. Esse usuário então se cadastra ou como motorista ou como passageiro. Assim, quando há a necessidade de se deslocar a algum lugar, o passageiro usuário pode então solicitar uma viagem, a qual é ou aceita ou rejeitada pelos motoristas parceiros. Se a viagem é aceita, há então uma prestação de serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros. Em síntese, a ERT conecta a demanda e a oferta de viagens entre os usuários cadastrados (motoristas parceiros e passageiros usuários), com a ressalva de que o preço-base não é livre, mas definido unilateralmente pela ERT, assim como outras políticas de prestação do serviço (padrões de qualidade, sistema de reputação e etc.). O modo de auferir receita pode variar, mas geralmente se dá na forma de percentual da taxa inicial fixa (o que seria equivalente à bandeirada do táxi) e do valor variável da viagem (proporcional ao tempo e à distância do trajeto). O valor não tarifado pela ERT, isto é, o restante do preço final, é então destinado ao motorista parceiro. A partir desse modelo de negócios, verifica-se que as ERTs não detêm nenhum veículo para que o serviço transporte remunerado privado individual de passageiros seja prestado, de modo que os carros utilizados nas viagens são invariavelmente de posse dos motoristas.
Percebe-se, portanto, que o modelo de negócios de uma ERT é relativamente semelhante ao de um aplicativo de táxi, possuindo, entretanto, algumas diferenças fundamentais:
o motorista parceiro não precisa, em regra, de licença, autorização, placa ou qualquer outra forma de outorga regulatória. Ou seja, as ERTs em geral não operam com taxistas. Os requisitos para aceitação de usuário como motorista parceiro são fixados pela própria ERT (como, por exemplo, ausência de antecedentes criminais e utilização de carro de acordo com o padrão do serviço). Além disso, o motorista parceiro pode escolher as viagens que quer prestar, o que, em geral, é vedado pela regulação de táxi; e ainda não pode, teoricamente, ou fazer ponto ou operar como táxi de rua;
em geral, a ERT é quem estabelece a precificação final e também a taxa que equivalerá à sua própria receita. Ainda, algumas ERTs, inclusive a Uber, utilizam, nas cidades com rede mais desenvolvida, um modelo que simula, em parte, o funcionamento de um mercado em tempo real, sendo que, nas horas de sobreoferta e/ou baixa demanda, o preço final da viagem abaixa e, nas horas de escassez de oferta e/ou excesso de demanda, o preço final aumenta.[22]
Em virtude, provavelmente, das inovações trazidas pelas ERTs, a entrada das mesmas em várias cidades no mundo foi acompanhada de intensas discussões sobre a legalidade e a conveniência social de sua atividade.
Esse intenso debate parece ter perdido força a partir da promulgação da Lei Federal nº 13.640/2018, a qual alterou a Lei Federal nº 12.587/2012, para, conforme já adiantado anteriormente, regulamentar o transporte remunerado privado individual de passageiros.
Cumpre ressaltar que a referida lei foi genérica ao dispor a respeito da regulamentação do serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros e, nesse sentido, definiu competências aos municípios e ao Distrito Federal, in verbis:
“Art. 2º. O inciso X do art. 4º da Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, passa a vigorar com a seguinte redação:
‘Art. 4º. (...)
X - transporte remunerado privado individual de passageiros: serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede. (...)’
Art. 3º. A Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 11-A e 11-B:
‘Art. 11-A. Compete exclusivamente aos Municípios e ao Distrito Federal regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do art. 4º desta Lei no âmbito dos seus territórios.
Parágrafo único. Na regulamentação e fiscalização do serviço de transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal deverão observar as seguintes diretrizes, tendo em vista a eficiência, a eficácia, a segurança e a efetividade na prestação do serviço:
I - efetiva cobrança dos tributos municipais devidos pela prestação do serviço;
II - exigência de contratação de seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT);
III - exigência de inscrição do motorista como contribuinte individual do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), nos termos da alínea h do inciso V do art. 11 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.
Art. 11-B. O serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros previsto no inciso X do art. 4º desta Lei, nos Municípios que optarem pela sua regulamentação, somente será autorizado ao motorista que cumprir as seguintes condições:
I - possuir Carteira Nacional de Habilitação na categoria B ou superior que contenha a informação de que exerce atividade remunerada;
II - conduzir veículo que atenda aos requisitos de idade máxima e às características exigidas pela autoridade de trânsito e pelo poder público municipal e do Distrito Federal;
III - emitir e manter o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV);
IV - apresentar certidão negativa de antecedentes criminais.
Parágrafo único. A exploração dos serviços remunerados de transporte privado individual de passageiros sem o cumprimento dos requisitos previstos nesta Lei e na regulamentação do poder público municipal e do Distrito Federal caracterizará transporte ilegal de passageiros.’”[23]
Logo, atualmente, é perfeitamente cabível concluir sobre a licitude dos serviços desenvolvidos pelas ERTs, agentes de mercado plenamente legítimos que devem, por conseguinte, observar aquilo que dispõe a Lei Federal nº 12.529/2011.
2.3. Regra per se e Regra da razão
Legislações antitruste são usualmente caracterizadas pela utilização de conceitos amplos e genéricos, dentro dos quais diversas situações fáticas podem ser enquadradas. No Brasil, essa tendência também é observada no art. 36 da LDC, o qual dispõe um rol exemplificativo de possíveis infrações à ordem econômica.
Na realidade, essa técnica legislativa acaba revestindo de segurança jurídica à atuação das autoridades antitruste, pois não engessa o rol de possíveis condutas anticompetitivas. Nesse sentido, destaca-se, inclusive, a “impossibilidade de se definir aprioristicamente todas as hipóteses de infração à ordem econômica, sobretudo em face da variação e da constante evolução das práticas empresariais.”[24]
Em razão da infinidade de práticas empresariais que podem ter efeitos anticompetitivos, a experiência acabou desenvolvendo diferentes formatos de análise de casos concretos:
“É pacífico na doutrina e na jurisprudência do Direito da Concorrência que inexiste um único modelo de análise capaz de dar conta da variedade e da complexidade das inúmeras práticas empresariais que podem gerar riscos concorrenciais, sendo necessário que cada espécie de conduta tenha sua potencialidade lesiva examinada de acordo com suas especificidades. É nesse contexto que se inserem as chamadas regras da razão e regra per se, importadas do direito do direito norte americano (...).”[25]
A utilização da chamada regra da razão surgiu quando a Suprema Corte norte-americana julgou o caso Standard Oil Co. of New Jersey v. United States, 221 U.S. 1, em 1911.[26] Naquela ocasião, a Suprema Corte norte-americana indicou que nem toda prática restritiva ao comércio deveria ser considerada ilícita. Com isso, a análise de restrições empresariais ao comércio passou a considerar a razoabilidade das mesmas.
Por conseguinte, uma análise antitruste pela regra da razão costuma verificar diversos fatores como, por exemplo, “a estrutura de mercado em que a conduta era praticada, os efeitos potenciais e concretos da restrição sobre o mercado, os propósitos que justificaram sua adoção, as eficiências produzidas etc.”[27]
Por sua vez, uma análise pela regra per se tende a ser mais simples, fazendo com que se caracterize o ilícito a partir das provas obtidas. Dessa forma, uma análise pela regra per se desconsidera possíveis alegações quanto à razoabilidade da prática restritiva ao comércio analisada.
Essa simplicidade que circunda a aplicação da regra per se só parece possível, no entanto, em razão da experiência adquirida a partir da análise de diversos casos, os quais foram capazes de concluir a respeito dos efeitos lesivos de determinadas práticas à concorrência:
“Geralmente, a regra per se é apropriada apenas depois que juízes já adquiriram uma longa experiência em relação à determinada conduta, concluindo que a mesma produz resultados lesivos e praticamente nenhum benefício à concorrência.”[28]
Regra da razão e regra per se não devem, portanto, ser entendidas como espécies de ilícitos concorrenciais. São apenas metodologias de análise, conforme já afirmado anteriormente, que facultam as autoridades antitruste a recorrer a uma das duas em casos concretos. Nesse sentido, destaca-se as considerações do ex-Conselheiro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva em seu voto no âmbito do Processo Administrativo nº 08012.009088/1999-48 (Representante: Conselho Regional de Farmácias do Distrito Federal – CRF/DF; Representados: Abbott Laboratórios do Brasil Ltda, Eli Lilly do Brasil Ltda. e outros):
“A despeito da confusão conceitual que normalmente se faz entre ilícitos per se e ilícitos determinados com auxílio da regra da razão, não há diferença substancial entre essas duas maneiras de caracterizar o ilícito antitruste. São, por certo, modalidades distintas de análise do fato, cuja peculiaridade consiste na profundidade que se queira exigir da prova da ilicitude. Não se opõem de maneira frontal, constituindo, antes, um contínuo, como uma escala na qual se determine o quantum probatório necessário a formar o convencimento do julgador. Assim, se é certo que algumas condutas, como, por exemplo, os hardcore cartels exigem provas muito simples para a caracterização do ilícito, outras formas de colusão podem demandar graus variados de profundidade na análise da potencialidade dos efeitos, (...).”[29]
Além de reiterar o fato de regra da razão e regra per se serem modalidades distintas de análise, o trecho retrotranscrito também permite verificar em que situações essas referidas metodologias de análise têm sido aplicadas na jurisprudência do Cade. Nesse sentido, por ora, basta apenas destacar a aplicação pacífica da regra per se em casos relativos a cartéis hardcore, acordos estabelecidos entre concorrentes para fixar essencialmente questões referentes a preço, quantidade e divisão territorial. Por sua vez, a regra da razão tende a ser aplicada, sobretudo, na análise de condutas unilaterais.
2.4. Ilícitos concorrenciais por objeto e por efeitos
Enquanto a regra da razão e a regra per se são modalidades distintas de análise antitruste, ilícitos concorrenciais por objeto e por efeitos dizem respeito a duas espécies de ilícitos concorrenciais.
Essa distinção entre as referidas espécies de ilícitos concorrenciais, prevista na LDC, foi inspirada no sistema europeu de defesa da concorrência e admite, portanto, a caracterização, como infração à ordem econômica, tanto de atos que tenham por objeto as condutas elencadas no caput do art. 36; quanto daqueles que possam produzir, ainda que potencialmente, os efeitos também descritos no caput do referido dispositivo legal.[30] Nesse sentido, cabe destacar que:
“Há, portanto, condutas cujo próprio objeto coloca em risco o ambiente concorrencial, por não ser possível vislumbrar, pelo menos em princípio, nenhum outro objetivo relacionado à prática que não a restrição à livre concorrência. (...)
De outra parte, a lei fala ainda nos chamados ‘ilícitos por efeitos’, em que a restrição à livre concorrência não emerge de forma tão cristalina, cabendo à autoridade antitruste a comprovação de sua potencialidade lesiva (...).”[31]
No entanto, é importante destacar que considerar determinada conduta como ilícito concorrencial por objeto não significa uma presunção absoluta de ilicitude, mas, apenas, uma presunção relativa. Assim, o ônus da prova é invertido, ficando a cargo do eventual representado do caso concreto. Nesse sentido, importante destacar as lições do voto-vista do ex-Conselheiro Marcos Paulo Veríssimo no Processo Administrativo nº 08012.006923/2002-18 (Representante: SDE ex officio; Representado: Associação Brasileira de Agências de Viagens do Rio de Janeiro):
“A presunção relativa dispensa, em outras palavras, que a autoridade administrativa se desencarregue da prova dos efeitos para determinação da ilicitude, e transfere para o próprio Representado o ônus de provar que a restrição à concorrência é acessória em relação a outro objetivo distinto e lícito, e que os potenciais benefícios advindos da persecução desse objetivo principal superam os riscos detectadas à concorrência.”[32]
Ou seja, mesmo quando verificada a prática de um ilícito concorrencial por objeto, deve-se apreciar os argumentos apresentados pelo agente responsável pela conduta em tela para, assim, pondera-los e, por fim, concluir quanto ao potencial lesivo da mesma em determinado caso concreto. Essa, inclusive, foi a percepção manifestada pelo ex-Conselheiro Relator Alexandre Cordeiro Macedo no Processo Administrativo nº 08012.000030/2011-50 (Representante: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro; Representado: Scar Rio Peças e Serviços Ltda., Multi Service de Duque de Caxias Comércio e Locação de Veículos Ltda., Toesa Service Ltda., Troiakar Danaren Oficina Multimarcas Ltda. e Peça Oil Distribuidora Ltda.):
“a presunção de ilegalidade pelo objeto, não significa que outras circunstâncias econômicas ou jurídicas não possam eventualmente ser levadas em consideração no sentido de se apurar o resultado líquido concorrencial, mas apenas que na distribuição de ônus processuais cabe ao acusado alegar e provar eficiências compensatórias.”
Dessa forma, é razoável concluir que, mesmo um ilícito concorrencial por objeto, pode ser analisado, em determinadas situações, sob o prisma da regra da razão, ponderando-se, portanto, os efeitos líquidos do mesmo ao mercado. Em outras palavras, a adoção da regra da razão na análise de ilícitos concorrenciais por objeto não é algo essencialmente incompatível.
2.5. Possíveis desafios da aplicação do Direito Concorrencial em mercados inovadores e de vários lados
Conforme observado acima, a Lei Federal nº 12.529/2011 adota um rol exemplificativo de possíveis infrações à ordem econômica. Dessa forma, sua aplicação pode ser verificada mesmo em face de condutas originalmente não previstas pelo legislador em razão, por exemplo, da constante evolução das diversas práticas empresariais e do surgimento de novos modelos de negócios,[33] como, por exemplo, aqueles desenvolvidos pelas ERTs.
Apesar dessa possibilidade, a aplicação do Direito Concorrencial em mercados marcados pelo surgimento de novos modelos de negócios e por inovações não é trivial, fazendo com que a tarefa das autoridades antitruste seja ainda mais desafiadora quando diz respeito a casos concretos inseridos em tais mercados:
“A ‘nova economia’ é um termo que abrange mercados caracterizados por inovação e mudança tecnológica rápidas (...). Os mercados da ‘nova economia’ apresentam desafios específicos para o Direito da Concorrência. Por exemplo, nesses mercados, a concorrência entre empresas não é normalmente tanto pelo preço, mas pela inovação (em uma espécie de ‘rivalidade schumpteriana’); as maneiras usuais para definição de mercados relevantes podem não funcionar bem, particularmente, se verificadas plataformas de vários lados; e a concorrência pode não acontecer no mercado, mas pelo mercados (...).”[34]
Essas dificuldades e os possíveis benefícios gerados por mercados inovadores, muitos caracterizados como mercados de vários lados,[35]-[36] não afastam, contudo, a aplicação do Direito Concorrencial. Nesse sentido, é possível destacar, por exemplo, a atuação de diversas autoridades antitruste em mercados de vários lados, conforme destaca o compilado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”), denominado de “Policy Roundtables: Two-sided markets”.[37]
Além disso, o Direito Concorrencial tem como características marcantes sua fluidez e sua constante evolução, fazendo com que inexista evidências robustas que sejam capazes de afastar sua habilidade de lidar com eventuais práticas anticompetitivas observadas em mercados inovadores.[38]
2.6. Conclusões quanto à análise concorrencial de mercados inovadores e de vários lados
Conforme afirmado acima, o Direito Concorrencial e a própria Lei Federal nº 12.529/2011 são caracterizados por elevada adaptabilidade. Dessa forma, é possível aplica-los em face das mais diversas práticas empresariais. Logo, as possíveis dificuldades que podem ser verificadas em análises antitruste em mercados inovadores e de dois lados não são capazes de afastar a competência administrativa do Cade sobre a livre concorrência.
Além disso, é inegável que as ERTs (como, por exemplo, a Uber, ora Representada) são agentes de mercado que atuam em um ambiente de concorrência e, também por isso, seus modelos de negócios e todas suas práticas empresarias podem ser analisadas sob o prisma da Lei Federal nº 12.529/2011.
Essa posição já havia sido, inclusive, manifestada por esta SG/Cade na Nota Técnica nº 35/2017/CGAA4/SGA1/SG/Cade no âmbito Processo Administrativo nº 08700.006964/2015-71 (Representantes: Diretório Central dos Estudantes Honestino Guimarães e Uber do Brasil Tecnologia Ltda.; Associação Boa Vista de Táxi – Ponto 1813, Sindicato dos Permissionários de Taxi e Motoristas Auxiliares do Distrito Federal, e outros), sendo corroborada, mais recentemente, no voto do Conselheiro Relator Mauricio Oscar Bandeira Maia no referido Processo Administrativo:
“42. Quando da elaboração da NT n° 35/2017, a Superintendência-Geral sustentou que, em meio ao cenário de indefinição – no mundo e no Brasil – acerca dos limites da legalidade das ERTs, a Uber, bem como outras empresas atuantes no mercado, deveriam ser consideradas agentes de mercado relevantes e atuantes em um ambiente de concorrência. Seriam, por isso, dotadas, de tutela perante o direito antitruste. A determinação da SG de tratar as empresas ERT como agentes legítimos atuantes no mercado só é reafirmada a partir da regulamentação proposta pela Lei Federal n° 13.640/18, já abordada acima.”
Nesse sentido, cumpre ao Cade e, particularmente, a esta SG/Cade a busca pela prevenção e repreensão de infrações à ordem econômica, independentemente, dos mercados nos quais as mesmas são observadas, conforme estabelece o art. 13 da LDC, in verbis:
“Art. 13. Compete à Superintendência-Geral:
I - zelar pelo cumprimento desta Lei, monitorando e acompanhando as práticas de mercado;
II - acompanhar, permanentemente, as atividades e práticas comerciais de pessoas físicas ou jurídicas que detiverem posição dominante em mercado relevante de bens ou serviços, para prevenir infrações da ordem econômica, podendo, para tanto, requisitar as informações e documentos necessários, mantendo o sigilo legal, quando for o caso;
III - promover, em face de indícios de infração da ordem econômica, procedimento preparatório de inquérito administrativo e inquérito administrativo para apuração de infrações à ordem econômica (...).”[39]
3. ANÁLISE CONCORRENCIAL DO PRESENTE PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO
Tendo em vista as competências delimitadas pela Lei Federal nº 12.529/2011, cumpre ao Cade e, particularmente, a esta SG/Cade a busca pela prevenção e repreensão de infrações à ordem econômica. Portanto, sequer devem ser analisadas aqui a legalidade do Decreto nº 56.981 e a existência de relação trabalhista entre a Uber e seus motoristas parceiros, as quais também são objeto de uma das denúncias ora analisadas.
Em outras palavras, o ordenamento jurídico brasileiro não parece conferir competência a sua autoridade antitruste para que a mesma questione a legalidade de decretos (como, por exemplo, o Decreto nº 56.981) e, tampouco, defina a respeito da existência ou não de relação trabalhista.
Sendo assim, a presente Nota Técnica focar-se-á em avaliar apenas as supostas infrações à ordem econômica alegadas nas denúncias pormenorizadas acima a fim de verificar se as mesmas podem configurar infrações à ordem econômica.
Além disso, é importante destacar que o desenvolvimento da análise empreendida, nesse momento, por esta Nota Técnica dispensa uma definição precisa de mercados relevantes, já que:
não haverá a necessidade de ser realizada a estimação das participações dos agentes econômicos envolvidos nas práticas examinadas a seguir; e
principalmente, a não definição precisa de mercados relevantes não prejudicará tudo aquilo que será exposto a seguir.
3.1. Suposta prática de “dumping”
A denúncia apresentada pela AMAA afirma que a Uber promoveria uma espécie de “dumping”[40] às custas dos motoristas ao praticar preços inferiores aos custos daqueles.
Conforme abordado anteriormente pela presente Nota Técnica, a Uber afirma que essa suposta prática faria com que seus motoristas parceiros incorressem em prejuízo, o que, por fim, levaria os mesmos a deixar de operar com o aplicativo para prestar serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros. Esse possível movimento de saída por parte dos motoristas parceiro, prejudicaria a própria Uber e, portanto, a alegada prática de dumping seria irracional.
Esse argumento apresentado pela Representada merece prosperar. Nesse sentido, é irracional afirmar que todos os motoristas parceiros que utilizam o aplicativo da Uber tenham, constantemente, prejuízos ao utilizar a plataforma para prestar serviços de transporte remunerado privado individual de passageiros, já que uma reiterada constatação de prejuízos desincentivaria os mesmos a continuar utilizando a plataforma em tela para prestar tais serviços.
De todo modo, é possível que, em determinadas ocasiões (como, por exemplo, ocorrência de colisões, detecção de problemas mecânicos no veículo, multas derivadas de infrações de trânsito e etc.), as margens obtidas pelos motoristas parceiros da plataforma da Uber venham a ser menores do que as habituais e, no limite, sejam verificados prejuízos pelos mesmos.
No entanto, os custos e, por conseguinte, lucros e eventuais prejuízos são de responsabilidade de cada motorista parceiro cadastrado na plataforma Uber, o qual optou pela utilização da mesma na prestação de serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.
Além disso, motoristas parceiros da plataforma que venham a verificar constantes prejuízos são aqueles que, possivelmente, apresentam custos maiores do que os outros motoristas parceiros concorrentes. Ou seja, aqueles motoristas são menos eficientes do que estes. Nesse sentido, a eliminação daqueles motoristas parceiros do mercado seria observada em razão de suas próprias ineficiências, decorrentes, por exemplo, da utilização de modelos de automóveis menos econômicos.
Logo, as alegações de suposta prática de “dumping” (de preço predatório, conforme entendimento manifestado na nota de rodapé nº 27) às custas dos motoristas não merecem prosperar.
3.2. Possíveis práticas restritivas à concorrência derivadas do modelo de negócios da Uber
Tanto a denúncia apresentada pela AMAA quanto a Denúncia Uber possuem caráter bastante genérico. Por isso, antes de analisar quais seriam as outras supostas e possíveis práticas restritivas à concorrência derivadas do modelo de negócios desenvolvido pela Representada, é imprescindível identifica-las de maneira mais pontual. Para tanto, buscar-se-á diferenciar brevemente as seguintes condutas anticompetitivas: cartéis horizontais; cartéis hub and spoke; e influência à adoção de conduta comercial uniforme.
Inicialmente, a diferenciação entre as referidas condutas considerará a forma de organização de mercados tradicionais, ou seja, mercados em que a relação entre fornecedores e consumidores é estabelecida de maneira direta, como, por exemplo, aquela existente entre distribuidor e varejistas.
A partir disso, abordar-se-ão, em seguida, as referidas condutas considerando as possíveis peculiaridades a serem observadas quando as mesmas estão inseridas em mercados de dois lados, como é definido, conforme afirmado anteriormente, o mercado no qual a Representada está inserida.
3.2.1. Cartéis horizontais, cartéis hub and spoke e influência à adoção de conduta comercial uniforme
Tipicamente, cartéis são caracterizados como um tipo de conduta horizontal. Isto é, a prática diz respeito a um acordo, visando uma atuação coordenada, entre agentes econômicos que atuam em um mesmo mercado relevante, ou seja, entre concorrentes diretos uns dos outros.
No entanto, há situações em que um cartel pode assumir também um caráter vertical, nas quais poderiam estar configurados os chamados cartéis hub and spoke. Nessas ocasiões, verifica-se a presença de pelo menos um agente estabelecido, normalmente, em mercado à montante (por exemplo, um distribuidor) que atua para possibilitar a comunicação entre concorrentes, geralmente, de um mercado à jusante (como, por exemplo, varejistas).[41]
Percebe-se, dessa forma, que a configuração de um cartel hub and spoke prescinde da existência de comunicação direta entre concorrentes. A comunicação e, por conseguinte, a atuação coordenada desses agentes é viabilizada por intermédio de um outro agente (“hub”), não necessariamente estabelecido no mesmo mercado relevante daqueles.
Além disso, é importante ressaltar, por exemplo, que a mera comunicação entre os concorrentes intermediada por um hub não parece ser capaz, por si só, de configurar a existência de um cartel hub and spoke. Nesse sentido, cumpre citar, por exemplo, a atuação legítima de associações de classe quando respeitam os ditames da Lei Federal nº 12.529/2011.
Logo, para que um cartel hub and spoke seja configurado, parece ser necessário constatar que: i. toda a interação entre os agentes econômicos (hub e concorrentes) objetiva à atuação coordenada de concorrentes diretos; ii. estes concorrentes demonstrem ativamente interesse em uma atuação coordenada (fatores que, em conjunto, consubstanciariam um acordo tácito); e iii. existe troca de informações comercialmente sensíveis entre concorrentes diretos por intermédio do hub.
Esta SG/Cade, inclusive, já manifestou considerações nesse sentido na Nota Técnica nº 86/2015/CGAA6/SGA2/SG/Cade no âmbito do Processo Administrativo nº 08700.009879/2015-64 (Representante: Ministério Público do Estado de Santa Catarina; Representado: Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Estado de Santa Catarina, Ipiranga Produtos de Petróleo S/A e outros), in verbis:
“o conceito de ‘colusão hub and spoke’ (...) se caracteriza como um cartel (ou uma prática concertada anticompetitiva ilícita pelo próprio objeto), pelo qual um parceiro comercial comum funciona como ponto focal (‘hub’) para o compartilhamento de informações comercialmente sensíveis entre empresas concorrentes situadas em outra etapa da cadeia produtiva (‘spokes’). Em geral, o hub (‘centro’) é composto por uma ou mais empresas fornecedoras ou distribuidoras de um determinado bem/serviço – isto é, por empresas situadas no mercado à montante –, enquanto os spokes (‘raios’) são formados por empresas varejistas que comercializam o referido produto em etapa posterior da cadeia produtiva, ou para o consumidor final.
Por ter como um de seus elementos constitutivos o intercâmbio indireto de informações estratégicas entre concorrentes, a colusão hub and spoke também é conhecida – especialmente, no Reino Unido – como troca de informações A-B-C, que é um termo mais genérico, pois engloba também práticas concertadas, além de acordos anticompetitivos no âmbito de cartéis. Trata-se, em suma, da disseminação de informações estratégicas entre duas ou mais empresas concorrentes (‘A’ e ‘C’), por meio de um parceiro comercial comum (‘B’) que, apesar de não concorrer diretamente no mercado relevante, mantém relações de fornecimento ou de distribuição com ambos os concorrentes (‘A’ e ‘C’).[42]”[43]
No entanto, há situações em que a atuação uniforme de concorrentes pode ser verificada em razão de uma iniciativa própria, por exemplo, de um distribuidor, sem que seja observada a troca de informações concorrencialmente sensíveis entre os varejistas e, principalmente, sem o interesse destes na busca por uma atuação coordenada. Nesse contexto, poderia estar configurada a prática de influência à adoção de conduta comercial uniforme.
A prática de influência à adoção de conduta comercial uniforme é caracterizada, portanto, a partir da ação de determinado agente que visa induzir outros agentes a adotarem estratégias comerciais praticamente idênticas.[44] Trata-se, portanto, de uma típica conduta unilateral que, quando praticada por agente estabelecido em um elo diferente daquele no qual se encontram os agentes que serão influenciados, reveste-se de um caráter vertical.
A diferença entre cartéis, cartéis hub and spoke e a prática de influência à adoção de conduta comercial uniforme parece estar relacionada, basicamente, à verificação de um acordo e à troca de informações concorrencialmente sensíveis.[45] Nesse diapasão, acordo e troca de informações concorrencialmente sensíveis entre concorrentes são elementos praticamente imprescindíveis para configuração de cartéis hub and spoke. Enquanto isso, tais elementos não precisam ser verificados para que a prática de influência à adoção de conduta comercial uniforme seja verificada.
Além disso, é importante destacar que, tanto cartéis hub and spoke quanto condutas de influência à adoção de condutas comerciais uniformes podem constituir infrações à ordem econômica, conforme aquilo que dispõe o art. 36 da Lei Federal nº 12.529/2011.
Nesse sentido, cartéis hub and spoke poderiam ser enquadrados nas hipóteses dos incisos I e II do §3º do referido artigo. Mais precisamente, as condutas praticadas pelo agente que intermedia a troca de informações concorrencialmente sensíveis entre os concorrentes poderiam ser enquadradas no inciso II, §3º, do art. 36 da Lei Federal nº 12.529/2011. Por sua vez, as condutas praticadas pelos concorrentes, os quais possuem interesse ativo em se coordenar, poderiam ser enquadradas no inciso I, §3º, do referido artigo.
Enquanto isso, práticas de influência à adoção de condutas comerciais uniformes poderiam ser enquadradas no inciso II, §3º, também do artigo 36 da Lei Federal nº 12.529/2011.
Em relação as suas respectivas espécies e formas de análise pelo Cade, cartéis têm sido usualmente definidos como ilícitos concorrenciais por objeto analisados sob a regra per se.[46] Por sua vez, influência à adoção de conduta comercial uniforme também tem sido considerada como ilícito concorrencial por objeto que, no entanto, é compatível com uma eventual análise de outras circunstâncias econômicas ou jurídicas que podem ser consideradas na apuração do resultado líquido concorrencial da conduta.[47]
3.2.2. Cartéis horizontais, cartéis hub and spoke e influência à adoção de conduta comercial uniforme considerando o modelo de negócios desenvolvido por uma ERT
O presente PP diz respeito a supostas condutas anticompetitivas promovidas por empresa que desenvolve suas atividades, conforme afirmado acima, em um mercado de dois lados. Mais especificamente, a Representada atua como uma plataforma que funciona para que dois tipos de agentes interdependentes, no caso motoristas parceiros e passageiros usuários, interajam.
Inexiste, portanto, nas relações entre motoristas parceiros, Uber e passageiros usuários, uma cadeia produtiva em que valor é agregado a determinado produto e/ou serviço até que o mesmo seja ofertado ao consumidor final.
Cada um dos motoristas parceiros, a Uber e os passageiros usuários são agentes econômicos distintos que possuem seus próprios interesses. Dessa forma, cada um dos motoristas e a Uber podem auferir ou lucros ou prejuízos. Além disso, conforme afirmado acima, a Uber cobra, a partir de cada corrida realizada por um de seus motoristas parceiros, uma taxa sem dividir custos relacionados ao veículo utilizado na prestação dos serviços de transporte remunerado individual de passageiros. Por sua vez, os motoristas parceiros da Uber não dividem com a Representada qualquer risco relacionado a investimentos para o desenvolvimento e manutenção do aplicativo.
No entanto, o arranjo estabelecido pela Uber junto aos seus motoristas parceiros possui características bastante próprias que, de fato, permitem questionar se seu modelo de negócios seria estabelecido a partir de práticas restritivas à concorrência.[48] Esses questionamentos são, essencialmente, relacionados ao modo pelo qual a Uber, como plataforma, coordena a atuação dos motoristas parceiros.[49] Inclusive, essas são as supostas condutas anticompetitivas apontadas pelas denúncias encaminhadas a esta SG/Cade.
Apesar da necessidade de algum tipo de controle exercido por uma plataforma em mercados de vários lados, o mesmo pode variar em diferentes graus. De um lado, há plataformas que exercem um controle bastante reduzido e funcionam para, basicamente, facilitar a interação entre fornecedores e consumidores. Exemplos de plataforma que funcionam dessa maneira são o Airbnb e o Mercado Livre. Por sua vez, há plataformas que exercem um elevado controle junto, principalmente, aos fornecedores que a utilizam. A Uber atua dessa forma.[50]
Para demonstrar isso, o Quadro 1 busca realizar uma análise comparativa entre a forma de funcionamento de três diferentes plataformas inseridas em mercados de dois lados:
Quadro 2. Comparativo entre a forma de funcionamento da Uber, do Airbnb e do Mercado Livre.
CARACTERÍSTICA |
UBER |
AIRBNB |
MERCADO LIVRE |
Estabelece o preço do serviço ou produto oferecido |
X |
|
|
Controla as formas de pagamento por meio da plataforma |
X |
X |
X |
Mantém funcionalidades que permitem os consumidores a opinar sobre o serviço ou produto fornecido |
X |
X |
X |
Estabelece requisitos mínimos para o serviço ou produto ofertado |
X |
|
|
Elaboração própria. Fonte: ANDERSON, Mark; HUFFMAN, Max. The Sharing Economy Meets the Sherman Act: Is Uber a firm, a cartel, or something in beetween? Columbia Business Law Review, 2017 (com alterações).
A partir do Quadro 1, destaca-se, principalmente, o fato de a Uber estabelecer o preço pelo serviço de transporte remunerado privado de passageiros prestado por seus motoristas parceiros.
Esse fato faz com que os motoristas parceiros da Uber deixem de concorrer sobre a variável preço. Além disso, mesmo que a Uber permita seus motoristas parceiros a cobrarem preço menor do que aquele que é definido por seu aplicativo em cada corrida, já que o mesmo seria apenas um valor recomendado, na prática, os motoristas parceiros não parecem ter incentivos para cobrar menos.[51] O resultado verificado é, portanto, uma uniformidade de preços.
Dessa forma, é perfeitamente cabível questionar a respeito da possível existência de um cartel horizontal, de um cartel hub and spoke ou de uma prática influência à adoção de conduta comercial uniforme.
Quanto à existência de um possível cartel horizontal, deve-se ressaltar, inicialmente, que a Uber e seus motoristas parceiros não devem ser encarados como concorrentes diretos. Aquela funciona como uma plataforma a partir de um aplicativo que facilita a interação entre motoristas parceiros e usuários passageiros. Já os motoristas parceiros prestam o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros por meio da utilização de veículos em sua posse. Ou seja, tratam-se de atividades essencialmente distintas, o que afasta a possibilidade de verificação de um típico cartel horizontal entre Uber e seus motoristas parceiros.
Contudo, conforme apresentado pela Denúncia Uber, há situações em que os motoristas parceiros parecem se orquestrar para manipular o aplicativo e, por conseguinte, para que incida o chamado multiplicador de preço. Nessas situações, pode-se verificar a existência de um cartel horizontal realizado pelos motoristas parceiros da Uber. Por essa razão, isso será devidamente analisado na Seção 3.3 da presente Nota Técnica.
Resta verificar se o fato de a Uber fixar os preços que serão praticados por seus motoristas parceiros poderia configurar: i. um cartel hub and spoke, no qual a Uber funcionaria como hub; ou ii. a prática de influência à adoção de conduta comercial uniforme por parte da Uber.
Quanto à possível existência de um cartel hub and spoke, deve-se destacar que:
a Uber não atua para que seus motoristas parceiros se comuniquem entre si. Ou seja, a comunicação entre os mesmos, se ocorrer, se dá por utilização de outro meio;
o fato de os motoristas parceiros aceitarem os termos estabelecidos pela Uber não deve ser interpretada como indício suficiente para configuração de um acordo entre aqueles. Em outras palavras, a aceitação dos termos da Uber pelos motoristas parceiros estabelece uma relação meramente contratual entre a Uber e cada um de seus motoristas parceiros. Assim, não é possível vislumbrar-se qualquer acordo entre os motoristas parceiros em razão disso;[52] e
não existe o objetivo de colusão centralizado na Uber. A suposta uniformidade de conduta, especialmente relacionada ao preço, é oriunda do modelo de negócios Uber.
Portanto, não há qualquer troca de informações concorrencialmente sensíveis e também inexiste acordo estabelecido entre os motoristas parceiros em razão da atuação Uber, sendo que estes seriam requisitos necessários para configuração de um cartel hub and spoke.
Logo, o fato de a Uber estabelecer o preço a ser cobrado pelas corridas realizadas por seus motoristas parceiros assemelhar-se-ia mais à prática de influência à adoção de conduta comercial uniforme,[53] a qual será analisada na Seção 3.4. da presente Nota Técnica.
3.3. Da suposta prática de formação de cartel entre os motoristas parceiros da Uber
A Denúncia Uber (doc. Sei 0302529), apesar de possuir caráter bastante genérico, traz alguns indícios de que supostos motoristas parceiros da Uber poderiam estar se orquestrando com o intuito de ativar o multiplicador preço a partir da desconexão do aplicativo de maneira simultânea. Em outras palavras, os supostos motoristas parceiros planejariam “desligar” o aplicativo da Uber, em determinados momentos, para que um desequilíbrio entre a oferta de motoristas e a demanda de passageiros fosse observado, o que, consequentemente, implicaria na incidência do multiplicador preço e no aumento de suas receitas. Para tanto, são trazidas imagens de conversas de grupos de Whatsapp supostamente formado por motoristas parceiros usuários do aplicativo da Uber.[54]
Em primeiro lugar, ressalta-se, novamente, que não consta nos autos qualquer indício de participação da Uber nesse possível conluio entre os motoristas parceiros cadastrados em sua plataforma. Assim, com base no que é ora analisado por esta SG/Cade, não é possível afirmar que a Uber estaria praticando o ilícito concorrencial de formação de cartel ou mesmo de um cartel hub and spoke, conforme já detalhado acima.
Quanto aos motoristas parceiros da Uber, conforme afirmado acima, o fato de os mesmos se orquestrarem para manipular o aplicativo e, por conseguinte, para que incida o chamado multiplicador de preço pode caracterizar a prática de um típico cartel horizontal.
Contudo, apesar das imagens trazidas pela Denúncia Uber, esta SG/Cade é incapaz de: i. constatar a veracidade de tais imagens; e ii. identificar um possível polo passivo, mesmo que a veracidade das imagens e, consequentemente, dos acordos estabelecidos pelos integrantes de tais grupos de aplicativos de mensagens fosse constatada.
Finalmente, é necessário destacar o aumento do número de motoristas parceiros entre a Denúncia Uber, datada de 21 de dezembro de 2016, e a publicação da presente Nota Técnica.[55] Esse aumento no número de motoristas parceiros certamente tem dificultado qualquer tipo de coordenação entre os mesmos, já que, em mercado pulverizados, a concepção de cartéis é mais difícil.
A partir disso, verifica-se que os indícios apresentados pelas denúncias que originaram o presente PP não são revestidos da robustez necessária para o prosseguimento do presente Procedimento Preparatório quanto à suposta prática de formação de cartel entre os motoristas parceiros da Uber.
No entanto, apesar da insuficiência desses indícios, ressalta-se que esta SG/Cade estará atenta a movimentos como os relatados, sendo válido também ressaltar a possibilidade de, no futuro, os mesmos constituírem infrações à ordem econômica puníveis pelo art. 36 da Lei Federal nº 12.529/2011.
3.4. Da suposta prática de influência à adoção de conduta comercial uniforme pela Uber
As denúncias em tela alegam, genericamente, que a Uber influenciaria seus motoristas parceiros a adotarem conduta comercial uniforme. Essa influência seria observada em razão de a Uber definir os preços a serem cobrados em cada corrida realizada por seus motoristas parceiros, fato que, no entanto, é comum a outras ERTs presentes no mercado, como, por exemplo, Cabify e 99. Além disso, em razão do multiplicador de preço adotado pela Uber, a suposta prática de influência à adoção de conduta comercial uniforme pela mesma resta ainda mais marcante por permitir que arranjos, como aqueles analisados na Seção 3.3., sejam estabelecidos.
No intuito de rebater tal alegação, a Uber afirma que “não promove ou influencia a conduta comercial de seus motoristas parceiros no mercado”,[56] já que apenas disponibiliza uma plataforma tecnológica que intermedia a relação entre motoristas e passageiros no transporte privado. A Uber acrescenta que seus mecanismos de precificação são orientados, em regra, por características intrínsecas ao serviço (nesse sentido, tempo estimado e distância percorrida); podendo, no entanto, incidir o multiplicador de preço, o qual, ainda segundo a Uber, corrigiria “eventual desequilíbrio entre oferta e demanda.”[57] Além disso, deve-se ressaltar que a Uber afirma, reiteradamente, que seu estabelecimento no mercado trouxe inúmeros benefícios aos consumidores, “tais como a diminuição de custos de transação, especialmente a assimetria informacional entre usuário e motorista, a diminuição de custos do motorista e, principalmente, o preço final cobrado pelo serviço de transporte.”[58]
Conforme já abordado anteriormente pela presente Nota Técnica, a conduta anticompetitiva de influência à adoção de conduta comercial uniforme tem sido definida pelo Cade como ilícito concorrencial por objeto. Contudo, isso não impede que os eventuais efeitos líquidos da prática sejam ponderados.
Além disso, o fato de o modelo de negócios das ERTs ser bastante inovador e recente faz com que a atuação de agências antitruste nesses mercados seja ainda mais cautelosa. Em primeiro lugar, porque uma atuação excessiva e imprudente pode acabar criando barreiras excessivas e indesejadas que desencorajem, por conseguinte, o surgimento de negócios inovadores. Em segundo lugar, porque um eventual enforcement em tais mercados deve sopesar, de maneira detalhada, as preocupações antitruste e os possíveis benefícios gerados ao consumidor.[59]
A partir disso, o modelo de negócios desenvolvido pela Uber, de fato, diz respeito a uma plataforma que visa conectar motoristas parceiros e passageiros usuários cadastrados nela. Contudo, afirmar genericamente que o modelo de negócios adotado pela Uber e por outras ERTs não caracteriza influência à adoção de conduta comercial uniforme, não é suficiente para afastar eventuais preocupações concorrenciais quanto a isso. A insuficiência desse argumento reside no fato de tais empresas estabelecerem os preços cobrados por seus motoristas parceiros. Em outras palavras, o modelo de negócios adotado, por exemplo, pela Uber elimina a concorrência entre os seus motoristas parceiros pela variável preço.
No entanto, o modelo de precificação pela Uber e por outras ERTs presentes no mercado é baseado no tempo estimado e na distância percorrida em cada viagem. Dessa forma, a objetividade intrínseca a tais variáveis parece ser bastante razoável e racional.
Ademais, é imprescindível destacar o Documento de Trabalho nº 001/2018, “Efeitos Concorrenciais da Economia do Compartilhamento no Brasil: A entrada da Uber afetou o mercado de aplicativos de táxi entre 2014 e 2016?”, publicado pelo Departamento de Estudos Econômicos do Cade (“DEE”).[60]
A partir de uma abordagem empírica, o referido estudo objetivou avaliar o impacto da entrada da Uber sobre o mercado incumbente de aplicativos de táxis. Nesse sentido, foram analisados os efeitos, entre 2014 e 2016, da entrada da Uber: em 590 (quinhentos e noventa) municípios brasileiros; e também nas capitais brasileiras, segmentadas, ainda, em duas outras subcategorias – capitais do Nordeste e Norte e capitais do Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
Quando analisados os efeitos da entrada da Uber, verifica-se “que a Uber não está rivalizando apenas com corridas de táxi via aplicativos, mas que, simultaneamente, pode estar afetando outros modais de transporte.” Nesse sentido, além de verificar que a entrada da Uber provocou uma redução no número de corridas por aplicativos de táxi, o referido estudo também possibilita afirmar que essa entrada teria criado uma nova demanda por transporte remunerado individual, derivada, por exemplo, dos modais de transporte coletivo.
Além disso, quando analisado o conjunto de 590 (quinhentos e noventa) municípios, a entrada da Uber não teria sido capaz de afetar os preços das corridas de táxi por aplicativos. Essa mesma conclusão foi obtida quando analisadas as capitais do Nordeste e do Norte.
Por sua vez, quando consideradas a totalidade das capitais brasileiras, a entrada da Uber teria afetado o preço cobrado pelas corridas de táxi por aplicativos, in verbis: “houve redução de 7,8% no valor médio pago por quilômetro em táxi de aplicativos durante o período analisado.”[61] No mesmo sentido, nas capitais do Centro-Oeste, Sudeste e Sul, a redução no valor médio pago por quilômetro nas corridas de táxi utilizando aplicativos teria sido de aproximadamente 12%.
Apesar desses resultados diferentes em razão da amostra analisada, o estudo em tela destaca que o fator temporal pode ser a causa das diferenças obtidas. Nesse sentido, em munícipios que o Uber já estaria presente há mais tempo, a redução sobre o número de corridas de táxi a partir de aplicativos teria sido menor e, além disso, haveria sido notada uma redução nos preços de tais corridas.
Em outras palavras, o estudo do DEE sugere que “inicialmente, a entrada da Uber em um município pode ter um efeito grande, reduzindo substancialmente o número de corridas de táxi, mas com o passar do tempo ocorre uma recuperação gradativa do número de corridas do setor incumbente.”[62] Além disso, também é indicado que “o setor incumbente reagiu via concessão de descontos nos valores finais das corridas quando se teve um período mais longo para verificar tal reação.”[63]
Ainda sobre o estudo em tela, é importante destacar sua seguinte conclusão sobre a entrada da Uber, a qual “além de gerar benefícios aos consumidores e incentivar a entrada de novos ofertantes no mercado de transporte remunerado individual, tais inovações solucionaram algumas falhas de mercado presentes no referido setor, tornando defasada a regulação atual dos serviços de táxi.”[64]
Apesar desses possíveis benefícios, repisa-se que, sobre o modelo de precificação adotado pela Uber, também incide, em determinadas situações, o denominado multiplicador de preço. A partir disso, a mera possibilidade da incidência de tal multiplicador poderia estar incentivando os motoristas parceiros da plataforma a se orquestrarem com o objetivo de reduzir a oferta (fato já abordado especificamente na Seção 3.3. da presente Nota Técnica), o que, consequentemente, leva: i. a um desequilíbrio entre oferta e demanda; e ii. à incidência do multiplicador de preço. Por fim, o preço final a ser pago pelos passageiros, consumidores de tal serviço, aumenta.
Inicialmente, cumpre ressaltar que a incidência do multiplicador de preço não é regra, sendo aplicado, conforme detalhado acima, apenas em situações nas quais o número de motoristas parceiros ofertando o serviço de transporte pela plataforma da Uber é inferior ao número de passageiros usuários solicitando viagens em determinada região. Em outras palavras, o multiplicador de preço é ativado quando se observa um desequilíbrio entre a oferta e a demanda dos usuários da plataforma Uber (respectivamente, motoristas parceiros e passageiros usuários) em certas regiões.
Sobre esse desequilíbrio, a Uber sustenta que o multiplicador de preço atua justamente na tentativa de corrigi-lo. Nesse sentido, quando o multiplicador de preço passa a incidir em alguma região, a mesma, por conseguinte, se tornaria mais atrativa, motivando, assim, mais motoristas parceiros a ofertar o serviço de transporte remunerado privado individual pela plataforma da Uber naquele lugar.
Logo, o referido multiplicador de preço parece respeitar o princípio microeconômico do equilíbrio, o qual estabelece que “os preços ajustam-se até que o total que as pessoas demandam seja igual ao total ofertado.”[65] Ou seja, é razoável supor que a incidência do multiplicador preço atrairia mais motoristas para ofertar o serviço em tela nos locais em que se observa sua aplicação. Em consequência, isso faria com que o multiplicador deixasse de incidir, fazendo com que os preços das viagens voltassem a ser pautados nos critérios mais objetivos de tempo estimado e distância percorrida.
Por sua vez, do ponto de vista dos passageiros consumidores, os preços cobrados pela Uber aos mesmos não são, atualmente, revestidos de imprevisibilidade. Nesse sentido, antes de solicitar de fato a corrida, o passageiro consegue estimar o preço da mesma, tendo acesso, inclusive, ao valor que será cobrado pelo serviço.[66] Além disso, a Uber afirma que a ativação do multiplicador de preço é transparente para todos seus usuários, motoristas parceiros e passageiros usuários, os quais conseguem visualizar as áreas em que o mesmo está sendo aplicado. Essa maior previsibilidade quanto ao preço cobrado pode ser constatada a partir da simulação realizada por esta SG/Cade por meio do aplicativo da Uber:
Figura 2. Simulação de corrida por meio do aplicativo Uber.